Na manhã deste domingo, Ricky Gervais revelou no twitter que tinha “escondido”, na estátua do Marquês de Pombal em Lisboa, uma bola de futebol com as cores de Portugal autografada pelo próprio. Uma graça simples e carinhosa de um humorista que, na verdade, gosta muito de dizer aquilo que uma parte do público não vai querer ouvir. Ou talvez seja aquilo que o público vai querer ouvir, mas tem o radar confrangedor no máximo logo à partida. Fala de pénis (muitos pénis), anti-semitismo, críticas a Greta Thumberg, pedofilia e pessoas com deficiência. Contem com ele para tudo isto. Um dos criadores e protagonista de After Life e The Office, o britânico de gema que, com 62 anos, goza do estatuto de “um dos humoristas mais bem sucedidos do mundo” – as suas nove casas de banho não o deixam mentir — continua sem papas na língua, ainda que, segundo o próprio, e mesmo com um estatuto praticamente incancelável, haja quem queira cortar-lhe o músculo da boca. Atuou este sábado numa Altice Arena à pinha, que ouviu o seu Armageddon, especial sobre o fim do mundo e o fim de uma espécie — o ser humano, tão inteligente, tão bem criado, tão destemido, mas “com medo das palavras”.

Ricky Gervais, apesar de andar mais preocupado com a morte, ainda que não queira pensar sobre ela, continua atento aos dias de hoje. Borrifa-se no politicamente correto mas move-se no seu limbo, como uma criança malandra que diz uma asneira durante um jantar de adultos. No entanto, agora “sente-se woke“, se woke for ser um “branco privilegiado anti-fascista e anti-racista”, sem que seja preciso escrevê-lo na biografia das redes sociais. Mas está disposto a rir de tudo, sem limites, sem ter medo de ser cancelado por ofender os outros. Não admira: mesmo depois da controvérsia com o seu Supernatural — especial no qual discorreu muito sobre a comunidade transsexual, atitude que lhe valeu muitas críticas — o especial tornou-se um sucesso na Netflix. E foi nessa lógica, que tem sido sempre a mesma, que o britânico atuou: uma espécie de “posso dizer o que me apetecer sobre qualquer pessoa que nada me vai acontecer”. Um pregador de liberdade de expressão perante 12.500 fãs, em que a repetição por vezes aproxima-se de uma celebração (pouco) religiosa já celebrada noutros especiais. Por vezes, é genial. Noutras, torna-se no próprio alvo.

Comecemos pelos seus pensamentos. Ricky Gervais tem muitos, para dar e vender: pode estar num comboio e pensar como seria se empurrasse uma idosa borda fora; pode pensar, baseado no filme O Exorcista, como estará a sua falecida mãe no Inferno com um castigo infinito que envolve sexo oral com vários órgãos de pessoas diferentes. Ou como estarão os milhares de pedófilos na China, onde “há muito menos crianças” por causa da política de um único filho. As palavras têm um efeito e quão mais esticados forem os supostos limites que uma parte da sociedade impõe, melhor para o humorista. Porque o mundo está agora dividido assim: entre os que querem dizer aquilo que sentem que não podem mas dizem; e os que acreditam que há temas sensíveis, mais associados a minorias, por exemplo, com os quais é melhor não brincar. Nesse espaço reside a revolução das palavras, das que hoje magoam e antes eram aceitáveis — ou melhor, passavam sem que fossem assinaladas. “Dantes, queer era usado para falar de alguém homossexual, agora é só usado para nos referirmos a alguém que precisa de atenção”, atira a dada altura.

O espectáculo com pouco mais de uma hora foi também um misto entre um comediante que gosta de pisar o risco por pisar, com a certeza de que vai “incendiar as redes sociais”, sem sentir um esforço de atualizar o menu de punchlines, e um comediante que ainda consegue tirar completamente o tapete, com uma inteligência textual de fazer inveja. Basta olhar para o momento — que é muito provavelmente o melhor de todo o espetáculo — em que nos conta a história de um pai com dois filhos pequenos, um que gosta de jogar ténis e outro, com deficiência, que precisa de uma cadeira de rodas elétrica. O pai prefere o primeiro e tem pouca paciência para o segundo. O público, já com uma bagagem feita de constrangimento e gargalhadas, não podia estar preparado para o que vinha a seguir. É que o filho com deficiência, que merece toda a nossa solidariedade, revela-se um racista, machista e anti-semita. Afinal, acabámos do lado do filho ou a cuspir para a criança, tal como Ricky Gervais finge fazer? É desse desconforto que o humorista anda sempre à procura.

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O problema de Ricky Gervais é quando se sente que não quer ir mais longe do que já foi — mesmo reforçando que quem está em palco é uma persona, como um ator que incorpora outras tantas vidas que não as suas. Os tais pensamentos são seus, mas usados numa performance onde o último objetivo é rir. Não é uma opinião, ainda que muitos considerem que sim. Por exemplo, quando fala, do alto dos seus recursos milionários e de jatos privados, sobre a ativista climática sueca Greta Thunberg e das gerações mais novas que vão herdar um planeta caótico, a derreter, repleto de máscaras de oxigénio. Quem não gosta da onda de protestos contra as alterações climáticas vai rir-se com o humorista por legitimar um certo escárnio e mal dizer contra estas gerações. Quem está do lado da luta climática, como possivelmente Ricky Gervais está, não terá muita paciência para o ouvir. Quem só se quer rir de uma boa e fresca piada, não encontrará nada de novo.

O humorista deixou de fora os transexuais, desta vez. Não gosta de wokismo, mas quase transparece que esse movimento o obrigou a ir à procura de outros alvos — ou, pelo menos, de aprimorar os que já tinha. Ainda assim, não deixou de fora temas raciais ou a apropriação cultural, em que figuras públicas “são canceladas” por usarem partes de outras culturas para a sua estética ou negócio. “Criticaram a Gwen Stefani por usar um penteado africano, criticaram o Jamie Oliver por fazer a sua receita de comida africana. Mas e os negros que usam a palavra começada por N? Fomos nós que a inventámos”, numa clara referência ao termo pejorativo com que os homens brancos tratavam os seus escravos negros nos Estados Unidos da América.

Não se esqueceu também da cultura de cancelamento nas artes. Deu o exemplo de um site, “Does The Dog Die?”, onde um internauta pode pesquisar, de forma preventiva, se há animais a morrer nos filmes que pretende ver. As perguntas hilariantes que deixaram sobre A Lista de Schindler, como “há gordofobia neste filme?”, fazem com que o humorista, ainda que por vezes repetitivo, continue a ser um belo observador dos tempos modernos, que aponta para o ridículo (não é sempre esse o trabalho de um comediante?) de um progressismo que muitos consideram ditatorial e nos coloca uns contra os outros, em trincheiras virtuais.

No fim, numa espécie de encore: defendeu com unhas e dentes a liberdade de nos rirmos do que quisermos e de se lutar contra a cultura de cancelamento, “um novo autoritarismo”, defende, que atira uns quantos para o desemprego. Não parece é que o britânico sofra muito com esse movimento.