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Em choque. Foi assim que o Presidente dos Estados Unidos recebeu a notícia que o seu homólogo russo se preparava para invadir a Ucrânia. Naquela tarde soalheira de outubro, sentado lado a lado com outros membros da sua administração na Sala Oval, Joe Biden foi informado pela primeira vez das intenções da Rússia. Os serviços de informação norte-americanos, juntamente com fontes diplomáticas e militares, garantiam que se desencadearia uma guerra na Europa no inverno.

Durante os meses anteriores, os Estados Unidos já tinham estado atentos às movimentações da Rússia, que reforçava a presença militar junto à fronteira ucraniana. Segundo uma investigação publicada esta terça-feira pelo Washington Post, os serviços de informação norte-americanos conseguiram desvendar vários dos planos de Moscovo, estudando o posicionamento das tropas russas no terreno e a maneira como estavam organizadas, assim como recorreram a várias fontes no seio do Kremlin para perceber as reais intenções de Putin.

A administração Biden esteve várias vezes reunida — sempre em segredo — para discutir a possível invasão da Rússia à Ucrânia. As opiniões, na altura, dividiam-se; como lembra Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional, havia quem estivesse realmente preocupado, enquanto alguns manifestavam ceticismo. Por sua vez, Joe Biden manteve, desde cedo, uma máxima: os Estados Unidos não deveriam intervir diretamente na guerra e deviam coordenar a resposta com os aliados da NATO.

Naquela tarde de outubro, o general Mark Milley revelou ao Presidente norte-americano aquele que parecia ser o plano de Vladimir Putin. “Nós informámos que [os russos] planeavam conduzir um ataque estratégico significativo contra a Ucrânia de múltiplas direções”, recorda o militar, que lembra o “choque” e o “temor” que vários oficiais da Casa Branca sentiram.

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O plano russo para conquistar a Ucrânia

De acordo com o plano da Rússia a que os EUA tinham tido acesso, o Kremlin atacaria Kiev desde Chernihiv e Chernobyl no inverno, numa altura em que o solo estava rijo o suficiente para os tanques conseguirem passar. Cercando a cidade, as tropas russas planeariam chegar à capital ucraniana três a quatro dias depois de começaram a invasão. Depois, o objetivo passava a ser retirar o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, do cargo — e matá-lo se fosse necessário. O sucessor seria um aliado de Putin, que transformaria a Ucrânia num Estado fantoche da Rússia.

Apesar de controlar Kiev numa questão de dias, Moscovo não se ficaria pela capital, ocupando depois o país todo — algo que o Kremlin reconheceu que poderia levar várias semanas. Os pormenores mostravam como a Rússia estava determinada a atingir o seu objetivo, mas vários continuaram com dúvidas que a invasão fosse desencadeada. “Não parecia o tipo de coisa que um país racional fizesse”, comentou ao Washington Post uma fonte que esteve na reunião da Sala Oval.

Até o próprio Joe Biden levantou várias questões e perguntou aos serviços de informação se aquilo ia mesmo acontecer ou se não passava de uma hipótese. A resposta foi sempre a mesma: Putin vai mesmo invadir a Ucrânia, ainda que, nos meses anteriores à invasão, Washington publicamente referisse que o Presidente russo não tinha tomado ainda uma decisão final. 

Os serviços de informação norte-americanos apuraram que, na origem da invasão, estaria o facto de Vladimir Putin se preocupar com o seu legado — e perceber que não tinha muito tempo para transformar a Rússia novamente numa potência. Além disso, as circunstâncias na comunidade internacional pareciam ser favoráveis para desencadear uma guerra: os Estados Unidos tinham-se retirado do Afeganistão o que era visto por Moscovo como uma humilhação, a chanceler alemã, Angela Merkel, já tinha garantido que não se ia recandidatar deixando um vácuo na sucessão, o Presidente francês, Emmanuel Macron, enfrentaria novas eleições, e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, continuava a braços com a crise pós-Brexit. Vários países europeus também dependiam energeticamente da Rússia, o que deu ao Presidente russo ainda mais confiança para invadir a Ucrânia.

Diplomacia norte-americana entra em ação — e fala com a Rússia

Dissipadas todas as dúvidas, a presidência norte-americana não perdeu mais tempo. Joe Biden teve “duas reações”, detalhou Jake Sullivan. A primeira foi tentar evitar que a invasão fosse avante, sendo que uma das ordens passava diplomatas dos EUA “irem a Moscovo para se sentarem com russos e dizer-lhes que ‘haveria consequências'”. A segunda consistia em avisar os aliados da NATO e orquestrar uma resposta conjunta ao início do conflito militar.

Em novembro, o primeiro contacto entre dirigentes russos e norte-americano deu-se. Numa conversa telefónica, o diretor da CIA e ex-embaixador de Washington em Moscovo, William Burns, falou com o conselheiro na área da política externa de Vladimir Putin, Yuri Ushakov. As impressões não foram as melhores: o dirigente do Kremlin criticou a expansão da NATO para perto da fronteira russa e foi bastante crítico face à atuação do Volodymyr Zelensky.

Noutro encontro, desta feita em Moscovo, William Burns reuniu-se com Nikolai Patrushev, um ex-oficial do KGP e presidente do Conselho Nacional russo. As explicações concedidas em relação ao aumento da tensão na fronteira ucraniana eram iguais às de Yuri Ushakov e o diretor da CIA foi informado de que a decisão de Vladimir Putin de invadir a Ucrânia estava praticamente fechada. “O meu nível de preocupação subiu depois disso, não desceu”, conta o norte-americano.

A 7 de dezembro, Joe Biden entrou em ação e falou, numa conversa telefónica, diretamente com o seu homólogo russo. O Presidente norte-americano “fez saber” a Vladimir Putin que a Rússia arriscaria “fortes sanções, incluindo económicas” em caso de escalada militar na Ucrânia, demonstrando ainda a sua “profunda preocupação”  face ao aumento de tropas russas na fronteira com a Ucrânia.

Biden ameaça Putin com “fortes sanções económicas” em caso de intervenção na Ucrânia

Ucrânia não queria acreditar que seria invadida — mas EUA tentam convencer Kiev

Noutra frente diplomática, os Estados Unidos tentaram avisar os dirigentes ucranianos de que o seu país natal seria invadido. Mas foram recebidos com ceticismo. Num encontro em Glasglow à margem da cimeira do clima, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, encontrou-se com Volodymyr Zelensky. “Foi uma conversa complicada”, admitiu o chefe da diplomacia dos EUA.

“Pode dizer-se uma milhão de vezes que vai haver uma invasão. Okay, até pode haver uma invasão — mas ser-nos-á fornecido aviões? Sistemas de defesa aéreo?”, recorda Volodymyr Zelensky nove meses depois daquela conversa com Antony Blinken.

Duas semanas depois do encontro em Glasgow, foi a vez do ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, encontrar-se em Washington com vários dirigentes norte-americanos. Um deles deu-lhes um conselho invulgar: “Comecem a cavar trincheiras“. “Nós sorrimos”, lembra o chefe da diplomacia ucraniana. Contudo, o responsável dos EUA foi mais explícito: “Estou a falar a sério. Comecem a cavar trincheiras. Serão atacados”.

Dmytro Kuleba pediu por mais detalhes — mas nunca chegaram. Aliás, a Ucrânia alega que as informações concedidas pelos serviços de informação norte-americanos eram vagas. E havia outras preocupações em jogo. “Nós tínhamos de encontrar um equilíbrio entre perceber os riscos e preparar o país para o pior… E gerir o país económica e financeiramente. Todos os comentários sobre a inevitabilidade de uma guerra refletia-se na taxa cambial da moeda ucraniana”, explica o ministro.

O Presidente ucraniano corrobora esta versão. Se a população tivesse sido informada anteriormente da invasão, os russos “teriam devorado” a Ucrânia. “Durante o caos, as pessoas fogem do país”, indicou, acrescentando que — por “mais cínico que possa soar” — a melhor decisão foi que as pessoas permanecessem no país.

Não foi só a Ucrânia que desconfiou das informações recolhidas pelos serviços de informação ucranianos. Também os aliados europeus olharam com ceticismo para uma possível invasão. Numa conferência dos G20 em Roma, Joe Biden partilhou algumas conclusões relativamente a uma possível invasão da Ucrânia com Angela Merkel, Emmanuel Macron e Boris Johnson.

Por sua vez, a diretora nacional dos serviços de informação norte-americanos, Avril Haines, informou os aliados da NATO de uma possível invasão. A reação? “Um número de membros estava cética no que concerne à ideia de o Presidente russo estar efetivamente a preparar a possibilidade de uma invasão” à Ucrânia. A maior resistência partiu dos dirigentes franceses e alemães, contrariamente aos países Bálticos e ao Reino Unido, que ficaram convencidos com a explicação dos EUA.

Perante desconfiança, EUA revelam informações ao público

A renitência dos aliados da NATO e da Ucrânia, e a confirmação de que uma invasão estaria mesmo iminente, os Estados Unidos decidem alterar a estratégia — e revelar informação outrora confidencial ao público. No início de dezembro, a Casa Branca revelou várias fotografias de satélite que demonstrava o aumento da presença militar russa junta à fronteira.

A finalidade passava por combater a propaganda russa, já que Moscovo queria transmitir a sensação de que tudo estava bem, de forma a levar a cabo uma guerra relâmpago contra a Ucrânia. Por conseguinte, os Estados Unidos e o Reino Unido coordenaram esforços para desmontarem a versão russa. Washington denunciou a existência de várias operações de bandeira falsa, enquanto Londres alertou para a possibilidade de Moscovo querer converter Kiev num Estado fantoche.

A estratégia dos Estados Unidos resultou com a comunidade internacional a seguir com mais atenção a presença militar russa na fronteira da Ucrânia. As autoridades ucranianas continuavam a transmitir uma mensagem de aparente normalidade, mas o diretor da CIA reuniu-se com Volodymyr Zelensky a 12 da janeiro. No encontro, William Burns deu mais detalhes sobre a possível ofensiva e não escondeu que a vida do Presidente ucraniano podia estar em risco.

Ainda assim, Volodymyr Zelensky não quis abandonar o país, decisão que foi apoiada pelos EUA. Em Kiev, num encontro a 19 de janeiro, Antony Blinken garantiu que Washington “apoiaria” a Ucrânia em todos os domínios, embora tenha recomendado ao Chefe de Estado ucraniano que se “preparasse” para a possibilidade de “continuar a exercer operações governativas” fora da Ucrânia.

Elevando o tom contra o Kremlin, Joe Biden garantiu que a Rússia sofreria um “desastre” se invadisse a Ucrânia. Do lado russo, havia uma aparente apatia, que ficou patente numa reunião entre Antony Blinken e Sergei Lavrov em Genebra, na Suíça, também em janeiro. Após uma troca de argumentos que durou quase duas horas, os dois responsáveis foram para uma sala à parte e o secretário de Estado perguntou-lhe diretamente se a Rússia ia invadir a Ucrânia. O ministro dos Negócios Estrangeiros russo simplesmente virou costas e saiu da divisão.

Rússia sofrerá um “desastre” e sanções económicas nunca vistas se invadir Ucrânia, ameaça Biden

Em fevereiro, a ameaça de uma nova guerra assombrava a Europa. Vários dirigentes ucranianos começaram a acreditar numa invasão, apesar de nunca o admitirem publicamente. Os serviços de informação dos EUA e do Reino Unido foram recolhendo mais informações sobre as forças russas. No entanto, alguns dos seus aliados — como França ou Alemanha — continuavam renitentes em acreditar que Vladimir Putin ia invadir a Ucrânia. Emmanuel Macron falou com o chefe de Estado russo quatro dias antes da invasão, que reagiu com ironia ao pedido do Presidente francês: “Queria estar a jogar hóquei”.

“Queria estar a jogar hóquei de gelo” respondeu Putin a Macron quando este sugeriu encontro com Biden antes da invasão

Na Ucrânia, a ficha caiu a 23 de fevereiro. Nessa altura, os EUA multiplicavam-se em avisos de que a invasão iria começar dentro de poucas horas. Foi aí que Volodymyr Zelenky implorou a Joe Biden que o pusesse em contacto com inúmeros líderes mundiais, para que estes convencessem o Presidente russo a não invadir a Ucrânia. Contudo, os esforços foram em vão — e as tropas russas atacaram a Ucrânia a 24 de fevereiro.