Ou não fosse Martin Scorsese um “católico inquieto”, o seu cinema está atravessado pelos temas da culpa e do arrependimento, da fé e da dúvida, da lealdade e da traição, dos dilemas morais e dos tormentos de consciência. Eles podem manifestar-se nos mais diversas épocas e contextos históricos, sociais e humanos, sejam religiosos, como em A Última Tentação de Cristo (1988) ou Silêncio (2016), seja entre polícias e criminosos, como em Tudo Bons Rapazes (1990), The Departed — Entre Inimigos (2006) ou O Irlandês (2019), no submundo mais sórdido, como em Gangs de Nova Iorque (2002), no mundo do dinheiro, como em O Lobo de Wall Street (2013), ou mesmo no das emergências médicas, caso de Por um Fio (1999).

A história real de Assassinos da Lua das Flores, que se baseia no livro de David Grann Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI, adaptado pelo próprio Scorsese e por Eric Roth, parecia feita à medida destas preocupações que estão no âmago de alguns dos mais notáveis filmes de Martin Scorsese. Nos anos 20, no Oklahoma, foi encontrado petróleo em terras dos índios Osage, que ficaram fabulosamente ricos e começaram a comportar-se como tal, comprando casas caras, automóveis de luxo, joias e objetos valiosos, e contratando brancos para trabalharem como seus motoristas, criados, cozinheiros e empregados.

[Veja o “trailer” de “Assassinos da Lua das Flores”:]

Vários desses Osage endinheirados, nomeadamente mulheres que tinham entretanto casado com brancos da região, começaram então a ser assassinados, alguns de forma bárbara, ou a morrer com estranhas doenças; e os direitos do petróleo a passarem para os maridos daquelas ou para os advogados ou banqueiros que geriam o dinheiro dos índios e índias que haviam sido considerados como “irresponsáveis”. O caso tomou proporções tais, que o recém-formado FBI entrou em campo e descobriu um plano sinistro de assassínios, casamentos de interesse e fraudes com seguros tendo os Osage como alvo, traçado por William Hale, um rico rancheiro da região, com a conivência de autoridades, médicos, advogados e até agências funerárias locais.

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Tal como os dois (e excelentes) filmes anteriores de Martin Scorsese, Silêncio e O Irlandês, este Assassinos da Lua das Flores, financiado e distribuído em parceria pela Apple TV+ e pela Paramount, apresenta-se como uma produção de considerável arcaboiço e com fôlego de longo curso (quase três horas e meia), a que se junta uma minuciosíssima recriação de época, um tempo em que os EUA já viviam intensamente o século XX, mas ainda tinham um pé no século anterior. Mas ao contrário daqueles, Assassinos da Lua das Flores é redundante, demonstrativo, prolixo e maçudo, desprovido da mesma elaboração dramática, complexidade moral, destreza no contar e brilho cinematográfico, e não consegue justificar a duração.

[Veja uma entrevista com Martin Scorsese:]

Martin Scorsese e Eric Roth escolheram centrar-se no enredo dos assassínios dos índios e dos matrimónios de interesse, destacando o de Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), o sobrinho bronco de William Hale (Robert De Niro), com a lacónica Mollie (Lily Gladstone), e menorizando a narrativa paralela da criação do FBI liderado por J. Edgar Hoover, cujos agentes vêm fazer o que a cavalaria faz nos “westerns”, intervir em cima da hora para salvar a situação. E ficaram com uma história limitada e repetitiva entre mãos, e personagens transparentes e elementares, que não dão dividendos em termos psicológicos, de drama ou de agitação moral. O laço que une Ernest e Mollie nunca é bem explicado, e Ernest é tão brutinho e primário, que nem é capaz de se retratar e redimir quando a mulher lhe dá uma última oportunidade de provar que a ama mais do que é obediente à sua execrável família. Sobra a (justa) indignação, mas não chega para preencher um filme tão longo como este.

[Veja uma entrevista com Lily Gladstone e Leonardo DiCaprio:]

Os atores – com a exceção de Lily Gladstone – também sofrem com isto. De Niro tem muito pouco para fazer com o seu William Hale, um boneco de maldade amoral que não muda do início ao fim do filme, e Leonardo DiCaprio multiplica trejeitos e caretas a interpretar um Ernest Burkhart mentalmente raso, psicologicamente esquemático e emocional e moralmente tolhido, apesar da dedicação aos filhos. E não há uma única personagem secundária digna de nota, pese embora a presença de Jesse Plemons no agente do FBI que dirige a investigação, e de John Lithgow e Brendan Fraser a fazerem “pontinhas” nos lados da acusação e da defesa, quando do julgamento dos criminosos. Até como anti-épico, e como contra-“western” tardio e em ato de contrição com consciência pesada (tratámos muito mal os índios), o filme falha.

[Veja uma cena do filme:]

Poucas vezes a realização de Martin Scorsese teve tantas papas na língua como neste filme reiterativo e penoso, com excesso de exposição e escasso poder de síntese, que se torna mais entorpecente à medida que progride, e de onde se ausentaram para parte incerta o dinamismo da narração, a tração visual vertiginosa, o domínio da tensão, a câmara bem ginasticada e a montagem que dá forma, ritmo, sentido e emoção, e que juntos compõem o código genético do cinema do realizador de Taxi Driver. A sensação que Assassinos da Lua das Flores deixa é que esta história se contava perfeitamente bem em duas horas e uns pozinhos. Com os presentes 206 minutos, o filme é uma solene e poderosa estopada.

Um dos próximos projetos de Martin Scorsese é adaptação do novo livro de David Grann, The Wager: A Tale of Shipwreck, Mutiny and Murder, a história de uma tragédia marítima ocorrida no século XVIII, ao largo da costa sul-americana, que o escritor foi resgatar ao esquecimento. Esperamos lá reencontrar o cineasta que nos falhou em Assassinos da Lua das Flores.