É verdade que o bloqueio nacional em que Itália se encontra há quase duas semanas levou a uma redução significativa das emissões poluentes, e deu origem a imagens inéditas, como as dos canais de Veneza com água límpida e peixes. Mas, à parte disto, não é verdade que esta aparente “despoluição” tenha feito com que aparecessem naqueles canais, de um momento para o outro, animais como golfinhos ou cisnes que, segundo a National Geographic, serviram apenas para “dar falsas esperanças” às pessoas que, neste momento, anseiam por algo bom.

Nos últimos dias surgiram no Twitter, e até em órgãos de comunicação social, notícias e publicações, com vídeo, a dar conta conta de histórias felizes que serviriam para amenizar a dura realidade destes dias: era o caso dos cisnes que tinham regressado aos canais agora límpidos de Veneza, ou até dos golfinhos que agora apareciam nesses mesmos canais. Também foi o caso do grupo de elefantes que apareceu numa vila em Yunnan, na China, e se embebedou com vinho de milho e desmaiou num jardim de chá.

Estes relatos de triunfos da vida selvagem em países muito afetados pelo surto do novo coronavírus, que foram entendidos como “um lado bom” da pandemia, tornaram-se virais nas várias redes sociais, tendo sido partilhados centenas de milhares de vezes. Chegaram mesmo às páginas dos jornais, mas há um senão nesta história. Segundo a National Geographic que desmontou as imagens, neste artigo, não se trata de os animais estarem a regressar a locais que antes estavam sobrelotados de humanos. Na verdade, ou eles já lá estavam ou são erradamente atribuídos aos canais de Veneza.

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Ao abrigo da parceria que o Observador tem com o Facebook, fizemos também um fact check a uma das publicações que foram partilhadas sobre este assunto. Tratava-se de uma notícia falsa partilhada pelo “Jornal Diario Online”. No Fact Check abaixo, também desconstruimos como.

Fact Check. A quarentena deixou as águas de Veneza mais limpas ao ponto de aparecer um golfinho?

Segundo aquela revista especializada em vida selvagem, os cisnes são presença regular nos canais de Burano, a pequena ilha de casas coloridas inserida na área metropolitana de Veneza, onde as fotografias foram, de facto, tiradas. E quanto aos golfinhos, não foram filmados nos canais de Veneza, mas sim num porto da Sardenha, a ilha italiana no mar Mediterrâneo, a centenas de quilómetros de distância de Veneza, onde já era possível avistar estes animais com mais ou menos regularidade antes do surto de Covid-19.

Já quanto aos elefantes “bêbedos”, não é seguro garantir onde as fotografias foram tiradas,  mas segundo a mesma revista, uma reportagem chinesa já desmentiu aquela publicações que se tornaram virais. E mesmo que os elefantes tenham passado recentemente por aquela vila na província de Yunnan, na China, a sua presença não é assim tão fora do normal. A reportagem garante, também, que não se trata de animais que tenham desmaiado devido ao milho.

Segundo Paulo Ordoveza, especialista em verificação de imagens que administra uma conta de Twitter onde desmonta potenciais publicações virais falsas, este tipo de publicações acontece, primeiro, por causa da “ganância pelos posts virais”, que pode levar ao impulso de propagar informações erradas. Há uma certa “overdose de euforia que resulta de ver o número de ‘likes‘ e partilhas a subir para os milhares”, afirma à National Geographic.

Isolamento total em Itália leva a redução de emissões poluentes. Canais de Veneza estão limpos

A ideia de ter muitos gostos e comentários “dá-nos uma recompensa social imediata”, acrescenta Erin Vogel, psicóloga social e pós-doutorada na Universidade de Stanford, à mesma revista. Por outras palavras, aquele tipo de publicações que atingem números virais “fazem-nos sentir bem” e melhoram a auto-estima. Depois, há outra questão: perante uma crise pandémica tão grande como a que vivemos, que afeta o mundo inteiro, a necessidade de partilhar factos positivos pode ser exacerbada.

“Nos momentos em que estamos realmente sozinhos, é tentador publicar algo que dá esperança às pessoas”, afirma Erin Vogel, sublinhando que a ideia de que os animais e a natureza pudessem estar realmente a florescer durante esta crise “poderia ajudar-nos a enfrentar a crise com uma sensação de propósito”, mas não é este o caso.

Era precisamente esse o tema da maior parte dos tweets que se tornaram virais. “A natureza acabou de carregar no botão de reset“, dizia um tweet que aplaudia o facto de os golfinhos supostamente terem aparecido a nadar nos canais de Veneza.