Comparações a Cavaco Silva, referências a Assunção Cristas e acusações de demagogia. O debate sobre a despenalização da eutanásia desta terça-feira acabou por ficar também marcado pela troca de argumentos entre bloquistas e comunistas. Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, tomou a palavra para acusar o PCP de se juntar aos que apostam numa “estratégia do medo” e de desinformação; o comunista António Filipe reagiu dizendo que o PCP, ao contrário de outros, pensa sempre e só pela “sua cabeça”.
Os dias que antecederam o debate já tinham sido marcados pela tensão crescente entre os dois partidos. Quando os comunistas revelaram o seu sentido de voto no debate de terça-feira fizeram-no através de um comunicado em que sustentavam a sua posição de princípio, fundamentalmente, em dois aspetos: na dignidade da vida em todas as suas circunstâncias e na recusa de um Estado que oferece a morte sem garantir “uma vida com condições materiais dignas em todas as suas fases”.
O comunicado do PCP não era apenas o reflexo da posição de princípio do partido. Havia também uma crítica explícita aos que procuram, através de um tema como este, alimentar “protagonismos e agendas políticas promocionais”. Uma crítica — a de sede de protagonismo — que o PCP tem feito recorrentemente ao Bloco de Esquerda, desde os primeiros dias do partido fundado por Francisco Louçã, Luís Fazenda, Fernando Rosas e Miguel Portas. No editorial do Avante! sobre o tema, essa acusação era recuperada, sem que o destinatário final fosse concretizado. “[A despenalização da eutanásia] tem como principal sustentáculo um movimento de opinião com forte apoio mediático, visando consagrar o direito à morte na forma de eutanásia como pretensamente mais digna”, escreveram os comunistas.
Do lado do Bloco de Esquerda, as críticas foram tão ou mais duras, com vários bloquistas a aproveitarem as redes sociais para censurarem a posição do PCP. Um artigo publicado no site do PCP, em que se sugere que na Holanda há “idosos com maiores rendimentos que emigram para as zonas de fronteira com a Alemanha para evitarem a possibilidade de serem eutanasiados”, foi partilhado ad nauseam por vários protagonistas ligados ao Bloco. À cabeça, Francisco Louçã: “Não é Opus Dei, é o PCP a escrever esta fábula: os ricos holandeses fogem do país com medo de serem eutanasiados. Cria vergonha alheia e não imaginei nunca que um partido como o PCP chegasse a este ponto”, escreveu o fundador do partido no Facebook.
As farpas de Mariana Mortágua: Cavaco, Cristas e Saramago
O debate levava já mais de 90 minutos quando António Filipe interveio finalmente para fundamentar a oposição do PCP aos quatro diplomas que propunham a despenalização da morte assistida. O deputado comunista discursou durante mais de 15 minutos, sendo que o grupo parlamentar já tinha pedido dois minutos d’Os Verdes (PEV) para intervir. Acabou por esgotar o seu tempo, não assegurando margem para responder a qualquer questão que viesse a ser colocada — o contraditório previsto no regimento da Assembleia da República. Foi o que bastou para motivar a primeira crítica de Mariana Mortágua.
“Tenho pena que o senhor deputado António Filipe tenha preferido esgotar o seu tempo, não deixando tempo para debate”, começou por dizer a bloquista. Era um anúncio do que aí vinha.
No seu discurso, Mariana Mortágua acusou depois o PCP de usar uma “estratégia do medo, inventando “que a eutanásia é imposta a idosos ou a doentes mentais”. “O senhor deputado que leu os projetos e sabe que isso é uma mentira grotesca”, interpelou a bloquista.
O ataque da bloquista acabaria por atingir proporções de insulto para um partido como o PCP quando Mariana Mortágua comparou a posição dos comunistas às de Cavaco Silva, Isilda Pegado e Assunção Cristas. “A nossa diferença é sobre a escolha política. Se a consciência de Cavaco Silva, da Isilda Pegado, do deputado António Filipe ou da deputada Assunção Cristas determina que, independentemente do sofrimento, a vida só é digna se for até ao último sopro determinado por Deus ou pela sua condição física, eu respeito essa consciência”, ironizou Mortágua, provocando alguns protestos na bancada do PCP.
O golpe de misericórdia pensado por Mariana Mortágua veio pelas palavras de José Saramago, que chegou a ser um militante convicto do PCP antes de se ir afastando, progressivamente, do partido, sem que houvesse espaço, ainda assim, para uma rutura formal. Disse Mariana Mortágua: “Lembre-se das palavras de Saramago sobre Ramon Sampedro: ‘Ninguém tem o direito de dizer a uma pessoa, você vai ficar aí, ligado a esses tubos. Devemos aceitar-lhe a morte porque é isso que a pessoa quer. Não matamos, mas respeitamos quem nos diz por favor ajudem-me’”.
A intervenção de Mariana Mortágua, a mais dura crítica dirigida ao PCP na tarde de terça-feira, causou um incómodo generalizado na bancada comunista. O que aconteceu a seguir foi prova dessa tensão evidente: António Filipe fez uma interpelação à mesa, lamentando o facto de “um grupo parlamentar” ter feito uma pergunta “sabendo que não tinha tempo para responder” e perguntando se o Bloco disponibilizava algum do seu tempo para que pudesse responder.
Com Ferro Rodrigues a tentar mediar a situação, Pedro Filipe Soares acusou o comunista de “ter dado a entender” que o Bloco só tinha feito aquela intervenção por saber “de antemão que [António Filipe] não ia ter tempo para responder”. “É falso”, sugeriu. Ainda assim, os bloquistas decidiram conceder “30 segundos para a resposta”. “Agradeço encarecidamente os 30 segundos”, devolveu, ácido, António Filipe.
O deputado comunista voltou a defender a posição de princípio do PCP — a valorização da vida e o Estado como garante da dignidade em todas as fases da doença — e fez mais uma crítica implícita (e recorrente) ao Bloco de Esquerda, cuja coerência do projeto político os comunistas sempre contestaram. “Nós pensamos pela nossa cabeça e não tomamos as nossas oposições por oposição seja a quem for”, rematou António Filipe. Um duelo singular visto à lupa.