Andrew McNicol, 31 anos, um dos jovens coreógrafos mais promissores do Reino Unido, está sozinho na plateia do Teatro de S. Carlos, em Lisboa. A sala, iluminada na sua beleza oitocentista, deixa-o “deslumbrado”, diz. “Nem acredito que vou estrear uma peça minha aqui.” Mas estreou. E Upstream (Rio Acima) que criou para a Companhia Nacional de Bailado, é apenas uma das muitas obras que desenvolveu para várias companhias de bailado europeias e norte-americanas, desde que se estreou com apenas 21 anos. Agora foi convidado por Carlos Prado, diretor artístico da CNB, que queria dar aos bailarinos da companhia e ao público português a possibilidade de verem trabalhos onde a linguagem da dança contemporânea se cruza com a da clássica, em que a música emerge como figura central do bailado. Estes são os dois fios que unem o programa “Balanchine, McNicol, Forsythe” que a companhia estreou esta quinta-feira no Teatro Nacional de São Carlos, onde fica até ao dia 24 de março.
De Lisboa, McNicol, retirou a força do rio Tejo, “a omnipresença da água na história e na cultura portuguesas” para mais uma vez fazer aquilo que mais gosta que é “usar o movimento dos corpos como veículo para levar ideias, sensações, desde o cérebro até ao coração”, ou “ser um poeta que em vez de usar palavras usa a dança”. Assim, nasceu a ideia de explorar os mundos subaquáticos, as águas que, no sentido contrário ao da corrente, regressam à nascente, à origem, e para a qual foi buscar a música de Peter Gregson, compositor e violoncelista, autor, entre outros, da banda sonora do filme Blackbird, do jogo de vídeo Boundless e incontáveis peças para bailados, além de ter colaborado com os U2 ou Ed Sheeran.
O coreógrafo inglês, em conversa com o Observador, revelou-se também surpreendido com o virtuosismo dos bailarinos da CNB e a forma como os mesmos colaboraram na criação deste Upstream, uma peça visualmente muito bela, ainda que simples, pois todo o ênfase do trabalho de McNicol, como de Balanchine ou Forsythe, é colocado na relação entre música e movimento, e onde a dança contemporânea mostra orgulhosamente as suas raízes no ballet clássico. A obra, que nos mergulha num mundo verde, onde um jogo de reflexos desdobra a dança numa fantasia sem fim, é acompanhada pela atuação ao vivo dos solistas da Orquestra de Câmara Portuguesa, dirigidos por Pedro Carneiro.
“Balanchine, McNicol, Forsythe” revisita um século de transformações no ballet clássico: Georges Balanchine, o coreógrafo russo, que também era formado em música e revolucionou o ballet, nomeadamente pela introdução de ritmos vindos do jazz e da música de raiz africana, do qual a CNB faz regressar a obra Concerto Barroco, peça de “dança abstrata” a partir de Concerto para dois Violinos em Ré, de J.S.Bach; William Forsythe, mítico diretor do Ballet Frankfurt que, a partir de uma singular fusão entre as técnicas clássica e contemporânea criou uma linguagem própria, e cujas obras integram, hoje, o repertório de companhias de todo o mundo. WorkwithinWork, que será dançada pela primeira vez em Portugal, estreou-se em Frankfurt, no ano 1998, e é composta sobre Dueto para 2 Violinos, de Luciano Berio.
Neste programa também é visível o esforço de Carlos Prado em equilibrar o trabalho da CNB entre estas duas linguagens, uma vez que a companhia, que nasceu da dança clássica, se foi transformando em pluridisciplinar. “Estas peças são de uma exigência enorme e quero mostrar como os nossos bailarinos estão em excelente forma, mas isso passa também por dar-lhes a experiência de dançarem coisas muito variadas e, nomeadamente no trabalho com McNicol, onde eles são levados a fazer a peça crescer, ganhar camadas com as suas interpretações”, explica o diretor artístico que também foi bailarino da Gulbenkian e do Ballet da Flandres. “O próximo programa, que vamos estrear em maio, será todo focado da dança contemporânea”, anuncia ainda.
Dançar a alma através do corpo
Com o Teatro Camões em obras até setembro, a CNB mudou-se para os estúdios Cordon e está neste momento sem sala. Estarão agora nove dias no S. Carlos, para logo de seguida começarem a trabalhar no programa que vão estrear em maio, no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, de onde partirão para uma breve digressão pelo país. “Só em outubro estrearemos no Teatro Camões”, revela Carlos Prado.
O atraso no início das obras de reabilitação da sala que nasceu na Expo98 — e se tornou depois a casa da CNB — não mudaram o programa que foi pensado para a temporada de 2023/24, e que passava por este programa, minimalista, fisicamente muito exigente, onde praticamente sem cenários ou guarda roupa sofisticado se celebra o corpo e a música tocada ao vivo, com sons e movimentos efémeros, irrepetíveis, a exigir, como Balanchine, que a dança e a vida se fundam num infinito presente.
Sempre interessado nas vanguardas, Balanchine, que começou a dançar na Rússia imperial e acabou a fundar a New York City Ballet, além de ter revolucionado o ensino da dança nos EUA. Este Concerto Barroco criou-o Balachine, como um exercício para alunos avançados da School Of American Ballet, mas, em 1941, havia de transformá-lo numa das coreografias apresentadas no Hunter College Theater de Nova York, sob a polémica de ser uma coreografia sem história, onde os bailarinos dançavam com os mesmos maillot negros do treino, e todo o cenário se resume a um vibrante fundo azul, como um céu de primavera que derrama uma luz alegre sobre as bailarinas que dançam “um ballet que saiu da lógica do ballet”. Na CNB, a obra de Bach, cujas sonoridades são a pauta desta coreografia, é executada pela Orquestra Sinfónica Portuguesa e os dois violinistas Álvaro Pereira e José Pereira.
WorkwithinWork, de Forsythe, é a peça mais longa do programa e também a mais austera. De um fundo negro os bailarinos emergem para a luz onde os corpos se encontram fugazmente, se separam, se movimentam como que impulsionados pelos ritmos criados por Luciano Beri. Como um caleidoscópio, desenham-se imagens que logo se desfazem, formas que rapidamente se mudam noutras, como paixões fugazes mas não menos assombrosas.
O foco deste programa é mostrar uma dança depurada, limpa de todos os excessos que desviam os olhares dos corpos que escondem um imenso esforço sob uma máscara de leveza como anjos sacrificiais. Daqui retemos a ideia da imensa fragilidade dos corpos humanos, que, suportados apenas por pequenos pés, superam a gravidade, desafiam o espaço e se equilibram entre a alma infinita e a carne finita, e nos fazem sentir que nunca lhes agradeceremos suficientemente a grande beleza que nos dão a viver através dos seus corpos musicais.
“Balanchine, McNicol, Forsythe” terá ao todo nove apresentações até ao dia 24 de Março. O espetáculo tem cerca de 1 hora e 50 minutos, com dois intervalos de 15 minutos. No dia 16 haverá uma conversa pré-espetáculo intitulada “Vamos Falar de Dança”, moderada por Cristina Peres, pelas 17 horas.