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Cassete Pirata: um álbum para nos fazer cantar as madrugadas perdidas e os dias futuros

Este artigo tem mais de 2 anos

A próxima viagem dos Cassete Pirata começa agora. "A Semente", o segundo álbum do grupo, olha criticamente para o mundo, mas também traz um hino em memória das noites que não vivemos.

António Quintino (baixo), "Pir" (guitarrista, vocalista e compositor das canções), Margarida Campelo, Joana Espadinha (coros/vozes) e João Pinheiro (bateria): os Cassete Pirata
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António Quintino (baixo), "Pir" (guitarrista, vocalista e compositor das canções), Margarida Campelo, Joana Espadinha (coros/vozes) e João Pinheiro (bateria): os Cassete Pirata

Martim Torres

António Quintino (baixo), "Pir" (guitarrista, vocalista e compositor das canções), Margarida Campelo, Joana Espadinha (coros/vozes) e João Pinheiro (bateria): os Cassete Pirata

Martim Torres

É uma daquelas canções com sabor a rebuçado, um hino para ser cantado a plenos pulmões por todos os notívagos que andavam a contar minutos para poderem voltar a dançar até de manhã. E é também o bombom de A Semente, a canção que adoça o novo (o segundo) álbum da banda portuguesa Cassete Pirata — e, já agora, um tratado moderno de escrita pop-rock em língua portuguesa.

Não há introdução instrumental nem nada, que depois de um ano e meio com discotecas e bares fechados não há tempo a perder. Mal a canção arranca ouvimos “Pir”, o comandante da banda, João Firmino no cartão de cidadão, a cantar sobre este “vendaval” que vivemos, a confessar (a “assumir”) que já tem “saudades de um dia normal”. Disso e de “virar a noite em qualquer lado / até cair”. Não, não é o único — mas ninguém o soube cantar assim.

Estamos para aqui a falar de “Só Mais Uma Hora”, a primeira canção pós-pandémica que ouvimos que, com tudo no sítio certo, promete cativar os saudosos das longas madrugadas de sexta-feira, sábado e domingo, todos aqueles que saíam de uma pista de dança com um sorriso meio pateta e os primeiros raios de sol já quase, quase a chegar. Se existirem dúvidas é só atentar no refrão, exemplarmente cantado e a provar que a simplicidade na canção pop é uma seta de cupido atirada ao ouvido:

Vá não tem de ser para sempre
mas fica só mais uma hora
Vá não tem de ser para sempre
mas fica só mais uma hora
Vá não tem de ser para seeeempre
mas fica só mais uma hooora
fica só mais uma hooooora

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Na anatomia da pop rebuçado, a duração da canção não deve ser longa (poder até pode, mas não é fácil) e o refrão é o coração que bombeia o entusiasmo, que injeta o ouvinte de vontade de cantarolar, que o faz sentir-se maior e menos sozinho no mundo. Acontece que o respeitinho à fórmula pode ser significativo — os teclados a borbulhar, o refrão facilmente decorável que se aloja no cérebro — sem que se perca um riff de bom gosto e sem que a letra pareça retirada de um livro de auto-ajuda: é só clicar play em “Só Mais Uma Hora” e ei-la, a prova dos nove.

O refrão chega antes mesmo dos 30 segundos, mas vale a pena prosseguir: cantando para os seus fiéis boémios, “Pir” discorre sobre a “alma dormente” e sobre a “solidão que sinto cá por dentro”, que lhe foi deixando “o ombro mais pesado”. Como é que isto se resolve? Num assomo de inspiração, eis a receita da canção:

Mas o que nos faz falta, enfim,
é dançar com os deuses no sétimo gin
e voltar a ser um puto errante

mais um instante, mais um instante

Por esta altura volta o refrão e imaginamos já a desordem na plateia durante concertos, gente crescida a expurgar (pela voz, pelos braços no ar, pela dança desengonçada) as agruras de, durante tanto tempo, ter ficado impedida de se comportar como miúdos só por umas horas, só num intervalo semanal, só nas brechas daquilo que a “responsabilidade” de ser “adulto” impõe.

Temos um teledisco que nos mostra de que fala o tema: pouca luz, gente a dançar na pista e de copo na mão, tudo a cantar e a libertar o corpo com aquele sorriso de quem cortou por uns segundos as algemas à seriedade e à sobriedade comportamental.

[o vídeo de “Só Mais Uma Hora”:]

Não é de agora que se pressente que os Cassete Pirata têm um talento especial para as canções. Do álbum anterior, A Montra, editado em 2019 (antes disso houve um primeiro EP, ou mini-álbum, de quatro temas, com que se apresentaram ao público), constava uma que viria a crescer além do disco: “A Próxima Viagem”, que foi escolhida para banda sonora do genérico de uma série da RTP intitulada “Até que a Vida nos Separe”.

A banda formada por “Pir” (guitarrista, vocalista e compositor das canções), Margarida Campelo e Joana Espadinha (coros/vozes), António Quintino (baixo) e João Pinheiro (bateria) não pode ser reduzida a duas canções. Até porque a estética de “Só Mais Uma Hora” e de “A Próxima Viagem” não é representativa do som dos Cassete Pirata, um grupo com influências nítidas do rock dos anos 1960 e sobretudo 1970, que pisca o olho ao garage-rock e ao psicadelismo mesmo que o autor dos temas e alguns dos outros membros tenham começado por se afirmar nos corredores do jazz.

Nem sempre as canções são tão orelhudas. Os dois temas são, na verdade, os rebuçados pop dos dois álbuns gravados pelos Cassete Pirata. Há outros que fizeram o seu caminho até ao público — “Outro Final Qualquer”, “Ferro e a Brasa” e a mais antiga “Pó no Pé” — e existem dois álbuns completos. Mas se “A Próxima Viagem”, do disco anterior, serviu como porta de entrada para muitos ouvintes descobrirem os Cassete Pirata, “Só Mais Uma Hora” pode ter o mesmo efeito piscatório para este disco.

[“A Próxima Viagem”, do álbum “A Montra”, de 2019:]

Ao telefone com o Observador, “Pir” descreve esta nova canção como uma espécie de “gengibre para limpar o palato, como existe no sushi”, capaz de “tirar um bocadinho uma certa nuvem negra — temática — do disco, na abordagem um bocadinho mais crítica e no olhar um bocadinho mais ansioso sobre o mundo”.

João Firmino confessa que “ficar confinado, ter um filho nesse contexto e deixar de ter concertos e vida social” o deixou “muito assustado numa fase, quanto ao impacto que isso poderia ter na minha saúde mental”.

A canção serve de terapia. Pode também trazer mais público à banda? Logo se verá, mas “seria bom” porque “sendo importante fazer discos bons, sabemos que cada vez mais o que define o salto de notoriedade para quase todas as bandas é uma canção. Obviamente ter uma canção que é genérico de uma novela ou de uma série, ter uma canção que de repente passe muitas vezes na rádio, tudo isso faz com que muito mais gente tenha acesso à banda. Isso faz uma diferença brutal”.

Quantos mundos cabem numa canção

Para navegar no pop-rock, foi preciso arrumar temporariamente a estética do jazz. “Pir”, ou João Firmino, veio daí: nascido em Coimbra, estudou guitarra clássica, passou pelo Hot Clube de Portugal, frequentou o Curso Superior de Jazz Performance do Conservatório de Amesterdão — onde aliás conheceu Joana Espadinha, que também integra os Cassete Pirata — , deu concertos e gravou discos, seus (A Bolha, 2010, e A Casa da Árvore, 2013) e de outros.

As vicissitudes da vida de um músico português de jazz, mas também o gosto de “Pir” em estar fora de pé, ajudaram a que esta banda exista hoje. João Firmino ia colaborando com artistas da música popular, nem erudita nem jazzística, e apercebeu-se que tinha vontade de escrever e gravar canções, não se circunscrevendo à estética instrumental, jazzística, experimental e improvisada. Daí a convidar amigos e parceiros que conhecia do jazz para formarem uma banda pop-rock, ficando “Pir” encarregue da composição, foi um passo. Até o grupo chamar o músico, compositor e especialista em som Benjamim (Luís Nunes) para ajudar na produção das canções e de discos, foi outro.

A banda atua no Teatro Maria Matos, em Lisboa, dia 20 de outubro, e no Maus Hábitos, Porto, dia 21, passando de seguida por Aveiro e Torres Vedras

Martim Torres

Primeiro veio o EP, depois um primeiro disco. E concertos, muitos concertos país fora, para a banda ganhar estaleca, familiaridade com as canções e, claro, ouvintes. Agora chega um segundo álbum, produzido por Moritz Kerschbaumer (Foreign Poetry) e apresentado como “um resultado de um período de reflexão e de introspeção, dirigido sobretudo ao facto de, de um modo geral, nos termos desligado da terra, da vida plena e serena em comunidade, em detrimento do perigoso individualismo de que a virtualidade, por vezes anónima, nos tende a encaminhar”.

Poderíamos ser tentados a pensar que a pandemia da Covid-19 foi o grande catalisador para o compositor de uma banda de pop-rock ter ainda mais vontade do que a que já tinha para escrever canções quase sociológicas, que reflitam sobre problemas, hábitos e desafios coletivos. Mas “Pir” diz ao Observador que foi “um bocadinho de tudo”.

Por um lado, o músico, nascido em 1986 (portanto, com 35 anos), sentia uma série de insatisfações geracionais com uma época em que “a imagem está acima de tudo” e em que “a carreira” é decisiva para “a definição da vida das pessoas”. Ei-lo em discurso direto: “Chegamos a uma pré-crise de idade em que nos questionamos se escolhemos bem, se não temos tempo a menos para desfrutarmos da natureza e dos outros. Não nos conseguimos organizar de maneira a ter as pessoas de quem gostamos próximas, ou porque emigrámos ou porque vimos para a cidade. Depois há o boom das redes sociais e o impacto disso na saúde mental e no bem-estar das pessoas”.

A isto junta-se a perceção hoje clara de que “nos relacionamos de forma quezilenta” com o planeta e com a natureza e um dado biográfico que não é de somenos: João Firmino foi pai e isso mudou-o. “Quando soube disto, passado uma semana ou duas começou o primeiro confinamento. Isto já não estava ótimo, entre crises económicas, climáticas, sociais e humanitárias. Com isto…”, aponta, aludindo a preocupações com o futuro. E constata: “Sou de Coimbra mas vivi no campo, numa aldeia. De repente estar no centro de uma cidade como Lisboa é muito diferente. A realidade que o meu filho vai ter vai ser muito diferente da minha”.

[“A Pirâmide”:]

“Pir” diz que gosta de ser “control-freak”, conta que começou desde miúdo a ser “muito decidido e definido, sabia onde queria estudar e chegar”. De repente, acontece-lhe a paternidade, “um exercício de humildade em que percebemos que há uma série de coisas que queremos controlar mas que não vamos poder, desde logo na vida e na saúde do nosso filho”.

Se já tinha vontade de fazer “um disco concetual”, uma espécie de ópera rock social, a era pandémica pareceu ao compositor “só” mais apropriada ainda para enveredar por este caminho. Até porque isto não é inédito: “As influências que trago para esta banda quando componho canções tiveram sempre essa vertente. Houve uma fase a partir dos anos 90 em que o pop-rock ficou um bocadinho chiclete e cor-de-rosa — também temos essas músicas, de amor e de nostalgia sobre como as sensações na adolescência tinham um poder absorvente. Mas os Pink Floyd, os Led Zeppelin, os Blur, os The Doors, por exemplo, todos usaram canções para olhar para o mundo. Uma das fases mais ricas da nossa vida musical [portuguesa] foi com autores de música de intervenção. Para mim foi quase condição ter assumido esse propósito, por influência dos meus heróis”.

Em termos sonoros, “Pir” partia para a construção do esqueleto do novo disco de Cassete Pirata com algumas ideias em mente. Algumas “conclusões”, como detalha, “já vinham do disco anterior”. Destaca, por exemplo, a benesse de ter “duas cantoras como a Joana [Espadinha] e a Margarida [Campelo] na banda”, que “fazem com que, de disco para disco, queira sempre elevar a fasquia na maneira como usamos os coros e as vozes”. Depois, vinca a “vontade de entrar um bocadinho mais na música de raízes portuguesas”. Se Cassete Pirata “é uma banda com influências do rock inglês e americano e da música dos anos 70, também é uma banda que canta em português — pelo que faz-me sentido explorar esse caminho de música mais de raiz”.

Com vontade de introduzir mais “portugalidade” nas canções, tanto através do uso aprimorado da língua nas canções (na “forma como as letras são construídas”) quanto por “algumas melodias”, João Firmino recuou no tempo e voltou a ouvir com mais atenção alguns dos grandes escritores de canções em português — cita Jorge Palma e Fausto Bordalo Dias como exemplos — mas também “algumas coisas até mais tradicionais”.

A capa do novo disco dos Cassete Pirata, intitulado “A Semente”

O desafio para A Semente passava também por “repetir fórmulas” que dão à banda a sua identidade, “a marca de Cassete Pirata”, mas não as repetir “de uma forma que leve as pessoas a sentir que isto é só uma remastigação de coisas que já fizemos”, explica “Pir”. Embalado, o compositor, guitarrista e vocalista do grupo aproveita para deixar uma adenda: vinca que a banda é “super democrática” e que “funcionaria bem se qualquer um dos cinco compusesse os temas” — ser ele a fazê-lo deve-se apenas, diz, “a uma vontade minha, ao facto de compor ser para mim uma terapia e à banda ter começado com esta premissa”.

Das canções compostas para este novo disco, nem todas são tão acessíveis e imediatas (orelhudas) como “Só Mais Uma Hora”. Muitas, pinceladas com psicadelismo pop-rock (numa água cósmica navegada por bandas como Capitão Fausto e sobretudo os Madrepaz), riffs de guitarra, coros e um modo de cantar de “Pir” que parece efetivamente “português clássico”, são mais longas e menos cantaroláveis. As exceções serão o refrão adocicado de “Tudo Faz Parte”, o outro single do disco (“A Pirâmide”) e o garage-rock acelerado de “Ser Diferente”, que sugere mosh-pit gentil em concertos e um refrão (“Ai que me dera ser diferente / ser melhor que toda a gente”) e versos (“com sete dígitos na conta a vida tem outro sabor”) que o ouvido não esquecerá.

O que isto significa é que não se deve esperar de A Semente, o segundo álbum dos Cassete Pirata, um disco apenas com canções com menos de três minutos de duração, cantaroláveis e diretas ao osso. “Pir” nota ao Observador: por um lado “não vale a pena estar com falsos moralismos a dizer que não faço canções para as pessoas ouvirem e que não quero que elas atinjam os ouvintes como uma flecha de cupido”, por outro “se fizer uma canção funcional não a vou maltratar por não ter um refrão incrível”. Ou seja: também há espaço para exploração e subversão das fórmulas pop-rock mais óbvias.

Para explicarmos que banda é esta e que álbum novo é este, o melhor é mesmo pedir palavras emprestadas ao comandante deste navio pop-rock. Eis a definição de “Pir”: “Cassete Pirata é uma banda que consegue ter canções mais nostálgicas, sonhadoras, de amor e de saudade, mas que também consegue tocar pesado e com volume alto. Não temos qualquer preconceito”.

Poderemos todos atestá-lo ao vivo: o grupo vai andar por aí, em digressão pelo país. Depois de um concerto no Salão Brazil, em Coimbra, na semana passada, já têm agendada uma atuação no Teatro Maria Matos, em Lisboa, dia 20 de outubro (apresentação oficial e ao vivo do disco na capital), no Maus Hábitos, no Porto, no dia seguinte (21), em Aveiro dia 22 deste mês, na Avenida Café Concerto e em Torres Vedras, na Bang Venue, dia 23. Mais se seguirão.

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