Acusado de 31 crimes, três dos quais de corrupção passiva de titular de cargo político, José Sócrates afirma em entrevista na RTP que a acusação da Operação Marquês é “um vazio” e que é um “embuste” que o dinheiro depositado em nome de Carlos Santos Silva seja seu.

“Nunca fui um primeiro-ministro corrupto”, foi a primeira resposta de José Sócrates sobre a principal acusação que é feita pela equipa de sete procuradores liderados por Rosário Teixeira.

Na primeira entrevista depois de ter sido formalmente acusado de três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 crimes de branqueamento de capitais, 9 crimes de falsificação de documento e três crimes de fraude fiscal qualificada, Sócrates apostou numa estratégia de tentar descredibilizar a acusação com cerca de 4000 páginas, atacando pontos muito concretos do texto do Ministério Público e com o tom e o discurso de sempre: indignado com qualquer suspeita e assegurando que está a ser vítima de uma cabala.

No final da entrevista, Sócrates irritou-se com duas perguntas do entrevistador Vítor Gonçalves sobre como pagava atualmente as suas despesas, tendo em conta que tinha necessitado de empréstimos de Carlos Santos Silva até 2015. “Desculpe lá, mas o que é o senhor tem a ver com isso?!”, questionou Sócrates, que ocupou exclusivamente cargos políticos desde os anos 90 até 2011. Mais calmo, respondeu que tinha a sua pensão de deputado como única fonte de rendimentos.

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Os empréstimos em numerário de Santos Silva

A primeira parte da entrevista foi marcada com os empréstimos de Carlos Santos Silva e com os levantamentos em numerário. Confrontado com o levantamento de mais de 1 milhão de euros em dinheiro vivo de que terá beneficiado, Sócrates admite que Carlos Santos Silva tenha feita feito levantamentos em notas mas recusa que o montante referido pela acusação lhe tivesse sido entregue. “O facto de o meu amigo levantar dinheiro em numerário… como é que você prova que me foi entregue esse dinheiro? Fundamente, prove, sff! Não pode provar porque isso não é verdade”.

“Como é que o Ministério Público prova o que diz?”, questionou retoricamente Sócrates numa frase que repetiria de forma regular ao longo do programa da RTP.

O ex-líder do PS foi confrontado com os pedidos de dinheiro em código que fazia a Santos Silva (“fotocópias”, “livros”, “aquilo que eu gosto muito”). “Temos um modo de falar… Não me recordo de nada disso. Mas é disso estamos a falar? Foi por isso que me prenderam?”, respondeu, vitimizando-se e alegando que a sua prisão foi ilegal e não respeitou a lei.

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Porque é que foram feitos empréstimos em dinheiro e não por transferências bancárias? “Bem… Vamos lá ver… Isso foi uma decisão do meu amigo eng. Carlos Santos Silva… Ele achava que era melhor assim. O eng. Carlos Santos Silva não roubou nada a ninguém. O dinheiro era dele. Ele tinha o dinheiro em cofres. Ele usava muito isso. Era um empresário tradicional“, explicou.

Isso não é uma forma de ocultar a origem do dinheiro? “Desculpe mas eu não aceito isso. Isso não foi feito para ocultar nada a ninguém. Com certeza que não íamos alardear… Eu estava a pensar em hipotecar a minha casa e ele disse-me: «Não faças isso». Foram quantias modestas, 4.000/5.000 euros. Depois foram quantias mais avultadas”, disse.

Confrontado com os empréstimos quando foi primeiro-ministro, e quando Carlos Santos Silva tinha relações contratuais com o Estado, Sócrates admitiu: “Isso seria censurável e eu não faria. Uma única vez, ele emprestou-me 5 mil euros para uma emergência qualquer”, afirmou, desvalorizando.

A casa de Paris

Sobre o famoso apartamento na Av. President Wilson, avaliado em cerca de 3 milhões de euros e cuja propriedade será sua, José Sócrates desmente um dos principais indícios reunidos pelos investigadores: que tenha determinado e definido as obras de remodelação do imóvel. “Isso não é verdade. Não é verdade que eu tenha dado indicação sobre como fazer ou não fazer no apartamento de Paris”, afirma.

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Os quadros e o testamento

José Sócrates diz que sabia que Carlos Santos Silva era sócio do seu primo José Paulo Pinto de Sousa e diz que a explicação para o testamento que foi encontrado pelo Ministério Público num cofre na Suíça, e no qual Santos Silva dava 80% dos fundos (6 milhões de euros) que tinha numa das contas ao seu primo José Paulo, reside num negócio da venda de um terreno de salinas que a família do seu primo tinha em Angola. “Eu sou alheio a esse negócio”, garante.

O entrevistador nunca deixou de escrutinar o principal argumento da defesa de José Sócrates: o dinheiro de Carlos Santos Silva são empréstimos. “Se estava em emergência financeira, por que razão gastou o dinheiro em viagens, restaurantes, em quadros?, perguntou o jornalista da RTP. ”

Isso vai acabar, sabe? Isso não é verdade”, diz Sócrates. Desmentiu que tivesse feito gastos superflúos com o dinheiro que recebeu de Santos Silva e afirmou sobre os quadros que alegadamente terão sido oferecidos pelo seu amigo e alegado testa-de-ferro: “Convenci o eng. Santos Silva a trocar um quadro de Júlio Pomar por sete ou oito quadros que tinha em casa e que ele gostava mais”, explica o ex-primeiro-ministro, sem especificar os quadros de que fala.

A abstenção contra a OPA da Sonae e os encontros com Ricardo Salgado

Dos crimes imputados ao ex-primeiro-ministro de Portugal entre 2005 e 2011, destacam-se os três de crimes de corrupção passiva para ato ilícito. A equipa de procuradores liderada por Rosário Teixeira acusa Sócrates de ter sido alegadamente corrompido por Ricardo Salgado para proteger os interesses do Grupo Espírito Santo (GES) na Portugal Telecom, pelo Grupo Lena e devido a um empréstimo concedido pela Caixa Geral de Depósitos a um grupo de investidores liderados por Hélder Bataglia para comprarem o resort de luxo de Vale do Lobo.

Sobre a OPA da Sonae, um primeiro momento em que o seu governo terá favorecido o GES ao lutar contra a operação de Belmiro e de Paulo Azevedo, José Sócrates nega qualquer favorecimento e volta a dizer que o Ministério Público não tem provas. “O Ministério Público diz que, «entre 1 de março e 18 de abril de 2006, o arguido José Sócrates colocou o Governo aos interesses do GES». Isto é uma afirmação gravíssima e a primeira pergunta é: onde é que está a prova disso?”, perguntou de forma retórica.

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“Nunca me encontrei com o dr. Ricardo Salgado antes de 13 de outubro de 2006. Ora, eles dizem aqui [na acusação] que eu fiz um acordo entre o 1 de março e de 18 de abril de 2016. E como é que eu sei isto? Porque fui ver o registo de entradas na residência oficial do primeiro-ministro. Eu recebi-o, a seu pedido o meu gabinete, no dia 13 de outubro de 2006. Foi a primeira vez que falei com ele. Nunca falei com ele” noutros espaços “sem ser no meu gabinete”, afirma. Sócrates insistiu no que sempre disse: sempre teve um relacionamento institucional com Salgado e nunca fez parte dos círculos sociais do líder informal da família Espírito Santo.

Num dos momentos altos da sua argumentação, José Sócrates nega que tenha dado instruções orais ao representante do Estado na Assembleia-Geral (AG) da Portugal Telecom (PT) que votou a desblindagem dos estatutos exigida pela Sonae. Tais instruções seriam no sentido de a golden share fosse utilizada caso fosse atingida uma maioria de dois terços — o mínimo exígivel pelos estatutos da PT para que a proposta da Sonae, que permitiria acabar com os limites dos direitos de voto, fosse aprovada.

E para provar o seu desmentido, Sócrates mostrou em direto um despacho do ‘seu’ secretário de Estado do Tesouro, Carlos Costa Pina, em que aprovou o voto de abstenção para ser transmitido a Sérvulo Correia, líder do escritório de advogados com o mesmo nome e representante do Estado na AG da PT. “Eu farto-me de dizer nesta entrevista que «isto é falso, isto é mentira». Pois é. Mas está aqui a prova!”, mostrando de seguida uma cópia de um documento do Ministério das Finanças alegadamente assinado por Costa Pina no dia 26 de fevereiro de 2007.

José Sócrates também nega, citando Carlos Santos Silva, então presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD), que alguma tenha dado instruções à CGD para votar contra a proposta da Sonae.

O Grupo Lena, o TGV a Venezuela e Manuel Pinho

O ex-líder do PS acusa o Ministério Público de “criminalizar uma gestão política, pretendem criminalizar um tempo político [dos Governos Sócrates]. O TGV, as escolas, agora o novo processo da EDP que abriram contra o Manuel Pinho [ex-ministro da Economia do Governo de José Sócrates] é uma pretensão de criminalizar um período político”.

Sobre a imputação feita pelo MP de que os seus governos terão beneficiado o Grupo Lena na adjudicação de um concurso relacionado com a construção da Rede de Alta Velocidade, na adjudicação de diversos contratos da Parque Escolar e na abertura de portas no mercado da Venezuela, José Sócrates voltou, uma vez mais, a negar tudo.

“Na questão do Grupo Lena há três questões: o TGV, a Parque Escolar e a Venezuela. O MP pretende criminalizar a diplomacia económica. Eu pus o Governo a trabalhar na diplomacia económica. Quando fui à Venezuela pela primeira vez não sabia de nenhum projeto da Lena para a Venezuela. Apenas abrimos portas não só para o Grupo Lena mas também para outras empresas de construção como a Teixeira Duarte. As exportações portuguesas subiram mais de 1000% para a Venezuela, para a Argélia, para Angola — só para falar de 3 países que a acusação refere”, diz.

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Sócrates nega igualmente que tenha tido qualquer interferência na alteração do caderno de encargos para alegadamente beneficiar o consórcio de que fez parte o Grupo Lena e que veio a ganhar o direito a uma indemnização superior a 100 milhões de euros depois de o seu Governo ter adjudicado a construção da linha de alta velocidade Poceirão/Caia em dezembro de 2009 quando Portugal já estava em período de pré-emergência financeira. “No TGV estou acusado de ter colocado uma alínea no articulado mas isso esbarra com as provas. O Tribunal Arbitral diz que essa alínea foi negociada entre o júri do concurso e a o consórcio. O Governo não tem nada a ver com isso”, assegura.

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“Como é que o senhor paga as suas despesas?”

O jornalista Vítor Gonçalves terminou a entrevista, questionando o ex-primeiro-ministro sobre os rendimentos que financiam o pagamento das suas despesas — o que deixou José Sócrates alterado e furioso.

“Isso é uma pergunta inacreditável. Desculpe lá, mas o que é o senhor tem a ver com isso?! O que é que o Vitor Gonçalves tem a ver com isso? Isso é uma pergunta que um jornalista faça?”, questionou, visivelmente indignado e irritado.

Contudo, e apesar de ter ficado incomodado com a pergunta, respondeu: “Eu vivo da minha pensão do ex-deputado. É o meu único rendimento. Já tive umas ofertas mas não quis aceitar por causa de toda esta situação [da Operação Marquês]. Isso diz muito do jornalismo português que você acabe esta entrevista com essa pergunta”, criticou.

O jornalista da RTP não desistiu e insistiu numa segunda pergunta: “ainda vive de empréstimos do eng. Carlos Santos Silva?”

“Essa pergunta é uma afronta. É indigna de um jornalista. É uma pergunta do Correio da Manhã e eu não respondo a jornalistas do Correio da Manhã”, disse Sócrates, a sorrir.