Os líderes dos dois maiores partidos lado a lado, na mesma sala, com um acordo de regime assinado é uma raridade na política nacional, embora não seja inédito. Não deixa de ser curioso que aconteça numa altura em que o Governo que está em funções se apoia, há quase três anos, em posições conjuntas assinadas com outros três partidos que nunca conseguiu fotografar em conjunto. O momento desta quarta-feira ao final do dia vai juntar António Costa e Rui Rio em duas matérias de peso — fundos comunitários e descentralização — e acontece mais de 11 anos depois do último grande pacto de regime, o da Justiça, entre PS e PSD. Uma fotografia de família que o socialista não conseguiu com quem tem tido por perto nos últimos tempos políticos. Mas há diferenças entre estes vários acordos, que vão além das óbvias sobre conteúdos.

10 de novembro de 2015 foi o dia em que a “geringonça” ganhou vida, na forma de três posições conjuntas assinadas entre o PS e aqueles que são hoje os seus parceiros no Parlamento, PCP, BE e Verdes. Até à hora das assinatura desses acordos ninguém conseguia garantir que isso fosse mesmo acontecer.

Primeiro, porque até ao final da negociação os comunistas insistiram sempre que não havia necessidade de um documento escrito (o Presidente Cavaco Silva fazia disso um ponto de honra), depois porque se opunham a um acordo conjunto, assinado a quatro, e, por fim, porque não queriam qualquer cerimonial no momento da assinatura. O mais que permitiram — à última hora — foi que o fotógrafo oficial do PS registasse o momento.

Quase dois meses de negociações para conseguir apoio maioritário para constituir Governo, o máximo que António Costa teve para mostrar publicamente que a “geringonça” já existia foram três fotografias de quatro líderes partidários a assinarem documentos separados no canto de uma mesa (com cadeiras pelo meio) de uma sala inóspita. Mas saiu da sala levando debaixo do braço três posições conjuntas que permitiram que chegasse a primeiro-ministro. Nos documentos estavam princípios políticos comuns, linhas vermelhas e ainda algumas medidas concretas negociadas com cada uma das partes.

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António Costa, Catarina Martins, Acordo de Esquerda, esquerda, PS, BE

Agora, três meses depois de Rui Rio ter sido eleito presidente do PSD e três anos depois de Costa ter declarado o “fim do aro da governação”, os dois partidos que faziam parte do tal arco voltam a encontrar-se em dois temas que o social-democrata aceitou negociar para chegar a um pacto de regime com o PS. Costa e Rio apresentam acordos sobretudo com princípios gerais, ainda ficará muito para negociar daqui para a frente. Bem diferente, diz Marques Mendes, do que aconteceu em 2006, no outro grande pacto de regime que pôs em acordo os dois maiores partidos do sistema político português.

Até agora, além do Pacto para a Justiça assinado em setembro de 2006, não há registos de muitos acordos do género. Marques Mendes arrisca dizer que só mesmo duas revisões constitucionais, a de 1989 e a de 1997, estiveram próximas do que aconteceu em 2006, quando era líder do PSD, e o dia de hoje, “com estas negociações intensas e acordos formais”. O Pacto da Justiça “levou 6 meses de negociação”, diz o social-democrata ao Observador.

“O essencial foi negociado antes das férias de Verão”, conta o ministro da Justiça de então, Alberto Costa. Nas equipas negociais estavam, do lado do Governo, o primeiro-ministro José Sócrates e Alberto Costa, e do lado do PSD, o líder Marques Mendes e o líder parlamentar Marques Guedes (num primeiro momento esteve também Paula Teixeira da Cruz).

“Incluiu muitas matérias que estão hoje vertidas em lei, como a autonomia financeira do Conselho Superior de Magistratura, a reforma do Código de Processo Penal (com o atual regime do segredo de justiça), a reforma do Centro de Estudos Judiciários e a reforma do Mapa Judiciário”, diz o antigo ministro socialista sobre. Ainda hoje diz que “infelizmente na altura houve uma mudança de liderança num dos partidos [PSD] que assinou o acordo ” e a parte relativa ao Mapa Judiciário acabou por não avançar nos moldes previstos no Pacto. Luís Marques Mendes foi substituído na liderança por Luís Filipe Menezes.

Mas para lá do conteúdo, há diferenças face ao pacto firmado esta quarta-feira? Algumas e, na política, a forma conta e muito, sobretudo pelos sinais que dá para o exterior. Por partes: tal como em 2006, os dois líderes políticos ficam-se pelas declarações. Não há previsão de um momento formal, com ambos a assinarem o acordo sobre fundos comunitários e descentralização, mas vão estar os dois juntos em São Bento, como declarações à imprensa conjuntas, depois de um reunião. Aliás, quando questionado sobre a existência de um momento de assinatura com Costa e Rio, o gabinete do primeiro-ministro desvalorizou sempre a necessidade disso acontecer. Prefere antes focar a reunião de trabalho entre os líderes para concluir as negociações que têm sido conduzidas pelos ministros do Planeamento, Pedro Marques, e o da Administração Interna, Eduardo Cabrita, com Manuel Castro Almeida e Álvaro Amaro, ambos em representação do PSD.

Ora, em 2006, o pacto da Justiça teve direito a uma cerimónia pública para as assinaturas. Aconteceu no Parlamento, no salão nobre, meia hora antes de José Sócrates e Luís Marques Mendes terem feito a conferência de imprensa sobre o tema, em São Bento, mas não foram estes líderes políticos que assinaram o Pacto. Deixaram essa tarefa para os líderes parlamentares, Marques Guedes (PSD) e Alberto Martins (PS). “Havia uma série de alterações legislativas previstas que tinham de ocorrer no âmbito parlamentar”, justifica Alberto Costa. “O acordo era político e tinha de ser traduzido em várias leis”, acrescenta Mendes que se lembra de Sócrates ter resistido durante um ano aos seus apelos para aquele pacto.

Resumindo, hoje há um acordo estabelecido por escrito e uma declaração conjunta com direito a fotografia, mas não há um cerimonial público para a assinatura. Menos do que aconteceu em 2006, mas mais no plano formal do que António Costa conseguiu dos parceiros da “geringonça”, em 2015. Porquê? “É mais fácil, porque os dois líderes políticos querem fazer o acordo, enquanto que nas posições conjuntas o PCP, nomeadamente, o fez de forma envergonhada, sem grande convicção”, analisa Mendes. Já Alberto Costa, prefere dizer que há “grandes diferenças na natureza dos dois acordos”, mas os dois entendimentos têm o mesmo objetivo: “Pretendem estabilizar e oferecer garantias para o cumprimento das opções que estão nos acordos”. Resta saber se abre a porta a outros acordos do género entre estas duas partes que estiveram afastadas nos anos mais recentes e, claro, o efeito que tudo isto provoca entre os parceiros do Governo no Parlamento.