Pode lembrar-se de Shane Meadows como o autor do genial “Made of Stone”, documentário sobre o regresso dos Stone Rones aos palcos, em 2016, ou do arrebatador “This is England – Isto é Inglaterra”, filme de 2006 que retrata o Reino Unido de 83, de Thatcher, das Malvinas e muito mais, pelos olhos de um puto (Shaun, aliás, Thomas Turgoose, para quem então pedimos o Óscar de carreira instantâneo, antes que se perdesse), que fica sem pai na guerra e vai encontrar abrigo num grupo de skinheads.
“This is England” tornou-se uma obra de referência no UK, multiplicada num spin-off televisivo que já vai em três temporadas, que acompanham a evolução das personagens e da velha Albion respetivamente em 1986, 88 e 90. Mas, com “The Virtues”, Meadows, um dos mais talentosos realizadores britânicos da atualidade, traz-nos outra coisa, muito longe do palavreado rápido da rua, do ritmo frenético da montagem, da energia vigorosa, dura, mas, no fim, feliz, que lhe conhecíamos até agora. “The Virtues” é o lado negro, o drama sem escapatória, a descida aos infernos escondidos por detrás do homem normal. Sem ícones culturais, sem épicos pop. Só o negrume do ser humano.
Stephen Graham é Joseph – Joe, para os próximos. Sem apelido evidente. Em português, é o “Zé”. E o Zé vai atravessar os quatro episódios de “The Virtues” numa violentíssima jornada aos confins de uma tragédia que carrega dentro dele e que, no começo, apenas lhe adivinhamos e só vamos decifrando a pouco e pouco.
[o trailer de “The Virtues”:]
Graham é um ator de um metro e 68 e uma figura física que jamais lhe permitiria fazer o herói clássico. À partida, estariam reservados para ele os papéis de secundário, capanga, falhado, vizinho chato, tipo que não arranja uma namorada. Só que Graham é, provavelmente, um dos mais talentosos atores contemporâneos (e, para este, não precisam de lhe dar um Óscar de carreira por antecipação, porque ele vai chegar lá).
Vimo-la a primeira vez, provavelmente, em 2000, em “Snatch – Porcos e Diamantes”, de Guy Ritchie, ao lado de Jason Statham. Depois, talvez no já citado “This is England”. Graham tem feito muitos, muitos papéis. Por exemplo: aguentando-se à bomboca entre gigantes como o novo rapaz na cidade Tony Provenzano em “O Irlandês”, Al Capone em “Boardwalk Empire”, Baby Face Nelson em “Inimigos Públicos”, e muito mais. Mas bastavam-nos aqueles dois primeiros papéis ditos lá em cima. Não precisava de ter feito mais nada. O hilariante Tommy de “Snatch” e o assustador skinhead Combo de “This is England”. Só um predestinado poderia construir duas figuras tão diferentes. Mas este rapaz, que nasceu para o mundo e para a representação há 47 anos, em Liverpool, junta aqui a esses um terceiro papel inesquecível.
O Joe de “The Virtues”, o Zé, é na verdade a figura crística que carrega a série. A figura crística estendida no chão, de braços abertos, miserável, perdido, abandonado na sua cruz, que é, na verdade, o banal, deplorável, resultado de uma ressaca. Stephen Graham, Joe, o Cristo ordinário alcoólico, que cresceu num orfanato, que tem agora de se despedir do filho que vai com a mãe e o novo pai para a Austrália e que tem de enfrentar os traumas recalcados que não quer lembrar. O Cristo que tem de ressuscitar para se salvar a ele mesmo.
Sim. Há um pano de fundo católico em “The Virtues”, quase nunca verbalizado, mas que alimenta toda a sua imagética. Estamos na Irlanda católica que não permite o aborto, nos orfanatos dirigidos por religiosos, nas famílias de bons valores cristãos, na cultura onde até o bandido tem um brinco em forma de cruz e um crucifixo sobre a cama. E o que Joe vai fazer, da inesquecível sequência inicial em que apanha porventura a bebedeira mais realista da história da televisão, à sequência final em que enfrenta o seu monstro e criador e, em montagem paralela, a igualmente maravilhosa Niamh Algar (Dinah) faz o mesmo ao dela, não é realmente uma viagem, a habitual “viagem do herói” arquetípica das histórias; é uma via sacra.
Como noutras obras de Shane Meadows, a maior “virtude” da série (no pun intended) está na autenticidade. Autenticidade de personagens, texto, cenas, tudo. São, ao que sabe, o resultado legítimo de longuíssimos processos de casting, muitos ensaios e, simultaneamente, muita liberdade dada aos atores. Ao fim de dois minutos, estamos a sofrer com e por Joe, a pedir que não estrague tudo ainda mais. Do lado dos defeitos, mais uma vez, lá está um final abrupto, a esquecer personagens e deixar pontas soltas no argumento. Mas “The Virtues” é, em tudo o mais, um momento de viragem na carreira do realizador: o momento em que abraça a tragédia. Em que já não esconde a escuridão debaixo de muitas deixas espirituosas e canções orelhudas. Deixa-a falar, enorme, no seu silêncio.
Cinco mil caracteres de texto e ainda não percebeu exatamente sobre o que é “The Virtues”? Então, estamos a fazer bem o nosso trabalho e a não lhe estragar a série com spoilers. Mas há uma entrevista de 2019 a Miranda Sawyer, do Guardian, a única, em que Meadows conta a verdade sobre a via sacra de Joe: esta é uma história autobiográfica. A história de um homem que só aos 40 anos descobre as partidas que a cabeça nos prega e o terrível acontecimento que lhe roubou a infância e transformou para sempre.
Se o objetivo deste texto incluísse uma classificação, “The Virtues” não levaria cinco estrelas, antes umas sólidas quatro, mas é, garantidamente, das coisas mais verdadeiras que verá neste confinamento – que não a verdade. De resto, é um pretexto para explorar outra plataforma de video on demand além das que dominam todas as conversas, uma vez que só se encontra disponível na Filmin, entre o seu belo catálogo de filmes e séries de autor.
Já para não dizer que tem banda sonora de PJ Harvey.
Alexandre Borges é argumentista e escritor