Ainda o embarque no voo não tinha começado e em Lisboa um grupo de cozinheiros e jornalistas já discutia aquilo que poderia acontecer nessa noite, depois de galgados os poucos quilómetros que separam a capital de Portugal de Sevilha. Foi nessa cidade andaluza que, umas horas depois, Portugal soube que tinha um novo duas estrelas Michelin (a Casa de Chá da Boa Nova, do chef Rui Paula, em Leça da Palmeira) e quatro novos uma estrela: o Epur, do francês Vincent Farges; o Fifty Seconds, do chef Martín Berasategui com Filipe Carvalho (ambos em Lisboa); o Vistas, do chef Rui Silvestre (de Vila Nova de Cacela) e o Mesa de Lemos, do chef Diogo Rocha (em Viseu).

Guia Michelin: Portugal perde três estrelas, Rui Paula conquista a segunda e há mais novidade de norte a sul (e centro) do país

“Se rebentar aqui uma bomba desaparece grande parte da gastronomia portuguesa”, comentou-se já dentro do avião. José Avillez (Belcanto) sentava-se mais ao fundo, ao lado do seu braço direito, o chef David Jesus. Um pouco mais à frente Rui Paula e o seu sub-chef estavam muito próximos de Ricardo Costa (The Yeatman). Umas cadeiras atrás Henrique Sá Pessoa (Alma). Mais perto do fundo do avião, Gil Fernandes (Fortaleza do Guincho). Como já vem sendo hábito, todos estavam reunidos para participar na cerimónia de divulgação das novas estrelas que farão parte do Guia Michelin do ano que se aproxima, o de 2020, neste caso. Também como é hábito, as expectativas de quem ganha o quê já se tinham vindo a acumular há uns dias. Teríamos o primeiro três estrelas? Se sim, quem o conquistaria? O chef João Rodrigues finalmente receberia o segundo (e mais que merecido) “macarron”? O Euskalduna, no Porto, conseguiria por fim a tão desejada primeira? Tudo isto ia sendo discutido, mas sempre em ambiente descontraído. A tensão só se sentiria mais tarde.

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Os portugueses na foto de família dos vencedores da noite. Diogo Lopes/Observador

No átrio do hotel onde a maior parte dos convidados (chefs e jornalistas) estava alojado, vivia-se um grande frenesim por volta das 19h, uma hora a menos em Portugal. Cozinheiros, jornalistas, patrocinadores, e um sem fim de gente bem vestida (a gala assim o exigia) iam conversando de forma barulhenta. Em grupos, todos seguiram para o autocarro que os levaria para a cerimónia e a “comitiva” portuguesa, que entretanto tinha crescido ligeiramente, manteve-se unida. No meio do abanar da viagem, mesmo tendo em conta o escuro da noite e a névoa da chuva que já se sentia, eram visíveis as caras mais fechadas. Com o momento da verdade a aproximar-se, a tensão aumentava.

A chegada ao Teatro Lope de Vega, imponente e belíssima casa centenária, não tardou e em menos de nada as luzes baixaram e começou a gala. Primeiro os discursos formais do costume. Tudo em espanhol. Tudo sobre Espanha — até se louvou a importância da zona da Andaluzia para o negócio dos pneus, já que tem várias fábricas dos mesmos nesta região sul da Península Ibérica. Impossível não reparar que esta instituição conjunta, muito importante para o desenvolvimento de países e negócios, quase sempre parece ignorar o elemento “Portugal” que também a compõe. “Até quando?” pergunta-se. Até nascer um Guia só de Portugal, provavelmente, respondem-nos. “Isso alguma vez acontecerá?” — Talvez. Mas nunca em breve. Mas continuemos.

O chef Diogo Rocha a atender chamadas nas laterais do palco, minutos depois do fim da entrega de estrelas. Diogo Lopes/Observador

Depois de Angel Léon, o chef do tri-estrelado Aponiente, em Cádiz, receber o primeiro prémio de sustentabilidade do guia Michelin, à conta do seu trabalho com o mar e os seus frutos, começou o desfile de estrelas. Primeiro chamaram os novos uma estrela espanhóis (11, no total). Houve gritos, lágrimas, abraços apertados, beijos, correrias… Tudo. Tudo vale num momento de felicidade deste género. Depois vieram os portugueses, poucos, mas que se fizeram ouvir. Depois de tudo distribuído, chegaram os duas estrelas novos, também primeiro os espanhóis e só depois Rui Paula: “Eu queria falar em português para os que estão nesta sala e para os que estão a ver através do streaming”, disse logo o chef portuense quando lhe passaram o micro para a mão. Traído pela emoção que lhe embargou os olhos e as palavras, só conseguiu ressalvar “a sorte” que tem “em viver num país maravilhoso”. Tudo terminado — entretanto foi entregue a nova terceira estrela espanhola –, agora era festa e comemoração.

Vincent Farges não é homem de exteriorizar muitas emoções, mas olhando para a sua cara via-se o misto de alívio com felicidade ao ter conquistado o ambicionado astro. Estava “muito contente”, claro, mas a excitação do momento só culminou com um pedido: “Podes tirar uma foto? Mas tenta apanhar o ‘Michelin’ no fundo, por favor!”, disse ao Observador.

O lindíssimo Teatro Lope de Vega foi o pano de fundo da noite. Diogo Lopes/Observador

Enquanto isto se passava, Diogo Rocha estava meio escondido nas laterais do palco, a falar ao telefone e com cara de miúdo traquina. “Esta já ninguém nos tira!”, gritou logo. Completamente em êxtase, Rocha contou ao Observador a “tremenda alegria” que sentia por ver o seu trabalho reconhecido pelo Guia Michelin e por isso ser “muitíssimo importante para a sua região”, Viseu (de onde é natural), que com este galardão “passa uma mensagem” para outros negócios e investidores de que vale a pena apostar nessa zona do país. A pressão de ser todos os anos apontado à vitória da estrela já pesava, não esconde, daí o gosto especial que teve em finalmente conseguir agarrá-la.

Rui Silvestre tem sempre um rosto mais sério mas a emoção era tanta que não conseguia esconder a tremenda felicidade de voltar a conquistar a tão desejada estrela, isto depois de já o ter feito antes, em 2015, quando estava no restaurante Bon Bon, no Carvoeiro. “Estar aqui outra vez é como voltar a casa. A vida é feita de percalços e às vezes é preciso dar um passo atrás para depois dar uns quatro ou cinco à frente. Estou muito feliz por estar de volta”, conta ao Observador depois de já ter feito um sem fim de chamadas para Portugal: “Fiz logo uma vídeo chamada para a minha equipa e vi metade deles a chorar de alegria. Trabalhamos com pessoas muito jovens mas que trabalham com muito, muito afinco. Eles também perdem muitas horas de lazer, de tempo com a família. É muito importante para mim, como é óbvio, mas também extremamente importante para o resort, que passou muito tanto tempo a lutar por isto”, contou.

O espanhol Martín Berasategui foi uma das figuras da noite, somando duas estrelas em dois restaurantes (um deles o lisboeta Fifty Seconds), elevando para 12 o número total das que detém. Diogo Lopes/Observador

Se ganhar uma estrela já é emocionante, duas é ainda mais, Rui Paula que o diga. O simpático cozinheiro nortenho não escondeu ao Observador que vencer ali é uma alegria tão grande que quase o “derrota emocionalmente”. “Eu até estou habituado a falar, tanto em televisão como em algumas palestras, agora naquele momento foi tudo tão forte que me descontrolei um bocadinho [risos] Mas estou feliz!”, atirou. Como todos os seus colegas, não se inibiu de destacar a importância da sua equipa e da forma como todos trabalharam duro para chegar a este patamar. “A segunda estrela é muito importante para a Casa de Chá [da Boa Nova] porque os meus restaurantes são mesmo meus. Acho que tenho feito um trabalho consistente, tanto na lá como no DOC ou no DOP. Isto representa muito, daí eu me ter emocionado. Isto deve-se à minha equipa, quem trabalha lá bastantes horas todos os dias, com perseverança, consistência e amor para com aquilo que fazem.”

Como acontece sempre nestes eventos, depois do anunciar dos vencedores e vencidos vem a festa — e a comida. À semelhança de anos anteriores, os chefs da região ficaram encarregues do catering que foi servido quase sem parar. Foi das poucas vezes em que em refeições deste género ninguém ficou com fome. Foi entre dentadas, precisamente, que o chef José Avillez (um veterano nestas andanças) deu a sua opinião sobre o que a noite tinha dado: “É importante não esquecermos que Espanha tem quatro vezes mais gente que nós, um território 100 vezes maior e bastante mais dinheiro, também. Daí parecer sempre que há um desequilíbrio que, na verdade, acaba por ser equilibrado”, comentou referindo-se à discrepância entre o número de estrelas de um lado e de outro da fronteira ibérica. Apesar disso, tudo o que seja para juntar às que já existem é sempre bom e foi nesse espírito que deu os parabéns a todos os vencedores, o chef Rui Paula em especial — “é de facto um novo patamar, ele é o grande vencedor da noite” — e até brincou com o facto de ser sempre um dos grandes favoritos para receber a terceira estrela… Mas isso nunca acontecer. “Este ano nem contava com a terceira para o Belcanto. Um dia lá chegaremos, o mais importante é continuarmos com o restaurante cheio e proporcionar uma boa experiência a quem se senta à nossa mesa. Como bom sportinguista que sou, não tenho problema em continuar a acreditar no ‘para o ano é que é!”, rematou, entre risos.

Uma playlist que podia ser um menu Michelin

O Observador viajou a convite da Michelin