Nem só de sol e praia se faz o verão. Os meses mais quentes do ano são, por norma, aqueles em que os mais pequenos têm uma agenda menos preenchida, com muitos tempos livres e, também, muitos tempos mortos. Sem dúvida que a frase “pai, mãe, estou aborrecido/a!” é de deixar qualquer adulto com calafrios, a pensar na milésima coisa a fazer para entreter os miúdos, mas acontece que quando a conversa é sobre aborrecimento nem tudo está mal.

“Encaramos a criatividade como uma capacidade de inovar e ser original, e precisamos de um estímulo para que isso aconteça. O estar aborrecido pode ser esse estímulo”, começa por dizer a psicóloga infantil Inês Afonso Marques, que no passado dia 5 de julho deu a cara pela iniciativa Libertem as Crianças, organizada pelo Observador. “Se estivermos num contexto em que tudo está estruturado e nada é diferente, não há estímulo à criatividade.”

A conversa sobre o lado positivo do aborrecimento não é nova e já antes publicações internacionais se debruçaram sobre o tema. É o caso do El Mundo que ainda esta semana colocou a pergunta: porque é que é bom que as crianças se aborreçam?. “Estar aborrecido é uma forma de a criança descobrir o que gosta. Implica novidade e experimentação, mas também conhecer-se a si própria e conhecer os seus limites”, tenta responder a psicóloga. “É errado não permitirmos que a criança se aborreça.”

Há aborrecimento e aborrecimento

Uma criança que faz de um talher e um guardanapo uma verdadeira batalha naval ou que pega habilmente em frascos de perfumes e, com eles, cria toda uma novela é, muito provavelmente, sinal de criatividade. E sim, em certa medida o estar sem fazer nada pode funcionar como catalisador dessa veia criativa, mas é importante esclarecer que há diferentes significados de aborrecimento.

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“A noção de aborrecimento está muito associada a birras em crianças mais pequenas, que não sabem gerir o não fazer nada”, continua Inês Afonso Marques, profissional da Oficina de Psicologia. Em causa pode estar o facto de uma criança não ter nada para fazer (o que pode ser um indutor de criatividade) ou de não gostar do que está a fazer, sendo que, nesta situação, cabe aos pais escutar os seus interesses. “É natural que uma criança pequena salte de atividade em atividade com frequência, tem que ver com o tempo de atenção e com a busca pela novidade”, acrescenta.

Apesar de haver quem relacione o aborrecimento com a criatividade, há psicólogos relutantes em estabelecer uma relação causa-efeito. “Não sei o que se entende por uma criança aborrecida”, atira José Morgado, professor no departamento de psicologia da educação no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA – Instituto Universitário). “Estou a imaginar uma criança desocupada e não abandonada… Aí acho que as crianças vão à procura, umas de uma forma mais eficiente do que outras, de ferramentas para lidar com a situação. Uma delas é a criatividade.”

Na opinião deste psicólogo o importante é estimular as crianças a brincarem sozinhas, a partir dos dois ou três anos de idade, de maneira a ganharem autonomia — a ideia é que os mais novos tenham tempos de entretenimento sozinhos, o que não significa que fiquem isolados em nome da criatividade. “A criatividade é fundamental, isto é, não se deve educar as crianças numa perspetiva formatada, é bom que elas conheçam o outro lado.”

José Morgado não concorda com o termo “aborrecido” da mesma maneira que Pedro Ferreira Alves o desaprova. O neuropsicólogo no Instituto Terapêutico Analítico Psicologia Aveiro (ITAPA) começa por argumentar que o aborrecimento das crianças é algo que incomoda os pais porque obriga-os a “descentrar de si próprios” e a “atenderem às necessidades das crianças”. Na verdade, o profissional não entra no discurso porque não quer que os pais deixem de ser pais. “Uma coisa é o discurso entre profissionais, outra é entre pais, pode ser mal interpretado.”

Dito isto, considera que o aborrecimento pode estimular a necessidade de comunicar e a dita criatividade caso a criança já tenha recursos “emocionais e cognitivos para procurar novas soluções para ultrapassar essa situação”. Mas atenção: “Uma criança prementemente aborrecida é uma criança permanentemente depressiva, não tem energia.”

Pode ser preocupante se o aborrecimento dominar a vida da criança, isso é uma coisa à qual devemos estar atentos. Mas o aborrecimento momentâneo é amigo da criatividade. Em relação ao outro, não sei se lhe chamaria aborrecimento, mas antes desinteresse constante e isso é um sinal de alerta”, contra-argumenta Inês Afonso Marques.

Mas em que adultos se podem tornar as crianças que não aprendem a brincar sozinhas ou que não se “aborrecem”? A psicóloga responde que em causa podem estar adultos com dificuldade em lidar com a frustração e/ou com menor capacidade de resolver problemas (como quem diz conflitos).

A importância de não fazer nada

Pedro Ferreira Alves faz questão de salientar que o cérebro humano precisa de relação com os outros e de cultura para se desenvolver. Não obstante, faz a ressalva de que, de facto, os pais devem ter em atenção que as crianças precisam de aprender a não fazer nada, o que para este profissional é “diferente de ficar aborrecido”. “É bom estarmos na praia só a sentir, estarmos [simplesmente] presentes. O saber estar passa por algum aborrecimento mas não é sinónimo de tal. É um aprender a estar e a reinventar o vazio.”

Reinventar os tempos mortos não é, porém, sinónimo de uma agenda preenchida — seja em tempo de férias, com diversas atividades para fazer o tempo passar mais depressa, ou em período escolar (sim, referimo-nos às atividades extracurriculares). Sobre isso, Inês Afonso Marques argumenta que há crianças “sem tempo para sonhar”.

Se as crianças têm uma agenda muito estruturada e previsível, então não têm margem para serem espontâneas e curiosas. É como se tudo lhes fosse oferecido”, aponta, salientando que é fundamental que haja espaço, tempo e oportunidade para as crianças serem — adivinhe-se — crianças.

Já Pedro Ferreira Alves, o neuropsicólogo, atesta que tudo depende das atividades, se estas são direcionadas para o interesse das crianças e se apresentam os aspetos lúdico, educacional, relacional e familiar. José Morgado, por sua vez, fala em crianças-agenda, isto é, miúdos que passam o tempo a transitar de agenda em agenda seja porque as famílias não têm onde as deixar ou porque exigem o melhor desempenho possível dos filhos: “Muitas crianças não têm tempo para brincar e brincar é a atividade mais séria que elas fazem.”

Uma lista amiga do aborrecimento

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Para que as crianças tenham o seu tempo mais organizado, Inês Afonso Marques sugere que os pais as ajudem a criar uma lista das atividades que mais gostam de fazer. Desta forma, de cada vez que a pequenada se queixar que está (demasiado) aborrecida, pais e filhos podem consultar a lista previamente feita e escolher uma das propostas. Pode ser assim tão fácil.

E será que também têm ou devem ter tempo para jogar? A resposta é unânime. Podemos preencher o dia dos mais novos com televisão e videojogos desde que eles não passem o dia todo nisso — estas são atividades passivas, que não exigem qualquer movimentação corporal ou qualquer interação com outro ser humano. As “amas tecnológicas” inibem a socialização, é certo, mas isso não leva a que nenhum profissional as afaste por completo da pequenada. O importante é não jogar sozinho, até porque é com o outro que se aprende a comunicar, a criar e a lidar com as regras.

E como as férias ainda vão a meio, fica a sugestão: “As férias não são a réplica do tempo de escola, as rotinas podem ser outras. As crianças não podem ficar completamente em autogestão, mas podem gerir as suas agendas tanto quanto possível”, remata José Morgado.