Vêm umas atrás das outras, mas nem todas são grandes o suficiente para terem direito a um nome. O comboio de depressões do Atlântico Norte já nos trouxe, este outono, as depressões Agnes e Babet mais a norte, e agora vem aí a Ciáran, nomeadas pelos institutos meteorológicos do norte da Europa, e a Aline, o Bernard e a Celine, com os nomes dados de acordo pelos institutos da Europa do sul. Cada uma com suas características, mas Bernard foi aquela que fez os meteorologistas levantar a sobrancelha: será que deu origem a um ciclone subtropical?

Aline é uma carruagem num comboio de tempestades?

Uma coisa é certa, as depressões, em particular a Aline e Bernard trouxeram muita (mesmo muita) chuva: na Espanha continental, entre 17 e 22 de outubro, choveu quatro vezes mais do que o que seria normal para esta altura do ano.

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Bernard não chegou a ser chamado de outra coisa que não depressão – ou borrasca, em espanhol –, nem houve outros avisos que não os esperados para uma tempestade que se sabia que ia trazer chuva e ventos fortes. Mas a Agência Estatal de Meteorologia espanhola (Aemet) cedo deixou claro que esta não era uma tempestade normal. “Na ausência de uma análise mais aprofundada, os primeiros dados que recebemos sugerem que pode ter tido, em alguns momentos do seu ciclo de vida, certas características tropicais”, escreveu a agência na plataforma X (antigo Twitter).

No entanto, quem classifica os ciclones tropicais e subtropicais é o Centro Nacional de Furacões (NHC) dos Estados Unidos e este organismo decidiu, em conjunto com a Aemet, que não valeria a pena acompanhar a evolução da depressão Bernard dada a “muito baixa probabilidade” de se tornar um ciclone daquele tipo. “Uma análise posterior, mais exaustiva, é o que determinará se Bernard efetivamente se converteu, por algumas horas, num ciclone de tipo tropical ou subtropical ou não”, referiu a Aemet.

O que é uma depressão?

A depressão forma-se depois de uma massa de ar frio e seco se encontrar com uma massa de ar quente e húmido. Quando estas massas de ar se tocam, a diferença de densidade não permite que se misturem — “como água e azeite”, ilustra Carlos da Câmara — e acabam por “formar ondulações”. Como as duas massas de ar também tem velocidades diferentes, essa superfície ondulada vai “engelhar” e a massa de ar quente acaba por penetrar na massa de ar frio.

“Desse contacto, entre ar quente e húmido com ar frio e seco, é disponibilizada uma grande quantidade de energia que vai fazer com que se formem movimentos de circulação e movimentos verticais, que provocarão chuva e ventos fortes”, explica ao Observador o climatologista Carlos da Câmara, investigador no Instituto Dom Luiz da Universidade de Lisboa.

O confronto, como dois exércitos num campo de batalha, provoca instabilidade e as massas de ar começam a rodar uma sobre a outra, como numa dança, formando uma zona de baixas pressões (daí o nome depressão). No hemisfério norte, esta rotação da depressão acontece no sentido contrário aos dos ponteiros do relógio — e no hemisfério sul ao contrário.

Esta rotação no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio (no hemisfério norte) é chamada de ciclónica — por oposição aos anticiclones que rodam no sentido horário (no hemisfério norte). Assim, uma depressão também pode ser chamada de ciclone, embora em Portugal se prefira reservar essa designação para as tempestades mais violentas, que originam furacões, e que têm origem tropical ou subtropical.

Qual a diferença entre ciclones tropicais, subtropicais e extratropicais?

Ser tropical ou subtropical está relacionado, em primeira análise, com as latitudes onde se formam os ciclones: próximo do equador ou um pouco mais acima, por oposição às latitudes médias onde, normalmente, se formam as depressões (que também podem ser chamadas de ciclones extratropicais). Mas só isso não chega.

Existe uma diferença muito significativa entre depressões e ciclones tropicais: enquanto as primeiras vão buscar a sua energia ao contraste entre as massas de ar quente e das massas de ar frio — portanto, quanto maior a diferença, mais energia —, os ciclones tropicais serão, pelo contrário, tanto mais potentes e duradouros quanto menor a diferença da velocidade do vento. Além disso, os ciclones tropicais alimentam-se sobretudo do calor fornecido pelo oceano.

Posto de outra forma, o encontro do ar frio que vem dos polos e o ar quente que vem dos trópicos nesta altura do ano é normal, assim como é a formação das depressões no Atlântico que depois trazem chuva e vento à Península Ibérica e ao continente europeu. Invulgar é a temperatura à superfície do oceano Atlântico estar tão alta, o que leva a uma maior evaporação, logo mais energia que pode alimentar as tempestades tropicais e subtropicais. Uma das causas é o aumento da temperatura global da atmosfera (causado pelas alterações climáticas), que também se traduz num aumento da temperatura das águas superficiais, outra é a enfraquecimento dos ventos sobre o Atlântico.

Com ventos mais fracos sobre o oceano, há menos poeiras arrastadas do norte de África (que serviriam para bloquear parte da radiação que atinge a superfície do oceanos) e as águas superficiais também não são levadas para outros locais, continuando a aquecer com a exposição ao Sol — como uma bacia de água que deixamos na rua num dia de calor —, explica Carlos da Câmara.

Os ciclones subtropicais, por sua vez, são ciclones híbridos que tanto apresentam características tropicais como subtropicais e usam como fonte de energia ora o calor do oceano, ora a temperatura elevada do oceano, ora o contraste das massas de ar, explica o meteorologista da Aemet e especialista em ciclones, J. J. González Alemán, na plataforma X.

Tanto as depressões podem originar ciclones subtropicais como estes se podem transformar em ciclones tropicais, o que, para a população, não será mais do que uma questão de semântica e os efeitos sentidos muito semelhantes, destaca Judson Jones, meteorologista e jornalista no jornal The Times. A maior diferença está na estrutura dos ventos: num sistema subtropical, os ventos vão espalhar-se muito mais longe do que num sistema tropical, com ventos mais próximos do centro, disse Daniel Brown, especialista no NHC, ao jornal The New York Times.

Bernard poderá ter sido uma tempestade subtropical?

A depressão Bernard, tenha ou não sido um ciclone subtropical ou tropical, foi claramente invulgar. À semelhança das outras depressões atlânticas do mês de outubro, foi bastante “cavada”, ou seja, com uma pressão no centro muito mais baixa do que a da parte envolvente, mas no caso de Bernard foi batido o recorde da pressão mais baixa já registado numa depressão a atingir a Península Ibérica.

Bernard formou-se em latitudes subtropicais, na região mais a oeste do Atlântico Norte, onde as águas são mais quentes e a atmosfera está carregada de humidade. Formar-se em latitudes muito mais baixas do que o habitual não é o suficiente para a classificar como tempestade subtropical, mas o caminho que viria a percorrer pelos Açores, Madeira e Canárias, alimentaram as características que viria a mostrar.

Trajetória da depressão Bernard

Previsão da trajetória da depressão Bernard, a 21 de outubro, formada no ponto A e terminando no ponto Z — ECMWF

Ao contrário das depressões vulgares, Bernard evoluiu com um formato de círculo quase perfeito e um centro quente até entrar em terra pelo golfo de Cádiz, quando perdeu a forma e se tornou assimétrica. Além disso, a tempestade que tinha vindo a ganhar força alimentada pelas águas anormalmente quentes do Atlântico (que libertam mais vapor de água), perdeu a intensidade assim que tocou a terra — tal como acontece com os ciclones tropicais. Uma depressão (ou borrasca), pelo contrário, não perde a força quando chega a terra.

Estas são algumas das razões que levam J. J. González Alemán e a Aemet a considerar que se tratou de um ciclone subtropical ou tropical, pelo menos, durante algumas horas. A Revista de Aficionados da Meteorologia comenta mesmo, na plataforma X, que, “não fosse ter a Península Ibérica no caminho e Bernard poderia ter sido um ciclone subtropical em plena expansão”.

A Península Ibérica já tinha assistido a fenómenos deste tipo?

J. J. González Alemán lembrou que uma depressão muito semelhante a Bernard atingiu as Canárias e que foi exatamente isso que o levou a especializar-se em ciclones. Uma análise posterior a esta tempestade, que atingiu as ilhas no final de janeiro de 2010, mostrou que se tratou afinal de um ciclone subtropical.

O jornal diário de Córdoba, Cordopolis, lembra ainda dois outros exemplos que atingiram a Península Ibérica: Vince, em 2010, e Alpha, em 2020.

Vince formou-se e atingiu a Madeira no dia 7 de outubro de 2005 já com um olho bem desenhado e foi classificado como furacão (ciclone tropical) pelo NHC dois dias depois. Vince foi o primeiro ciclone tropical a formar-se no oceano Atlântico ao largo da Península Ibérica. À semelhança de Bernard, entrou pelo golfo de Cádiz, mas nessa altura já tinha perdido a força.

Alpha, por sua vez, nasceu como uma depressão extratropical, no nordeste do Atlântico, no dia 14 de setembro de 2020. No dia 17 já estava suficientemente bem organizada para ser classificada de tempestade subtropical e foi assim que passou ao largo de Lisboa e entrou em terra pela Figueira da Foz, no dia 18. Alpha continuou por terra até Espanha com ventos muito fortes, mas já como depressão. Alpha foi a primeira tempestade subtropical a atingir diretamente Portugal, de acordo com o relatório do NHC.

Atualizado: 2 de novembro de 2023, 10h30 — clarificação do que alimenta as depressões e do efeito do enfraquecimento dos ventos sobre o oceano Atlântico.