Um navio que teve de parar a meio do percurso devido a problemas técnicos, uma inspeção que impediu a viagem até ao destino, um imbróglio jurídico sobre o que fazer à carga potencialmente explosiva e as falhas de um Estado em crise económica e política. O resultado foi uma tragédia com consequências piores do que as de um ato de guerra, de acordo com o balanço de vítimas, ainda provisório, e os relatos que chegam da capital do Líbano, Beirute, uma cidade com mais de um milhão de habitantes que ficou parcialmente destruída.
Ainda sem se conhecerem os resultados do inquérito oficial, há já dados que permitem perceber a origem do que se acredita ter sido um acidente, mas com contornos que envolvem processos jurídicos e uma demora fatal na tomada de decisão sobre o destino final a dar à carga cujo perigo era do conhecimento das autoridades portuária e alfandegárias.
A história começa num navio de carga que transportava o nitrato de amónio e que em 2013 parou no Porto de Beirute devido a problemas técnicos.
De acordo com informação avançada pela Aljazeera que cita documentos publicados no site Fleetmon, que monitoriza o trajeto de transportes marítimos de carga, o navio de nome Rhossus, viajava com bandeira da Moldávia. Segundo o Daily Telegraph, o proprietário seria o empresário Igor Grechushkin, que terá declarado falência e abandonando o navio e a sua carga ao largo do porto de Beirute. O navio vinha da Geórgia, antiga república soviética no Cáucaso, e teria como destino o porto da Beira em Moçambique.
Esta quarta-feira, contudo, em reação às notícias que recordavam relatos dos últimos anos sobre o destino final da carga, a empresa gestora do porto da Beira, assegurou à Lusa nunca ter sido notificada sobre a operação de um navio com 2.750 toneladas de nitrato de amónio com destino a Moçambique.
“Normalmente, antes de receber um navio, nós somos notificados. Neste caso, nunca recebemos nenhuma notificação de um navio que vinha ao porto da Beira com essas caraterísticas e carga”, disse à Lusa António Libombo, diretor-executivo adjunto da Cornelder, concessionária do Porto da Beira desde 1998.
A fonte da informação sobre o destino do navio será uma newsletter de 2015 de uma rede que monitoriza navios apreendidos, a ShipArrested. A publicação conta o que aconteceu ao navio parado no Porto de Beirute em 2013 com base em testemunhos de advogados que representavam credores, e revela que foi uma inspeção conduzida pelas autoridades portuárias libanesas que proibiu o navio de prosseguir por razões de segurança. A decisão terá sido acatada pela maioria dos membros da tripulação, mas não pelo comandante.
O navio terá sido então abandonado pelos proprietários, depois dos agentes envolvidos na transação — apesar de Moçambique ser referido como destino, não há indicação de quem terá contratado o frete — terem perdido o interesse na carga: as 2750 toneladas de nitrato de amónio, um produto usado para fertilizante, mas que pode ter outros usos, como por exemplo em explosivos.
Depois de apreendido ao largo do porto de Beirute, o navio ficou rapidamente sem provisões e os fornecimentos necessários para se manter operacional e vários credores avançaram com queixas a reclamar pagamentos.
Capitão retido meses no navio sem receber diz que teve de vender combustível para pagar advogados
Em entrevista divulgada já esta semana pelo jornal eletrónico russo Meduza, o antigo comandante do navio confirma que o proprietário era o homem de negócios Igor Gretchukin, mas diz que o navio ficou retido em Beirute por falta de pagamento de taxas portuárias depois de ter feito escala, não devido a problemas técnicos, mas sim para embarcar mais carga, não identificada.
Neste testemunho, o capitão Prokoshev revela que uma parte da tripulação tinha sido despedida por se recusar a levar o nitrato até Moçambique e adianta que o proprietário chegou a receber um milhão de dólares pelo transporte. Ele próprio e alguns tripulantes tiveram de ficar no navio para o manter operacional, apesar de não receberem salário. “Vivemos no Rhossus 11 meses. Gretchushkin — que qualifica de bandido — não nos pagou nada e nem sequer comprou alimentos, pode dizer-se que nos deixou a morrer de fome. Era o porto que nos dava de comer”.
O antigo capitão conta ainda que escreveu várias vezes a Vladimir Putin a pedir ajuda, mas que apenas recebeu respostas vagas por parte das autoridades russas. E revela que vendeu o combustível do navio para contratar um advogado. E foi um escritório de advogados libaneses que representou os credores do navio a garantir uma ordem de apreensão do Rhossus e da sua carga , mas os esforços para obter pagamento junto dos proprietários e intermediários falharam. Mais tarde, tentou contactar o antigo proprietário que viveria no Chipre e que entretanto já veio dizer ter vendido o barco sem revelar a quem.
Só uma intervenção por parte de advogados libaneses junto do Tribunal de Assuntos Urgentes de Beirute em defesa dos tripulantes retidos no barco obteve a autorização para o seu desembarque e regresso a casa, de acordo com o relato feito pelo escritório de advogados nessa newsletter. Um dos argumentos usados foi o do perigo iminente para a tripulação devido à natureza perigosa da carga transportada, mas também foram feitas referências aos direitos humanos e à liberdade individual que acabaram por permitir a saída e repatriamento dos tripulantes.
Segundo o mesmo relato, as autoridades portuárias foram informadas desta ação judicial e conheciam os alertas e riscos de segurança quando decidiram transferir a carga para um armazém no porto onde ficou a aguardar um processo de venda por leilão ou outra disposição sobre o seu destino.
Os apelos sem resposta da alfândega libanesa aos tribunais e o alerta para o perigo
A carga terá sido descarregada para as instalações portuárias, o hangar 12 do porto de Beirute, em 2014. Ainda nesse ano, e de acordo com documentos disponíveis online citados pela cadeia Aljazeera, o responsável pela alfândega do Líbano enviou uma carta urgente a um juiz/tribunal não identificado, na qual pedia uma solução para o destino a dar à carga.
Os responsáveis pelas alfândegas libanesas terão enviado várias cartas nos três anos seguintes — não é indicado quem seriam os destinatários destas mensagens — a pedir orientações sobre o destino a dar ao material retido no porto e a avisar para os perigos que este representava. A Aljazeera cita o testemunho do atual diretor das alfândegas do Líbano, Badri Daher, feito esta quarta-feira à LBCI, uma das principais estações de televisão do país. Nestas cartas foram propostas três soluções possíveis: exportar o nitrato de amónio, entregá-lo ao exército libanês ou vendê-lo a uma empresa privada de explosivos, a Lebanese Explosives Company.
Uma carta datada de 2016 refere mesmo a falta de resposta dos juízes (nunca identificados) aos apelos anteriores. Esta missiva, citada pela cadeia televisiva com sede no Qatar, sublinhava o sério perigo que representava manter o material no hangar, com condições de temperatura inadequadas, se reafirmava o pedido da agência marítima para reexportar de imediato o produto, de forma a preservar a segurança do porto e dos seus trabalhadores, ou procurar um acordo de venda com a empresa privada libanesa já referida.
Em outubro de 2017, nova carta com destino a um juiz (nunca identificado) a alertar para a necessidade de uma decisão urgente da justiça dado o perigo que a carga envolvia. Mas a decisão nunca terá chegado ou então não foi executada. Já esta quarta-feira, o diretor das alfândegas libanesas, Badri Daher, responsabilizou o presidente do porto de Beirute pelo armazenamento do nitrato de amónio. As autoridades portuárias, que dependem do Governo, asseguraram que a carga estava depositada há mais de seis anos devido a uma ordem judicial, provavelmente originada nos processos movidos pelos credores dos agentes envolvidos no frete. Os dirigentes portuários foram entretanto colocados em prisão domiciliária enquanto decorrem as investigações que o Executivo libanês quer que produzam resultados rápidos.
O primeiro-ministro libanês já prometeu que os responsáveis por esta catástrofe “vão pagar pelo que aconteceu”. “Prometo-vos que esta catástrofe não passará sem responsabilidade. As pessoas responsáveis pagarão um preço”, disse Hassan Diab citado pela AFP. No entanto, crescem as vozes que pedem uma investigação independente.
O caso pode ter ainda outros contornos, já que a gestão do porto de Beirute está envolvida em suspeitas de desvios de fundos públicos, receitas fiscais que nunca terão chegado aos cofres do Estado libanês, devido a alegados esquemas de corrupção e de subvalorização das mercadorias descarregadas. De acordo com a Al Jazeera, o porto é conhecido pelos residentes da cidade como a “Caverna do Ali Baba e dos 40 ladrões”, numa alusão a essas operações.
O desastre da carga apreendida lança ainda o alerta para um problema até agora com pouca visibilidade: as cargas e navios abandonados em portos ou mesmo em pleno mar. De acordo com dados recolhidos por organizações internacionais, e citados pela Fundação Stable Seas, terão sido abandonadas mais de 5.000 cargas em 400 incidentes ocorridos entre 2004 e 2018, algumas das quais representam riscos de segurança e ambientais. O problema tornou-se mais grave com a pandemia, porque a crise económica causada pela paragem das economias terá levado vários armadores a abandonar navios e muitos países impuserem medidas restritivas aos desembarques portuários.
Atualizado às 16h20 de quinta-feira com declarações de antigo capitão do navio.