Antes de ter passado para as mãos do Teatro do Silêncio – estrutura fundada por Maria Gil em 2004, que partilha a direção artística com Miguel Bonneville – o Lavadouro Público de Carnide era palco de concertos de rock alternativo. Percebe-se. Tem toda a pinta para isso: luz reduzida, um tanque gigante para dividir músicos e público, uma acústica particular e um quintal cheio de luz e estendais. Bom, na verdade, é uma ocupação partilhada, sim, que o Lavadouro Público de Carnide antes de ser de alguma organização é do povo. Durante o dia, até às 17h, encontra-se aberto para quem o quiser visitar, para quem necessitar de lavar roupa suja. Este domingo, às 11h – e todos os últimos domingos de cada mês até Junho – a proposta é outra, que venha assistir à visita guiada dramatizada e participativa chamada “À Descoberta do Lavadouro”, com o subtítulo “Uma visita à Lisboa de outros tempos”. A inscrição tem que ser feita antecipadamente pelo valor de 3€ (producao.teatrodosilencio@gmail.com / 914 632 675, Vanda Cerejo).

O Teatro do Silêncio faz em Carnide, desde 2004, um trabalho de envolvimento da comunidade, exploração da tradição, para que continuemos vivos e seres pensantes. Para isso muito tem contribuído a parceria com a Junta de Freguesia. “É um sítio emblemático aqui na freguesia, é um lavadouro com cem anos – pelo menos cem anos, é coberto há cem anos, mas já existia antes – que é Património Municipal ainda que seja gerido pela Junta de Freguesia de Carnide. Era um sítio comunitário, sempre fez parte disto. Entretanto, isto foi um sítio para concertos de rock alternativo durante alguns anos, mas depois este bairro aqui ao lado, cuja maior parte dos moradores são reformados, fizeram pressão para que os concertos acabassem, devido ao ruído provocado”, explica Maria Gil.

Uma vez terminada esta vida rockeira do Lavadouro, a Junta procurou de parceiros para trabalhar o espaço e no espaço.

“Propuseram-nos que viéssemos para aqui com a condição de ele continuar a ser um espaço partilhado, ou seja, durante o dia funcionar como lavadouro e depois podíamos fazer aqui o que achássemos”, conta Maria Gil.

Estávamos em 2011. Começaram por programar espectáculos que já tinham, reposições, adaptações feitas para aquele espaço. Em 2012, “começou a fazer sentido partilhar o espaço, isto porque é um espaço algo limitado e nem todos os nossos espectáculos fazem sentido ser trabalhados aqui, neste contexto. Então começámos a acolher outros criadores, projetos de investigação site-specific, embrionários, é um tipo de trabalho com o qual nos identificamos, criação experimental, workshops, por aí”, explica Maria Gil.

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“À Descoberta do Lavadouro” é mais um exemplo nesse sentido. É uma visita guiada dramatizada, criada e interpretada por Jéssica Lopes e Mariana Marques, finalistas da ESAD – Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha – que estão a estagiar no Teatro do Silêncio. Do que vimos – um ensaio parcial, que nestas coisas ver tudo é sempre um desvendar total por vezes desapropriado – há a ideia de integrar no espaço no pensamento. O que é que o espaço deu a estas duas jovens finalistas, como confirma Mariana Marques: “A ideia foi partirmos do que o espaço nos pode dar para construir esta proposta”, explica. A mesma que, ocupando o interior do Lavadouro, fez dele um sótão de bonecas que ganham vida em si, com várias cores e adereços, com várias vontades, com histórias escutadas e agora transmitidas:

“Tivemos conhecimento das histórias das senhoras que vinham cá lavar a roupa, fizemos essa pesquisa, mas no meu caso, mais recentemente, decidi pensar no que não é óbvio, o que é que posso observar do Lavadouro que está para além da ideia funcional. E tentar perceber o que é que a estrutura me dava, o meu trabalho tem o texto mas estou basicamente a fazer tudo a partir do que o espaço me dá, utilizei a ideia da tela branca, do quadro branco, quando escrevi isso também pretendia utilizar a metáfora onde questiono se o branco é o vazio ou se nos possibilita uma infinidade de ideias e uma liberdade enorme”, enquadra Mariana.

E o sótão, pois claro, faz todo o sentido sendo esta uma atividade pensada para famílias e crianças. Um passo em direção ao exterior – ao tal quintal já referido – e vemos um gato a lamber as patas, deitado confortavelmente, como sempre os gatos se deitam, no muro do Lavadouro. É Jéssica na sua interpretação de um felino, e um felino distinto: o Teco dança, prende o cabelo com molas e polaróides, o Teco até lê poesia, enquanto cheira hortelã. “A minha parte partiu de uma instalação, ou seja, a cadeirinha, as fotografias, e a partir daí criei uma história sobre o gato e depois, de alguma forma, a história levou à autobiografia e ao facto de nunca ter conhecido a minha bisavó. Ir buscar as memórias que não vivi, mas que tenho porque me foram passadas. É ficção, ainda que seja verdade que a minha bisavó escrevia poesia, fazia tapeçarias. O gato foi para me apropriar do espaço, para criar isto com imagens, depois juntei a dança e fui buscar referências, a Isadora Duncan, a Pina Bausch, ‘A Sagração da Primavera’. Foi o que me trouxe o espaço, sim”, explica.

No final da visita há ainda um workshop sobre Como Lavar a Roupa à mão, que pretende “devolver o espaço às pessoas e estas poderem mexer na água, é uma maneira brincada de devolver o espaço”, garante Maria Gil, que está a fazer acompanhamento dramatúrgico da visita. Ideia que reforça na justificação para a criação desta atividade específica:

“Propusemos esta atividade, e que no fundo é abrir o espaço à comunidade, as pessoas têm esta curiosidade quando passam aqui, há uns que passam e se relacionam, outros que não faziam ideia, outros que faziam ideia mas nunca mais cá vieram, continuar a abrir o espaço à comunidade, mesmo que não seja para ver espectáculos”.

Há a D. Conceição, por exemplo, que mora no prédio em frente e que tem máquina de lavar em casa, mas que – embora cada vez menos – ainda vem ao Lavadouro porque, contam-nos, diz que a roupa fica melhor lavada. Ou a D. Lídia: “A D. Lídia vive no Bairro Padre Cruz, era assim uma espécie de guardiã do espaço, já viu aqui a Nossa Senhora e uma cobra voadora. Há cada vez menos pessoas, as senhoras que vinham vêm cada vez menos, mas ainda ontem chegou aí um homem, com os dois filhos, e que entrou porque viu a porta aberta. E eu convidei-o para vir no domingo, porque é uma atividade para famílias e ele respondeu: ‘não, não, quero mesmo é vir lavar os tapetes porque vou alugar a minha casa’. Há relações diferentes, mas sim, o espaço é utilizado residualmente, ainda que exista esta carga afetiva enorme com o espaço”, diz Maria.

Abaixo o pitoresco

Estas histórias destas mulheres podiam ficar apenas no eco do Lavadouro, a saltar de parede em parede. Mas não. Ainda que o Teatro do Silêncio assuma que muitos dos seus espectáculos são difíceis de enquadrar pela arquitectura e natureza do espaço, do Lavadouro Público de Carnide e das mulheres que o ocupam já brotou, se não for mais nada, pelo menos, muita inspiração.

“Houve um projecto [‘Medo e Feminismos’] que a Maria estava a fazer e para o qual me convidou em 2012. Falávamos da senhora Conceição, a senhora Conceição tem máquina, mas muitas das outras senhoras que aqui vinham não tinham, portanto era uma necessidade lavar roupa aqui. E havia muito uma relação quase pitoresca com o Lavadouro, ‘ai as pessoas ainda lavam a roupa à mão e ai que interessante’, isto foi na altura da Crise, e isto bateu-nos. As pessoas vêm lavar a roupa aqui, no inverno, com muito frio, água gelada e lavam-na à mão, porque não têm máquina de lavar de roupa, não têm opção”, explica Miguel Bonneville, que ainda acrescenta:

“Queremos quebrar com a ideia de pitoresco e quebrar com ‘ai que giro que é lavar roupa à mão’, queremos usar o Lavadouro para falar sobre ele, o que é que significa ainda estarmos aqui, o que é que significa hoje ainda existirem pessoas que não têm meios para ter máquinas de lavar a roupa e serem sobretudo as mulheres, por aí”.

Além da D. Conceição e da D. Lídia, há ainda a D. Marcela: “Há também a Marcela, que é uma senhora que vem da Amadora a pé, traz a roupa na cabeça e o marido, às vezes, também a ajuda [mete aspas na ajuda]. Chega aqui, ele fica a fumar cigarros e ela lava a roupa, isto foi em 2013. As pessoas diziam ‘ai que giro’ e nós chocados porque isso não era bem assim, era real. Queríamos cortar com essa ideia do lado exótico, de se lavar a roupa como nas aldeias, ‘Carnide é uma aldeia’. E também foi a ideia do ‘não se lava roupa suja em público’. Eu e o Miguel fazemos trabalho autobiográfico, ou seja, lavamos roupa suja em público, bastante. E a partir daí e deste espaço nasce a nossa primeira palestra-performance: ‘Medo e Feminismos’”, conta Maria Gil.

O Lavadouro vai continuar aberto. Para que se continue a lavar roupa suja em público. De forma literal, ou nem tanto.