A ciência política tem duas formas de definir “democracia”. Uma mais minimalista, em que a democracia é um método de eleger governantes, e uma mais maximalista, que varia de autor para autor, em que para além do método são inumeradas uma série de liberdades que têm de ser respeitadas e um conjunto de elementos que não podem estar contidos num estado que seja verdadeiramente democrático. Assim, ou se usa da definição maniqueísta de Karl Polanyi (democracia é ir a votos) ou se usa um conceito mais elaborado o que, com o tempo, levou à criação do conceito de democracia iliberal, popularizado em 1997 por Fareed Zakaria, o estudante de Princeton que se tornou uma estrela do jornalismo e da televisão.

Aqui para nós que ninguém nos ouve nenhuma das possibilidades é satisfatória. A primeira falha porque a democracia é – e sentimo-lo todos intuitivamente – mais do que um procedimento. A segunda falha, porque pressupõe um casamento entre a democracia e o liberalismo como única fórmula de democracia legítima, o que tem dois problemas: há democracias (reais) casadas com valores diferentes (a Índia por exemplo); e esta conceção e deixa de lado uma questão que pouco passa pela literatura por ser um conceito abstrato: aquilo a que gostava de chamar o “espírito democrático”.

Ora se tivesse que definir “espírito democrático” diria que é a consciência da maioria da opinião pública que vive num país livre e essa liberdade é um bem inestimável (seja qual for o conceito de liberdade). E essa mesma liberdade está segura por um conjunto de instituições que a garantem, independentemente de quem manda.

Tudo isto por números redondos: faz hoje seis meses que Donald Trump se tornou presidente dos Estados Unidos. E se olharmos para além dos assuntos internacionais, concluímos que tem sofrido uma série de derrotas internas. Cinco, para ser mais exata, todas de diferentes origens.

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Ora vejam: (1) uma foi infligida pelo sistema judicial; depois de muitas voltas por tribunais, a interdição de imigrantes de seis países árabes (o Iraque, entretanto, caiu) lá passou, mas com muitas alterações favoráveis aos que querem entrar. (2) Outra foi vem do Congresso, maioritariamente republicano, que pelas suas divisões internas e por resistência ao presidente, tem impedido a substituição do Obamacare por outro tipo de sistema de saúde de se concretizar. (3) Outra ainda, tem vindo da Casa Branca: não me lembro de ter havido tantas fugas de informação (sobre assuntos tão sérios) e que estas tenham obrigado um presidente a privar-se dos seus mais fieis – desde o general Mike Flynn (demitido) ao sinistro Steve Bannon (afastado de importantes decisões pelos membros mais moderados da administração). (4) Outra, porventura a mais grave, vem do FBI, que Trump tem tentado controlar, mas sem sucesso. Nem vou falar de Donald Trump Jr., o novo protagonista desta telenovela das relações perigosas com a Rússia. Basta-nos saber que o próprio presidente esta a ser investigado por obstrução à justiça. (5) Finalmente, Trump caiu no índice de popularidade, numa fase em que o capital político dos presidentes costuma ser ainda bastante elevado.

Apenas 38 por cento dos Americanos estão satisfeitos com as suas políticas. Os números da impopularidade de Trump não são inéditos, mas é assinalável que, segundo estudos, Trump esteja a perder terreno junto ao seu próprio eleitorado. Talvez a culpa nem seja sua, mas dos mecanismos que a própria democracia construiu que o inibem de cumprir as suas promessas eleitorais. E porque esses mecanismos criam suspeitas de uso indevido de poder. Ora, estou em crer que isto se deve ao que Anatol Lieven chamou “a unanimidade nacional em torno da democracia” – o espírito democrático que une os americanos, – e que acaba como funcionar como “mecanismo de autocorreção”.

Tudo isto mostra que o espírito democrático nos Estados Unidos está bem e recomenda-se. E que esta é, talvez, a maior virtude de uma democracia madura. A ironia de que o homem mais poderoso do mundo não pode fazer tudo o que quer só por ser o homem mais poderoso do mundo. Até pode ser eleito ao som do soundbite populista, mas isso está longe de lhe permitir a destruição de um sistema de valores. Espírito democrático 1- Donald Trump 0. Que assim continue por muito tempo.