No último dia do debate do Orçamento — que terminou com a proposta do Governo aprovada pela esquerda — aguardava-se a primeira intervenção do primeiro-ministro António Costa, mas também do líder da oposição Pedro Passos Coelho, ambos em silêncio até aqui (os líderes dos partidos estão todos no Parlamento, mas no primeiro dia de debate só falou a presidente do CDS, Assunção Cristas). As duas intervenções fecharam uma maratona de quase 12 horas de discussão, num dia e meio de debate parlamentar, e fizeram um bom resumo do que se passou no Parlamento nestes dias de Orçamento: as visões que separam direita e esquerda sobre os méritos do passado e do presente; a leitura divergente dos dados macroeconómicos; quanto vale afinal a maioria parlamentar e até que ponto pode ou vai o país colocar a renegociação dos juros da dívida em cima da mesa em Bruxelas.

A estratégia do Governo socialista está a resultar! — Olhe que não, olhe que não…

António Costa e Pedro Passos Coelho debateram pela enésima vez a receita escolhida pelo Executivo socialista — e não foi desta que se entenderam. Aliás, os dois foram-se acusando mutuamente de estarem a falar de países diferentes, o que só prova que estão em campos políticos cada vez mais distantes. E não parece certo que deixem as barricadas em que se instalarem num futuro muito próximo. O socialista garante que sim, que a estratégia está a resultar; o social-democrata diz que Costa não podia estar mais errado.

Foi isso que mesmo Passos fez questão de sublinhar na intervenção que levou ao Parlamento. O ex-primeiro-ministro acredita que o socialista se está a limitar a “ganhar tempo”. Falta-lhe estratégica económica, falta-lhe uma política orientada para o futuro, vive de cativação em cativação. É a fuga para a frente de um Governo socialista à espera de “milagres”. O diabo pode ainda não ter chegado, mas “milagres”, foi avisando o líder social-democrata, decerto que não chegam.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

António Costa não deixou o antecessor sem resposta e apontou para aquilo que considera ser a incoerência de Passos nas críticas ao modelo escolhido pelo Governo: os sociais-democratas dizem que o Executivo é eleitoralista e ao mesmo tempo “austeritário”; exigem a redução da despesa pública e criticam o Governo por ser rigoroso; questionam o investimento, mas criticam a falta dele; denunciam a “injustiça social”, mas acusam o Governo de “dar tudo a todos”; criticam a pressa em aumentar as pensões, mas queixam-se que o Governo só o faça em agosto. Entendam-se, senhores. Ou então rendam-se às evidências, foi sugerindo Costa.

“Há vida além do Orçamento” e cativações a salvar as metas

António Costa entrou no debate com uma citação do ex-Presidente da República Jorge Sampaio — em 2003 num puxão de orelhas que deu que falar ao Governo de Durão Barroso e à sua ministra das Finanças, Manuel Ferreira Leite. “Há vida para além do Orçamento”, disse Costa inspirado em Sampaio para logo a seguir dizer que o “Orçamento faz parte da vida” e garantir que este é um “instrumento para melhorar a vida dos portugueses”. O primeiro-ministro não podia gerar mais desacordo em Passos Coelho, que na proposta do Governo vê “mais do mesmo”, ou seja, “medidas extraordinárias” e “cativações permanentes” para cumprir metas.

“Não há milagres: hoje é notório que o cumprimento do défice abaixo de 3% só será possível com receitas extraordinárias”, atirou Passos.

Pedro Passos Coelho garantiu a pés juntos que, “para cumprir as metas, o Governo tem de adotar medidas extraordinárias” mas que “não consegue explicar porque o faz extraordinariamente em tempos de normalidade”. Costa havia de contrapor logo a seguir que “este é um Orçamento que faz as escolhas certas” e que se insere”numa visão para o país”. E acusou Passos Coelho de não avançar com uma “única ideia para o país” e de não ter falado “uma única vez das pessoas, dos empresários, dos jovens ou dos idosos” na sua intervenção.

“A única que pessoa que existe no discurso de Pedro Passos Coelho é ele próprio e o fantasma do seu governo”, atirou Costa, sugerindo que os sociais-democratas “são mesmo as únicas pessoas que ficariam melhor se o país ficasse pior”. Sobre a proposta que entregou no Parlamento (e que só terá aprovação final a 29 de novembro), Costa sublinhou que reflete “cada um dos pilares do Plano Nacional de Reformas”, exemplificando com medidas concretas e dizendo-se de “consciência tranquila”. Mas Passos garante que as virtudes que Costa vê na proposta não existem e diz que o PS está a “degradar o Estado social”, acusando chefe do Governo de não ter “uma estratégia para pôr a economia a crescer sem precisar de cortes permanentes”, o que diz existir já com as “cativações permanentes”.

Neste ponto, Passos acusa Costa de estar a fazer cortes, já que no seu tempo no Governo as cativações “foram libertadas até ao final do ano orçamental, nunca deixaram de ser libertadas face ao que era a previsão orçamental, mas pela primeira vez foram anunciadas cativações permanentes. Empurra-se com a barriga, finge-se que está tudo certo e sobretudo há uma ordem: não gastar e aguentar até ao final do ano. Aguentar o mais possível, ganhar tempo e depois logo se vê”.

Renegociar juros da dívida ou não renegociar? Eis a questão… e o passo ao lado

A renegociação da dívida é o tema que a esquerda (PCP e BE) coloca em cima da mesa para fazer a diferenciação face ao PS e ao Governo socialista que apoia no Parlamento. Essa linha foi marcada durante todo o debate do Orçamento do Estado pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda e foi, claro, repetida nas intervenções finais dos líderes das duas bancadas. Jerónimo de Sousa criticou o Governo por “não enfrentar os interesses dos grupos monopolistas e os constrangimentos decorrentes da submissão e o euro e à União Europeia” e Catarina Martins declarou que o país está “mutilado pelo extremismo europeu”. E fez mais, encostou o Governo às cordas nesta questão, ao sublinhar que ouviu Centeno dizer, no dia anterior, que estava disponível para colocar esta questão (renegociar os juros da dívida) no contexto europeu.

E onde entram Passos e Costa aqui? Costa não entra, mas Passos sim, porque também ouviu Centeno e quis, por isso, exigir ao primeiro-ministro que esclarecesse “, de uma vez por todas, se vai renegociar os juros da dívida em Bruxelas”. António Costa não lhe deu resposta, deixando em vigor a resposta dada pelo seu ministro das Finanças no dia anterior:

“É da responsabilidade do Governo honrar essas obrigações, mas a discussão apenas pode ser tida no contexto europeu, e o Governo está disposto a tê-la”, tinha dito Centeno.

Mas a história não ficou por aqui. A maior exigência feita pela esquerda à esquerda do PS durante este debate foi transportada para fora do plenário, onde o líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, quis insistir naquilo que Passos tinha colocado diante de Costa sem ter qualquer reação. A resposta foi-lhe dada a partir do corredor ao lado, onde o líder parlamentar do PS, Carlos César, declarava não “ver o tabu sobre a dívida”, mas sem querer estender-se muito sobre a matéria além das generalidades: “Portugal e também outros países estão conscientes que há dívidas muito elevadas e encargos muito penosos que comprometem recursos que gostaríamos de desviar para o crescimento económico e para a melhoria do Estado Social”.

Uma maioria que é alternativa ou uma maioria sem alternativa

António Costa não perdeu a hipótese de tentar provar ao PSD e ao CDS que, afinal, havia mesmo uma alternativa ao corte de rendimentos e direitos sociais. Tentou, porque sociais-democratas e democratas-cristãos continuam a recusar-se a aceitar essa versão.

Neste capítulo, Telmo Correia, do CDS, acabou por protagonizar um dos momentos altos do debate parlamentar, ao traçar o modelo de “monge trotskista” que o Governo está, à força do aumento de impostos indiretos, a tentar formar. Um “monge” que não apanha sol, que só anda a pé, que não fuma, não bebe “e nem prazer de uma bebida açucarada lhe resta”.

Pedro Passos Coelho aproveitou o ritmo e acusou o “Governo das esquerdas” de “não ter uma alternativa” para implementar no país.

A António Costa, o tiro passou ao lado: não só insistiu na ideia de que este Orçamento era a prova provada de que havia de facto alternativa, como viu os parceiros de esquerda a confirmar isso mesmo: apesar de todas as limitações e constrangimentos, este é um Orçamento de mudança, foram dizendo, afinados, Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e Heloísa Apolónia.

A maioria está sólida e mesmo a questão mais melindrosa em cima da mesa — a reestruturação da dívida pública — parece ter conseguido algum espaço neste debate. Em quase tudo o resto que esteve em jogo, como na questão do pagamento especial por conta ou na regulamentação dos recibos verdes, Governo e a maioria parecem articulados. PCP e BE pediram melhorias na especialidade e os ministros de cada área (sobretudo das Finanças e Segurança Social) foram mostrando abertura para negociar nesse debate que aí vem nas comissões, e que só termina no final de novembro.