As americanas Pixar e Laika, e o Studio Ghibli nipónico de Hayao Miyazaki (que acabou de fazer 80 anos e está a trabalhar numa nova longa-metragem) têm uma produtora de animação que lhes pede meças na Europa. É a Cartoon Saloon irlandesa, que pelas mãos de Tomm Moore já nos deu duas preciosidades do género, “The Secret of Kells” (2009) e “A Canção do Mar” (2014), e acaba agora de lhes juntar “WolfWalkers”, assinado de novo por Moore, em parceria com Ross Stewart, e disponível na Apple TV +. E que tal como aqueles dois filmes, vai buscar ampla inspiração ao folclore do seu país e mergulhar fundo no mundo do fantástico celta.

[Veja o “trailer” de “WolfWalkers”:]

Estamos na Irlanda sob domínio inglês de meados do século XVII. Robin (voz de Honor Kneafsey) é uma menina inglesa de 11 anos, órfã de mãe e cujo pai (voz de Sean Bean) é um afamado caçador, encarregue pelo Lorde Protector (voz de Simon McBurney) de exterminar os lobos de uma alcateia que vive numa floresta perto da cidade de Kilkenney e que andam a matar as ovelhas dos fazendeiros. A irrequieta Robin sente-se muito infeliz por ter sido obrigada a deixar a Inglaterra. Sonha em ser uma grande caçadora como o pai e detesta fazer trabalho doméstico, escapando-se sempre que pode para a floresta, na companhia de Merlin, o seu falcão.

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[Veja uma entrevista com os realizadores:]

E é na floresta que Robin faz amizade com uma estranha menina, Mebh (voz de Eva Whittaker), a quem a alcateia de lobos obedece, porque ela é uma entidade parte humana, parte animal, uma WolfWalker, tal como a mãe. E vai também descobrir um mundo mágico existente no coração dos bosques e ligado às velhas lendas celtas, ao tempo em que São Patrício, o santo padroeiro da Irlanda, estabeleceu um pacto com os lobos do país; e ainda fazer uma descoberta transcendente que vai alterar por completo a ideia que Robin tinha daqueles animais, bem como pô-la numa dramática rota de colisão com o seu próprio pai.

[Veja uma entrevista com as duas atrizes:]

Animado por processos tradicionais, “WolfWalkers” é um deslumbramento. Tomm Moore e Ross Stewart usam estilos gráficos, paletas de cor fortemente contrastantes e perspetivas vertiginosas, quer para figurar a oposição entre a tristonha cidade, feita de casas rigidamente desenhadas e pontiagudas, que encontram correspondência nas longas lanças dos soldados, e a luxuriante floresta, toda ela remoinhos multicoloridos, explosões de luz e feéricas manifestações de magia; quer para representar os pontos de vista dos humanos e dos lobos. Tudo isto recorrendo a técnicas tão diversas como a aquarela, o desenho a lápis ou a carvão. Em muitos momentos, o filme é estilizado ao extremo e por vezes parece ir dissolver-se numa grande e estonteante abstração.

[Veja uma sequência do filme:]

Além de enraizarem a história e a animação de “WolfWalkers” na arte popular irlandesa e em crenças, figuras e tradições da cultura e do maravilhoso nacional, os realizadores inscrevem no filme um sentimento anti-inglês e mesmo ousadamente anti-cristão. Quem triunfa no final é o ancestral mundo pagão, da magia, das forças e entidades sobrenaturais que se manifestam na natureza, nos elementos e nos animais, derrotando as forças invasoras de Oliver Cromwell e as da religião institucional. “WolfWalkers” vai, neste aspeto, mais longe do que “The Secret of Kells” e “A Canção do Mar”, sublinhando a nota identitária não só na estética como também no discurso. Que pena que não possa ser devidamente apreciado num cinema.

“WolfWalkers” está disponível na Apple TV+