Sábado: o Expresso publica os nomes de 64 vítimas do incêndio de Pedrógão Grande e revela que há pelo menos uma 65ª. Logo no domingo, o primeiro-ministro reagiu como costuma reagir: “Já está tudo esclarecido” (porventura tão “esclarecido” como o caso das viagens dos secretários de Estado ao Euro, que um ano depois levou à sua demissão).
Obviamente, nada estava esclarecido. Não estava esclarecido o que eram vítimas “directas” ou “indirectas” daquela tragédia (e sabemos agora que, além da idosa identificada pelo Expresso, o Ministério Público ainda está a investigar mais uma situação). Sobretudo quase nada estava ou está esclarecido sobre o que se passou em Pedrógão. Tanto assim é que, passadas apenas algumas horas, António Costa mudou o discurso.
Tendo constatado que não conseguia fazer desaparecer a sombra da dúvida da opinião pública, passou à segunda escapatória: “Não é o Governo que contabiliza” os mortos. E acrescentou ainda algo de extraordinário: “Se alguém tiver conhecimento de um maior número de mortes deve comunicar a essas entidades.” Como? Sem conhecer a lista das vítimas, como seria isso possível?
Mas nessa altura o governo já tinha encontrado outra barricada: a lista das vítimas estava em segredo de justiça. Porquê? É difícil entender. Tão difícil de entender que, passadas mais 24 horas, o Ministério Público levantou o segredo de justiça e revelou que há 64 mortes “directas” e mais duas que ainda estão a ser investigadas.
Mas mais difícil de entender ainda foi a resistência do Governo a pedir ele próprio o levantamento do segredo de justiça, como podia fazer. De que tinha medo? Não entenderia que a simples existência de uma suspeita era factor de alarme público? Perdeu de tal forma o controle dos acontecimentos que teve medo que a lista que circulava na Internet e foi revelada pelo jornal i fosse verdadeira?
Tudo isto poderia ser apenas desnorte se não correspondesse a um padrão de comportamento: o de procurar controlar a informação e obscurecer a verdade. O de tentar ter apenas uma “narrativa” – a sua narrativa.
O que se passou na quarta-feira de manhã na sede da Autoridade Nacional de Protecção Civil é bem significativo. No briefing com os jornalistas, destinado a procurar afastá-los das frentes de incêndio, a porta-voz deu como controlado o fogo de Mação. À mesma hora, no local, os autarcas garantiam que sucedia exactamente o contrário – e era mesmo o contrário o que estava a suceder.
Não é a primeira vez que estes “enganos” ocorrem. Dias antes, a mesma ANPC garantia que um helicóptero tivera um problema mas que tudo se reduzira a um “incidente”, tendo tudo acabado com um mero “toque no chão de forma controlada”. Uma investigação da TSF revelou que, afinal, o aparelho ficou destruído.
Se dúvidas houvesse sobre o objectivo da “lei da rolha” imposta aos comandantes dos bombeiros, estes episódios eliminaram-nas: a centralização da informação nos encontros com os jornalistas em Carnaxide destinam-se mais depressa criar uma cortina de fumo que os impeça de ver as colunas de fumo em que se estão a transformar cada vez mais florestas.
António Costa, que defendeu abertamente esta “lei da rolha”, tem de facto razões para estar preocupado, pois deixou rasto em muitas das decisões que estão a condicionar negativamente o que se está a passar com as nossas florestas. Recordemos algumas delas:
- Foi de António Costa, como ministro da Administração Interna, a decisão de apostar tudo num sistema de combate aos incêndios focado em extinguir rapidamente as ignições e que desvalorizou a reforma da floresta. É essa opção que, neste ano quente e de imensa acumulação de combustível nas matas, mostra não ser capaz de evitar tragédia atrás de tragédia.
- Foi também de António Costa a decisão de manter o contrato com o SIRESP, o sistema de comunicações que está sempre a falhar, tendo-se limitado a renegociá-lo para lhe retirar valências que hoje fazem imensa falta.
- Foi ainda de António Costa a decisão política, como primeiro-ministro, de promover a aprovação de um pacote legislativo para a floresta que é duramente criticado tanto pelos especialistas em florestas e em fogos florestais, como pelos agentes económicos do sector. Costa, como já referi, preferiu fazer umas flores à esquerda, com o Bloco, para enganar o pagode, perdendo-se mais uma oportunidade de tomar as medidas que têm de ser tomadas.
- Foi com António Costa que ascendeu a Presidente da Autoridade Nacional de Protecção Civil um coronel (antes esse lugar fora sempre ocupado por um oficial general) que tem como currículo ter quase sempre seguido Costa de perto: Joaquim Leitão foi em 2005 adjunto do gabinete do secretário de Estado da Administração Interna quando António Costa era ministro, em 2008 foi nomeado comandante do Regimento de Sapadores Bombeiros de Lisboa pelo presidente da Câmara António Costa, em Janeiro de 2016, com o novel governo Costa, regressou ao Ministério da Administração Interna, de novo como adjunto. É esse mesmo Joaquim Leitão que hoje preside ao caos notado no combate a tantos e tantos incêndios, tal como preside à “lei da rolha”.
- Foi com este governo de António Costa que o MAI nomeou 30 chefias da Protecção Civil 74 dias antes da tragédia de Pedrógão, sendo que um dos novos nomeados, o 2.º comandante de Leiria, foi quem dirigiu as operações no terreno durante o fogo de Pedrógão Grande das 19h55 às 22h do dia 17 de Junho, isto é, no período em que ocorreu a maioria das mortes. Trata-se de Mário Cerol, um advogado, comandante dos bombeiros de Alcobaça e, vejam lá, antigo mandatário de uma candidatura do PS a esse município.
- António Costa estava ao lado de Rui Esteves, o comandante operacional da ANPC nomeado pelo seu governo, quando, na noite de sábado para domingo no incêndio de Pedrógão Grande, este declarou que os meios envolvidos no combate àquele fogo eram “claramente” os adequados e que a sua determinação era extinguir o incêndio nessa mesma noite ou no domingo – o incêndio levaria cinco dias a ser extinto. Agora, foi esse mesmo Rui Esteves que, a partir de Proença-a-Nova (que fica no seu distrito de origem, Castelo Branco), dirigiu no terreno o combate ao incêndio de Mação, tendo de responder às queixas já verbalizadas pelos autarcas deste município sobre as opções que tomou.
Para onde quer que olhemos há traços da passagem ou de decisões de António Costa que não podem ser dissociadas não apenas de um atraso de pelo menos 10 anos na reforma da floresta (estava no Governo que meteu os estudos na gaveta), como de medidas que provocarão novo adiamento de qualquer reforma útil, como há muito não se via tanta desorientação e caos na direcção das operações da Protecção Civil, uma estrutura cujas chefias estão lá porque Costa lá as colocou. E se quiserem mais um exemplo leiam Manuel Carvalho, natural de Alijó, jornalista que muito escreveu sobre a floresta portuguesa, e que ao comentar o incêndio que devastou pinhais que conhecia como as mãos não hesitou em falar, justificando, em “desnorte” e “incompetência”.
Quando juntamos todas estas peças, quando sabemos que ainda estamos em Julho e faltam os dias mais perigosos do ano, quando suspeitamos que há muitas coisas que nos estão a ser escondidas, até para as férias de António Costa se olha como um pecado menor – pecado de arrogância, mas pecado menor.
Face a tudo o que este Verão nos tem revelado, ficamos com a percepção clara de que o nosso primeiro-ministro não possui a fibra para o lugar. Onde quer que vá vai sempre depois de o Presidente da República já ter estado. Quando o seu Governo deve explicações aos portugueses, ele faz perguntas aos organismos sob a sua tutela, como se assim sacudisse a água do capote. No momento em que o Estado falha clamorosamente, como sucedeu em Pedrógão Grande, nem sequer tem a humildade de, como primeiro responsável executivo desse Estado, pedir desculpa. Sempre que a situação fica difícil, responde com evasivas. Na altura em que, até para criar um clima de tranquilidade pública, se exigia a máxima frontalidade e transparência, responde com uma atamancada “lei da rolha” ou convoca um focus group sobre a sua popularidade.
Não sei se isto é um primeiro-ministro – o que sei é que não é assim que um primeiro-ministro deve governar. As manhas da política e os truques dos especialistas em comunicação não chegam para disfarçar o muito que lhe falta para sabermos que também é um homem para os dias difíceis, aqueles onde não se pensa em salvar a pele mas em servir o melhor possível os portugueses.
PS. O título deste texto inspira-se num dos melhores romances sobre o Holocausto, a obra autobiográfica de Primo Levi Se isto é um homem. O que mais impressiona na obra desse sobrevivente de Auschwitz é a sua descrição de como os prisioneiros acabavam facilmente a espezinhar outros prisioneiros apenas para sobreviverem mais alguns dias ou algumas horas. É, por isso, um tremendo retrato do lado mais negro da natureza humana. Lembrei-me dele ao assistir a actuações próprias do lado mais negro da política.
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