Título: “Alguns Humanos”
Autor: Gustavo Pacheco
Editora: Tinta-da-China

O homem tem hoje uma relação difícil com a natureza. Durante séculos prevaleceu a visão antropocêntrica de que o homem seria não só o pináculo da Criação como seria de uma categoria à parte do resto dos animais e que toda o mundo natural fora criado para que o homem dele dispusesse como bem lhe aprouvesse. Esta visão antropocêntrica, que está claramente expressa na Bíblia e foi endossada pela religião cristã, foi grandemente reforçada pelos formidáveis avanços na ciência e tecnologia durante o século XIX, levando a que, no início do século XX, Karl Kraus reagisse ferozmente contra a arrogância de uma humanidade que “molesta a natureza e diz que a conquistou. Inventou a moral e a máquina para expulsar a natureza da natureza e do ser humano e sente-se aconchegado numa arquitectura do mundo sustentada pela histeria e pelo conforto”. Em “A descoberta do Polo Norte”, texto publicado na revista satírica Die Fackel, em 1909. Kraus lamentava que o homem estivesse ocupado em “transformar o mundo das forças elementares num império da razão” e alimentasse um “sentimento de superioridade sobre a natureza” e advertia que os triunfos sobre a natureza eram vitórias de Pirro.

Os ainda mais estonteantes progressos científicos registados ao longo dos séculos XX e XXI levaram, nalgumas mentes, ao exacerbamento da sensação de omnipotência da ciência, havendo mesmo quem especule sobre uma civilização que se libertará dos limites impostos pelo ecossistema Terra através da capacidade de “terraformar” planetas ou de criar colónias autónomas no espaço, ou sobre a possibilidade da fusão homem-máquina, que permitirá ao homem emancipar-se de vez das limitações do seu corpo biológico, cortar os vínculos com o mundo natural e aceder a um patamar semi-divino.

Todavia, as ciências da vida – e em particular a genética – vieram revelar que são, afinal, poucas as diferenças entre homens e outros animais: o nosso genoma coincide com o dos chimpanzés em 96-98%, com o das vacas em 80% e até a humilde mosca da fruta partilha 60% do seu material genético com o presunçoso Homo sapiens. São dados que fornecem argumentos ao coro, cada vez mais numeroso e enfático, que pretende converter a humanidade à dieta vegan (como pode alguém dotado de ética regalar-se com os bifes de uma prima com a qual partilha 80% do genoma?) e reclama para os animais – em particular para os animais de companhia e os grandes símios (chimpanzés, gorilas e orangotangos) – um estatuto que cada vez mais se aproxima da equiparação ao ser humano.

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As fronteiras entre humanos e animais e entre humanos civilizados e “selvagens” e a relação do homem com a natureza são temas recorrentes em Alguns Humanos, o livro de estreia de Gustavo Pacheco (n. 1972, Rio de Janeiro), e estão particularmente em evidência no conto de abertura, “Dohong”, sobre uma polémica (verídica) em torno da exibição, no início do século XX, de Ota Benga, um pigmeu congolês, como atracção especial da Casa dos Macacos do Jardim Zoológico do Bronx, e que é narrado do ponto de vista de Dohong, um orangotango proveniente das florestas de Bornéu, que desenvolveu uma relação de amizade com Dohong.

Ota Benga no Jardim Zoológico do Bronx, 1906

“Dohong” tem pontos de contacto com “História natural”, que envolve dioramas representando o dia-a-dia de índios norte-americanos (e pigmeus congoleses) num Museu de História Natural e põe em confronto a antropologia e etnografia da primeira metade do século XX com os movimentos identitários das minorias “indígenas” e a “correcção política” do nosso tempo.

Os “choques civilizacionais” entre povos indígenas e homem branco estão no cerne de “Zakaly” e “Kuek”, que tratam do destino de rapazes – um nativo da África Oriental e um índio botocudo, respectivamente – retirados à força do seu meio e levados para terras distantes (“Zakaly” é particularmente incipiente e mais parece um exercício realizado para um curso de escrita criativa).

Os contos “Alguns primatas” e “Alguns humanos” têm entre si mais do que afinidade temática, são imagens reflectidas num espelho: no primeiro uma personagem feminina ouve o ex-companheiro expor-lhe o romance que está a escrever, sobre primatas e suas relações com humanos que os estudam, mas a discussão está sempre a derrapar do plano literário para o das relações sentimentais entre a mulher e o homem. Em “Alguns humanos” é a vez da mulher (a mesma) discutir com o actual companheiro (outro escritor) o romance em que trabalha e que também é sobre primatas e cientistas. Quer um quer outro soam pedantes, rebuscados e artificiosos e inserem-se da nova e maçadora vaga de ficção cujo assunto é a escrita de ficção e as suas difculdades e vicissitudes e que dá ideia que muitos escritores ganhariam imenso em sair dos apartamentos em que labutam frente ao computador e ir viver uns dias na selva, a observar macacos ou a caçar gambuzinos.

Muriqui, espécie de macaco que é protagonista do conto “Alguns primatas”

Marcelo, a personagem central de “Ambystoma mexicanum ou o labirinto invisível”, prolonga a sua adolescência bem para lá dos 30 anos, até que se depara numa exposição com um axolotl – uma salamandra mexicana que conserva características juvenis durante toda a vida – e não volta a ser o mesmo.

Tudo isto é engenhoso e imaginativo, mas, por vezes, também esquemático, inconsequente e demasiado auto-consciente, e falta a Pacheco a arte de W.G. Sebald (que, não por acaso, é citado num dos contos) para dissolver fronteiras entre realidade e fantasia e conciliar divagações sinuosas com coerência narrativa.

Se há salamandras que nunca chegam a ser inteiramente adultas, nos dias frenéticos de hoje há escritores que nascem já maduros, consagrados e com lugar reservado no panteão, pelo que a contracapa desta primícia anuncia “a estreia literária de um grande escritor”, frase que consegue combinar, em apenas 35 caracteres, um pleonasmo, um oxímoro e uma hipérbole.