Não é seguramente a maioria absoluta com que António Costa talvez tenha chegado a sonhar, mas se depender da leitura que a Presidência faz da situação política atual, o efeito anda lá perto. Nas vésperas do 25 de Abril, onde fala pela última vez nessa cerimónia (pelo menos neste mandato), Marcelo Rebelo de Sousa tem medido a temperatura ao estado da democracia e, ao que o Observador apurou, vê um primeiro-ministro em alta, a quem tem elogiado o trabalho na gestão da crise, e uma oposição que sonhava com o desgaste de António Costa a sair completamente frustrada pelas consequências pandemia.

Também não é exatamente um bloco central, mas ao contrário do que se passava mesmo antes da Covid-19 dominar a agenda nacional – onde o Governo não conseguia chegar a entendimentos com o PSD sequer em questões como o Tribunal Constitucional -, desta vez Rio está tão alinhado com o António Costa que chegou a dizer ao partido não ser “patriótico” atacar o Governo nesta fase.

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Sobra a esquerda, com Belém a registar atitudes diferentes no BE e no PCP (comunistas mais desalinhados, bloquistas menos), e o resto da direita que, para o Presidente, apostou no cavalo errado com a guerra por causa da cerimónia do 25 de Abril. Problema: para CDS ou para os críticos de Rio dentro do PSD, não sobram muito mais causas numa altura em que as sondagens parecem mostrar que os portugueses valorizam o trabalho do Governo e a postura do PSD.

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Prova disso foi o último debate quinzenal com o Primeiro-Ministro, que foi visto pela equipa de Marcelo como uma das discussões “mais suaves” dos últimos tempos. Nas palavras de um dos conselheiros do Presidente, a explicação é simples: “Nesta fase, ninguém quer ser o mau da fita“.

Críticas ao 25 de Abril, a aposta no cavalo errado

Marcelo Rebelo de Sousa não tem deixado de fazer análise da situação política, mesmo que praticamente confinado no Palácio de Belém, mas também é quase certo que não falará das conclusões a que chegou no discurso que fará no Parlamento (não costuma fazê-lo em datas institucionais). Ainda que a cerimónia seja muito diferente do habitual, numa versão minimalista, Marcelo não deverá mudar de registo. Mas é precisamente pelos contornos especiais do evento (vão estar menos de cem pessoas na sala das sessões, entre deputados, jornalistas e convidados) que o Presidente percebe mal a aposta de alguma direita que “enquistou as críticas” na cerimónia. Em primeiro lugar porque é uma iniciativa da Assembleia e não do Governo (que se pôs à margem da polémica). Depois, porque seria sempre lido como uma parte da direita (moderada) a pôr-se fora de um ritual do sistema. E depois porque havia uma alternativa para criticar o executivo: os eventos planeados para o 1º de Maio, vistos em Belém como “menos unificantes” que o 25 de abril, e com margem para argumentar que tinham sido uma cedência à esquerda, em particular ao PCP e à CGTP.

Certo é que, para Marcelo, conta ao Observador uma fonte próxima do Presidente, a margem de oposição para quem apostava no desgaste de Costa praticamente desapareceu com a chegada da pandemia. Esta sexta-feira, no programa “Vichyssoise” da Rádio Observador, o deputado do CDS João Almeida rejeitava essa tese ao defender que “há muito espaço para, sem pôr em causa o combate a esta situação, que é uma causa nacional, todos contribuirmos para o sucesso desse combate”. Ou seja, ser uma voz crítica e apontar o que o Governo está a fazer de errado, ou “procurar representar todos os que, num momento difícil como este, possam estar a ficar para trás”. E depois, numa farpa ao PSD, que acusou de “estar numa lógica de cooperação ou de colaboracionismo“, lembrou que “não é suposto, numa situação excecional, o governo passar a fazer de oposição, e a oposição de governo”.

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Mas a verdade é que as sondagens mostram que a estratégia do CDS não tem dado frutos, ao contrário do que se passa com o PS e até com o PSD, ambos aparentemente beneficiados pelos eleitores pela postura face à pandemia. E este é um dado que “veio baralhar completamente o xadrez político” para aqueles que em Belém são identificados como “os setores mais críticos dentro do sistema”: CDS, algumas correntes dentro do PSD (os passistas e todos os outros críticos de Rio) e, em certa medida, o Chega, que corre em pista própria.

Podem, quanto muito, voltar a recuperar força se houver um descontrolo da situação sanitária ou se a crise económica e social deixar o Governo sem resposta. Mas nenhum destes cenários é propriamente um desígnio para o país ou uma alternativa de governação. E Marcelo identifica ainda a falta de uma força agregadora para estas várias direitas muito heterogéneas, que incluem até movimentos mais inorgânicos. Ou seja, no imediato, o Presidente da República não antevê sucesso para os que sonham com uma substituição de Costa ou de Rio.

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Uma pandemia desta dimensão é uma catástrofe, mas é também um teste aos líderes. E se, na avaliação do Presidente da República, Costa tinha chumbado quando foi dos incêndios de 2017, desta vez em Belém têm-se ouvido elogios: “A postura, entre um acontecimento e o outro, é como a diferença entre o dia e a noite. Claro que, agora, toda a gente está a caminhar em cima de gelo muito fininho, é tudo muito frágil e basta um deslize sanitário para a situação reverter completamente. Mas para já, dentro de um quadro horrível de uma pandemia, isto está a correr-lhe o melhor possível”, ouviu o Observador de um dos colaboradores de Marcelo.

Ninguém podia adivinhar a dimensão da crise de saúde pública e das consequências económicas e sociais. Mas mesmo numa desgraça não é impossível capitalizar politicamente. E, como cita fonte próxima do Presidente, “quem consegue gerir um terramoto, sai por cima”. No Palácio de Belém a ironia é registada: no início de março, a tensão entre Rio e Costa era de tal ordem que se temia um cenário de eleições antecipadas e o Presidente da República fez um discurso duro de puxão de orelhas a António Costa e Rui Rio (e não só), para apelar a entendimentos. Nessa altura, a equipa do Presidente via o executivo sem capacidade para construir pontes e reconhecia que, apesar das proclamações de entendimentos pontuais, o PSD não votava nenhuma questão essencial ao lado do Governo. A leitura que se fazia era que Costa tinha cometido um erro ao achar que conseguia negociar à esquerda e à direita, e que Rio fazia oposição sistemática ao executivo: “Não querer fazer cair o governo, mas apostar antes numa estratégia de mantê-lo na corda bamba”, confirmava ao Observador um dos conselheiros do Presidente.

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Os analistas políticos de Belém acreditavam que esta estratégia tinha a ver com o facto de haver uma direita à direita do PSD com mais força do que se poderia antecipar e, por outro lado, porque Rui Rio vivia com a ameaça do regresso de Passos Coelho, que nessas semanas aparecia publicamente com alguma frequência. Tudo isto, reconhece-se agora na equipa de Marcelo, mudou radicalmente com a chegada da Covid-19. A vida interna dos partidos saiu da agenda, Rio voltou a aproximar-se do Governo, faz algumas demarcações pontuais (como no caso dos aumentos para a função pública), mas aposta na estratégia de não agressão com o Governo, numa postura de credibilidade institucional. Em Belém, assume-se que se manterá assim enquanto durar a crise sanitária, “porque até ao fim da crise na saúde, os portugueses não querem discussão política”. Mas há-de descolar, até porque 2021 é ano de autárquicas.

Do lado de António Costa, o enorme problema da pandemia apareceu com força suficiente para fazer desaparecer os outros problemas que já se desenhavam no horizonte do Governo: um impasse na governação, dificuldades em negociar à esquerda e à direita, um PS a perder força nas sondagens, o aumento da contestação e a economia a dar os primeiros sinais de enfraquecimento. Marcelo já admitiu em conversas no Palácio de Belém que Costa recuperou o élan, ainda por cima está legitimado por eleições frescas, e que se a Europa for generosa no dinheiro que há-de chegar para financiar a retoma da economia, pode ser que a crise económica e social não tenha os contornos negros que se prevêem agora. Nesse caso, diz fonte da presidência, esta fórmula de poder, quer no Governo, quer no PSD, pode aguentar-se mais “do que aquilo que estava à espera alguma direita”.

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E é neste quadro que se chega ao último 25 de Abril presidido por Marcelo Rebelo de Sousa, neste primeiro mandato. Tudo isto está a ser analisado nas contas do Presidente que prometeu para o final do ano uma decisão sobre se se recandidata ou não a um segundo mandato. E nem o comentador que ainda há-de existir por baixo da pele de Presidente conseguiria prever um cenário como o que se vive atualmente. Quem diria, há apenas dois meses, que o Presidente Marcelo das selfies, que tinha agenda cheia e aparições públicas constantes estava agora forçado pelas circunstâncias a um papel mais institucional? Quem diria que seria o poder executivo, que tinha perdido o estado de graça, a ocupar agora quase todo o espaço mediático? E que Rui Rio voltaria a dar o braço a António Costa e, com isso, recuperaria força?

Que influência terá tudo isto e o que mais virá aí, na decisão do Presidente? Ainda é cedo para saber. Certo é que Marcelo faz todas as contas e continua a avaliar os pesos e contrapesos que dão “equilíbrio ao sistema político”, sabendo agora que “previsões até a dois meses são um risco”, como já admitiu à sua equipa num destes dias de confinamento.