O Papa Francisco aterrou esta sexta-feira em Bagdade para uma visita de quatro dias — uma viagem inédita de um líder da Igreja Católica ao Iraque. Aguardada com grande expectativa no Médio Oriente, esta é a primeira visita do Papa Francisco ao estrangeiro depois da eclosão da pandemia da Covid-19 e tem na agenda a promoção do diálogo inter-religioso e o alerta para as condições em que a minoritária comunidade cristã vive naquele país. No primeiro discurso em solo iraquiano, Francisco condenou o fundamentalismo religioso e apelou à participação de todos os iraquianos, independentemente da religião, na reconstrução do país.

A viagem — de alto risco devido à instabilidade que se vive na região e que se agravou nas últimas semanas — decorre entre esta sexta-feira e a próxima segunda-feira. Do programa constam um conjunto de visitas e encontros de alto nível com as autoridades iraquianas, mas os dois momentos mais esperados acontecem durante o fim-de-semana.

No sábado, o Papa Francisco encontra-se com o Grande Aiatolá Sayyid Ali al-Husayni al-Sistani, o líder espiritual dos muçulmanos xiitas que compõem a maioria da população iraquiana, e preside a uma celebração inter-religiosa na planície de Ur, um dos lugares mais simbólicos da história das três grandes religiões monoteístas, uma vez que, de acordo, com a Bíblia era ali que residia Abraão.

Pela primeira vez, um Papa vai ao Iraque. Francisco quer “assegurar presença cristã” na raiz do Cristianismo

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No domingo, é a vez de o líder da Igreja Católica se dedicar à minoritária comunidade cristã do Iraque, visitando o Curdistão iraquiano e celebrando com os católicos nas cidades de Mossul e Qaraqosh, que até 2017 tinham estado sob domínio do Estado Islâmico.

O Papa Francisco aterrou em Bagdade por volta das 13h locais (11h em Lisboa), depois de uma longa viagem de avião a partir de Roma, e foi recebido no aeroporto da capital iraquiana pelo primeiro-ministro Mustafa Al-Kadhimi. Os dois conversaram na sala VIP do aeroporto durante alguns minutos — um diálogo cujo conteúdo não foi transmitido — e seguiu depois para o centro da cidade, guardado por uma forte escolta policial.

No palácio presidencial de Bagdade, o Papa Francisco encontrou-se com o Presidente iraquiano, Barham Salih, para uma reunião privada antes de discursar perante um grande grupo de membros do corpo diplomático e das autoridades civis iraquianas.

Francisco quer cristãos e muçulmanos a “construir juntos este país”

Nesse primeiro discurso em solo iraquiano, o Papa Francisco posicionou-se contra o fundamentalismo religioso e apelou a todos os iraquianos, independentemente da religião, que se unam para “construir juntos este país, no diálogo, no confronto franco e sincero, construtivo“. “Chega de violências, extremismos, fações, intolerâncias”, insistiu Francisco.

“O nome de Deus não pode ser usado para justificar atos de homicídio, de exílio, de terrorismo e de opressão”, insistiu Francisco no salão nobre do palácio presidencial, condenando o “fundamentalismo incapaz de aceitar a convivência pacífica de vários grupos étnicos e religiosos, de ideias e culturas diferentes“. O Papa não esqueceu também os yazidis, minoria religiosa que, a par dos cristãos, tem sido duramente perseguida pelos fundamentalistas islâmicos, classificando aquele povo como “uma vítima inocente de uma barbárie sem sentido e desumana”.

Hoje o Iraque é chamado a mostrar a todos, especialmente no Médio Oriente, que as diferenças, em vez de gerar conflitos, devem cooperar harmoniosamente na vida civil“, acrescentou o Papa, que se apresentou como “penitente que pede perdão ao Céu e aos irmãos por tanta destruição e crueldade”. Lembrando que foi naquela região que nasceu Abraão, o pai das três principais religiões monoteístas, o Papa Francisco sublinhou que a civilização atual se encontra “estreitamente ligada, através do Patriarca Abraão e de numerosos profetas, à história da salvação e às grandes tradições religiosas do Judaísmo, Cristianismo e Islão”.

O Papa Francisco falou depois do Presidente Barham Salih, que deixou ao líder católico um agradecimento pelos esforços rumo à paz no Médio Oriente e lembrou que a região “não pode ser imaginada sem os cristãos“.

“Violência é incompatível com os ensinamentos religiosos”

Depois do momento diplomático no palácio presidencial, o Papa Francisco dirigiu-se à catedral siro-católica de Sayidat al-Nejat (Nossa Senhora da Salvação), em Bagdade — um templo cristão escolhido a dedo para o primeiro momento religioso do líder católico no Iraque pelo seu simbolismo relativamente à violência contra os cristãos no país.

Em 2010, a catedral foi o palco de um dos maiores ataques do ainda embrionário Estado Islâmico contra os cristãos iraquianos. No dia 31 de outubro de 2010, um grupo de homens armados invadiram a catedral, onde se encontravam mais de uma centena de católicos, e fizeram-nos reféns. Diziam pertencer ao Estado Islâmico do Iraque, uma organização afiliada da Al-Qaeda. Quando as forças armadas iraquianas tentaram resgatar os reféns, o ataque transformou-se numa carnificina. Morreram mais de 50 pessoas, entre crentes, atacantes e agentes das autoridades

O Papa Francisco escolheu aquele lugar para se encontrar, esta sexta-feira, com um grande número de bispos, padres, seminaristas, religiosos e catequistas iraquianos e, juntamente com eles, recordar o ataque ocorrido há mais de uma década, cujas vítimas poderão vir a ser beatificadas pela Igreja Católica, uma vez que está em curso um processo no Vaticano para oficializar a santidade dos mártires da catedral.

“A sua morte lembra-nos fortemente que o incitamento à guerra, os comportamentos de ódio, a violência e o derramamento de sangue são incompatíveis com os ensinamentos religiosos”, afirmou o Papa Francisco, durante um discurso na catedral, onde estavam expostos os retratos dos 48 mártires iraquianos que ali morreram.

O líder da Igreja Católica insistiu perante os fiéis iraquianos que o caminho passa necessariamente pela reconciliação e convivência pacífica entre todas as religiões que compõe o complexo tecido social do Médio Oriente: “Amanhã, em Ur, vou encontrar-me com os líderes das tradições religiosas presentes neste país, para proclamarmos mais uma vez a nossa convicção de que a religião deve servir a causa da paz e da unidade entre todos os filhos de Deus“.

Este trabalho começa, em primeiro lugar, pelos próprios cristãos, que no Iraque estão divididos entre os católicos caldeus (a maioria), os siro-católicos, os arménio-católicos, os ortodoxos, os melquitas e os latinos, mas estende-se depois à maioria muçulmana xiita no país, com cujo líder o Papa Francisco se encontra este sábado.

“Nas últimas décadas, vós e os vossos concidadãos tivestes de enfrentar os efeitos da guerra e das perseguições, a fragilidade das infraestruturas básicas e uma luta contínua pela segurança económica e pessoal”, reforçou o Papa, lembrando esse contexto “muitas vezes levou a deslocamentos internos e à migração de muitos, inclusive cristãos, para outras partes do mundo.”

Viagem sob fortes medidas de segurança

A viagem inédita do Papa Francisco ao Iraque foi oficialmente anunciada pelo Vaticano em dezembro de 2020 e, desde esse primeiro anúncio, levantou fortes dúvidas relativas à segurança do líder da Igreja Católica durante os quatro dias que Francisco pretende passar num dos lugares mais instáveis do Médio Oriente.

As dúvidas adensaram-se no início deste mês, quando pelo menos 10 rockets foram lançados contra uma base norte-americana no Iraque, apenas a dois dias da viagem de Francisco. Os rockets foram lançados contra uma base em que se encontram estacionadas forças da coligação internacional, liderada pelos Estados Unidos da América, que em 2017 derrotou o Estado Islâmico e que tem mantido operações de manutenção da paz na região.

O ataque foi apenas o mais recente numa série de episódios de tensão que se têm verificado nas últimas semanas na região: depois de a embaixada dos EUA ter sido alvo de um ataque de mísseis, o Presidente Joe Biden ordenou o primeiro ataque militar da sua presidência, lançando um conjunto de bombardeamentos às infraestruturas usadas por milícias apoiadas pelo Irão na fronteira entre o Iraque e a Síria.

Papa mantém visita ao Iraque apesar do lançamento de “rockets”

Apesar da instabilidade da região, o Papa Francisco não equacionou cancelar a viagem. “O povo iraquiano espera-nos, esperava João Paulo II que foi proibido de lá ir. Não se pode dececionar um povo uma segunda vez”, disse o Papa na quarta-feira.

Todavia, a visita de Francisco ao Iraque será marcada por medidas de segurança extraordinárias, a que já foi possível assistir na manhã desta sexta-feira à chegada a Bagdade. Ao mesmo tempo, o Papa viajará sempre em carros cobertos, e não no tradicional papamóvel, com o objetivo de evitar grandes ajuntamentos à sua passagem.

A passagem do Papa Francisco pelo Curdistão será um dos momentos mais protegidos de toda a viagem. De acordo com o arcebispo caldeu de Erbil, D. Bashar Warda, estarão 10 mil pessoas envolvidas na segurança do Papa durante aquela parte da viagem. “As autoridades estão a tratar da segurança do Papa com muita seriedade, empregando 10 mil seguranças”, disse recentemente o arcebispo.

No coração das religiões para apoiar cristãos perseguidos

O Papa Francisco dirige-se a um país de maioria muçulmana com uma mensagem clara de apelo ao diálogo inter-religioso. O roteiro do líder católico pelo país não é extenso, mas é cheio de simbolismo. Na planície de Ur, o lugar onde se acredita ter nascido Abraão, o Papa Francisco vai liderar uma celebração inter-religiosa para lembrar a raiz comum das três principais religiões do planeta: o Cristianismo, o Judaísmo e o Islão, que em conjunto representam mais de 55% das crenças religiosas a nível global.

Aí, o encontro com o Grande Aiatolá Al-Sistani, a mais alta autoridade do Islão xiita, será simbólica de uma proximidade que Francisco tem tentado estabelecer com o mundo muçulmano. Em 2019, durante a visita à Arábia Saudita, o Papa tinha visitado o xeque Ahmed al-Tayeb, grande imã de Al-Azhar e considerado a mais alta autoridade do Islão sunita, com quem assinou uma inédita declaração de fraternidade. Francisco completa assim um roteiro de diálogos com os principais líderes religiosos do Islão, destinado a promover a paz entre as duas maiores religiões do globo.

Papa e grande imã assinam declaração de fraternidade inédita

Ao mesmo tempo, a visita de Francisco ao Iraque é profundamente simbólica para a comunidade cristã, fortemente perseguida naquele país ao longo das últimas décadas. “Estou feliz por retomar as viagens e esta é uma viagem emblemática. É também um dever, para com uma terra martirizada há tantos anos”, assinalou o Papa Francisco durante a viagem de avião que o levou de Roma até Bagdade esta sexta-feira. Do roteiro do Papa Francisco fazem parte três cidades com grande simbolismo para a história recente dos cristãos iraquianos: Mossul, Qaraqosh e Erbil.

Foi na Grande Mesquita de Mossul que, em 2014, o jihadista Abu Bakr al-Baghdadi anunciou ao mundo a oficialização do Estado Islâmico. A partir da cidade, os extremistas liderados por Al-Baghdadi expandiram o seu território iraquiano invadindo grande parte da planície de Nínive, o lugar onde reside a maioria da comunidade cristã do país. Em Qaraqosh, a maior cidade cristã do Iraque, praticamente todas as casas e igrejas foram destruídas pelo Estado Islâmico. Uma das igrejas capturadas pelos terroristas e usada como armazém durante a ocupação será, este domingo, palco de uma missa presidida pelo Papa Francisco. Erbil, a capital do Curdistão iraquiano, foi o destino da fuga de cerca de 150 mil cristãos que conseguiram fugir da invasão, muitas vezes apenas com a roupa que levavam no corpo.

A perseguição pelo Estado Islâmico foi apenas o capítulo mais recente numa história de repressão do Cristianismo no Iraque que se agravou em 2003 com a invasão do país pelos EUA. Até aí, o regime ditatorial de Saddam Hussein (que era da minoria sunita entre os muçulmanos do Iraque) reprimiu duramente a maioria xiita, mas em contrapartida deu uma liberdade significativa às minorias religiosas, incluindo os cristãos e os yazidis, para que não se insurgissem contra o regime. Depois da queda de Saddam, instalou-se novamente o conflito religioso no país e apertou-se o cerco às minorias. Antes de 2003, estima-se que existissem 1,5 milhões de cristãos no país, mas o número caiu nas últimas duas décadas para cerca de 270 mil.

Cerca de dois terços dos cristãos iraquianos pertencem à Igreja Católica Caldeia, uma denominação oriental que está em plena comunhão com o Vaticano. Há também uma percentagem significativa de cristãos ortodoxos e de várias outras denominações cristãs, nem todas católicas.

Em 2018, um ano depois da libertação do Iraque por parte da coligação internacional, o Observador visitou Erbil, Qaraqosh e as proximidades de Mossul para um conjunto de reportagens destinadas a traçar um perfil das comunidades cristãs que vivem naquele ponto do globo. As reportagens, que passam por vários dos lugares que o Papa Francisco vai visitar ao longo deste fim-de-semana, podem ser lidas ou relidas aqui:

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