Pesam-se os tempos, e os tempos são maus. Às vezes olha-se à volta e só se vêem personagens menores dedicados à impostura. O enredo é menor, a arte menor e o fim só pode ser, coerentemente, menor. Não é que uma pessoa esteja à espera de palavras ou acções com proporção épica. A vida não vive do épico. Mas não convém exagerar na falta de decência. Pensemos nos nossos políticos. Nem toda a gente diz os disparates de Jerónimo de Sousa sobre a chamada revolução russa, é verdade, mas não é preciso esgravatar muito em várias cabeças conhecidas (governamentais, por exemplo) para descobrir, sem surpresa, um respeito e uma admiração pela coisa que andam mais perto da dele do que se pensa. Tudo isso é sinal claro de uma imensa falta de liberdade e, o que é praticamente a mesma coisa, do hábito de viver sob impostura.
Imaginemos, por confronto, um exemplo. Um exemplo de liberdade. O século passado foi, sob muitos aspectos, duro de atravessar. Em Portugal, a ditadura de um seminarista com polícia política e prisões para quem não ficasse quietinho e caladinho menorizava as existências. Certos poemas de Alexandre O’Neill sobre as várias declinações do “modo funcionário de viver” dão isso melhor que quase tudo o resto. Quem amasse a liberdade não queria certamente entrar nesse leito nupcial feito de uma virtude cheia de esquininhas e dobrinhas, bafienta e perversamente pudibunda. A passagem pelo comunismo, em meados do século passado, e pelo partido caseiro com esse nome, foi em muitos casos um acto de liberdade que não supunha sequer uma visão da história próxima daquela que os seus representantes maiores bebiam de uma doutrina já de si em parte sem sentido e ainda para mais vestida pelos tempos de uma ortodoxia grotesca que glorificava um ”sol da terra” (Cunhal) que foi a mais durável encarnação do horror totalitário.
Mas quem amasse a liberdade mais cedo do que tarde abandonaria certamente esse novo leito nupcial com características afinal tão próximas do outro. Eventualmente com sacrifícios e prisões, mas sem gosto de as trazer na lapela como prova da excelência própria, quem assim fosse descobria a liberdade fora dos trilhos percorridos pelos outros. Alguns terão ficado pelo caminho nessa viagem, outros tê-la-ão levado até ao fim possível. Não pelo gosto da aventura pela aventura, mas por uma espécie de amor pela existência e pelo prazer nela que é a condição essencial da experiência da liberdade. Se preciso, sendo felizes à má-cara. A raridade dessas pessoas constata-se facilmente: basta olhar em volta. Não há assim tantos exemplos de liberdade e de singularidade sem afectação de excentricidade. E, para mais, os exemplos que há, como todos os bons exemplos, são inimitáveis. Mas há exemplos.
Vivendo em democracia, as qualidades não podem mudar. As sociedades todas conhecem imposturas que lhes são próprias. É preciso rirmo-nos da tirania da opinião alheia quando ela é uma espécie de chantagem que nos quer impedir de pensar pela nossa própria cabeça. Sem, no entanto, desprezo algum pelo comum, antes pelo contrário: é preciso tentar encontrar nas pessoas – em todas as pessoas – o que lhes é próprio e ajudá-las. O poeta Auden dizia numa entrevista à BBC nos anos sessenta que “a arte é comparativamente pouco importante (small beer). As coisas verdadeiramente importantes na vida são ganhar a vida de maneira a não ser um parasita e amar os nossos vizinhos”. A arte é importante, é claro – e na arte entram também todas as profissões decentes e úteis -, e há certamente vizinhos indesejáveis. Mas, no essencial, o que Auden diz é verdadeiro. “Amar os nossos vizinhos” não é apenas amá-los no sentido cristão: é, no limite das nossas possibilidades, procurar, como disse atrás, ajudá-los, correndo sempre o risco de falhar.
Os bem-pensantes fazem exactamente o contrário disto. Estas virtudes são decretadas de cima e quando chegam abaixo dissolvem-se no universo dos interesses próprios. São pré-programadas para não se aplicarem à realidade do mundo comum. Não há nelas verdadeiro lugar para a amizade nem para o amor. Por isso os bem-pensantes são gente incapaz dos reflexos verdadeiramente humanos que nos fazem descobrir, sempre de novo, a existência. A amizade e o amor supõem a acção dos indivíduos. E agradecem-se aos indivíduos. É aí, nesse mundo dentro do mundo e aberto aos outros mundos, que se encontra a liberdade.
O problema é que indivíduos, pessoas, assim são raros. E a liberdade é uma coisa rara. Numa vida, encontra-se pouca liberdade encarnada, contam-se pelos dedos de uma mão, ou ainda menos, os seus exemplos. As vozes que se ouvem pouco têm a ver com ela. Mas a pouca que miraculosamente se encontra vale tudo o resto. Com sorte, ajuda-nos a guardar até ao fim, na lembrança dela, a curiosidade pelas coisas e pelas pessoas sem a qual a vida não é vida vivida. Ensina-nos da forma mais radical e duradoura. E ajuda-nos também a suportar as imposturas de que nos podemos rir. Pesar-se-ão os tempos, e haverá algo de bom. Haverá sempre alguém a quem sabemos que devemos (e poderemos?) agradecer.