Escrito na primeira pessoa, o romance (editado originalmente em 2017 e agora relançado) tem um título que não engana: Budjurra – João – é preto e português. Filho de cabo-verdianos e lisboeta, é demasiadas vezes encarado como estrangeiro dentro da própria terra. O livro vai tratando essa ambiguidade, e um desconforto também ele ambíguo: por um lado, há os portugueses brancos que vêem noutro português um estrangeiro; por outro, há este português que, no seu país, tem de estar permanentemente a dizer que não é de outro, mas que os seus pais o são. Na família de Budjurra, temos ainda uma irmã que não gosta de pretos e um irmão que não gosta de brancos.

O enredo não é propriamente linear. Em vez disso, os capítulos são mais ou menos desconexos, sendo apresentados ao leitor de forma quase aleatória, e podendo ser lidos de forma independente, ainda que a leitura não caia fraccionada. Assim como assim, os capítulos – invariavelmente curtos – compõem bem a personagem, dando uma imagem panorâmica sobre o seu universo, tanto mental como social. Nisto, o título diz ao que vem, e os capítulos pouco mais abordam do que a relação preto-Portugal. Ao longo da leitura, o leitor depara-se com muito do que já é expectável por quem não está alheio às relações de poder: aqui, é a cor que não só cria o lugar do outro como faz com que todos os outros sejam o mesmo outro. No caso, Budjurra, ao entrar na universidade, dá por si num cenário em que se extrapola, vendo a sua cor transformada em tábua casa, uma vez que uma colega branca se espanta: se os pretos que conhece eram de maneira tal, porque não o seria Budjurra? É o não serem todos iguais que causa espanto e, para a personagem, é o acharem que são todos iguais que o faz. Para o leitor, fica claro que se tem no cerne da narrativa uma ideia de comunidade que esfumaça o indivíduo.

Telma Tvon acaba por criar, no romance, um compêndio de situações-chave em que se mostra o racismo em Portugal ou, se quisermos tirar-lhe o epíteto, as condições que marcam a vida de um preto em Portugal. Isto vai de declarações sem intuitos ofensivos, permeadas pelo preconceito, como a anteriormente mencionada, ao ódio perpetrado por brancos, ao desprezo imbuído na construção racista (frequentemente incorporado pelo seu alvo) e às forças policiais poluídas por skinheads. Aqui, a autora pega ainda na perversão e no sadismo que alicerçam o ódio, e fá-lo com uma prosa límpida que não foge à oralidade:

(…) um brotha da Quinta do Mocho foi brutalmente espancado por esses racistas dos skinheads após ter sido atraído por uma loira bem boa na discoteca. Ela disse que o queria levar para casa e levou, só que lá o esperavam mais três e não eram bons nem loiras. Eram três skinheads que o agrediram ao ponto de ele ficar meses sem conseguir comer, com o maxilar todo rebentado. Pagaram à loira para atrair um preto só para eles o agredirem mas essa gente é mesmo doente.” (p. 150)

Como tudo isto é visto pelas lentes de Bujdurra, o leitor cria de imediato empatia com ele. Afinal, a leitura afunila-se na sua versão, e na sua visão do mundo, frequentemente explicativa, sem dar espaço à cogitação. Esse poderá ser o calcanhar de Aquiles do romance, uma vez que o narrador explica frequentemente que é “boa pessoa”, não dando espaço ao leitor para o concluir. Pelo contrário, a conclusão é-lhe imposta, não só porque Budjurra se justifica, mas também porque a personagem parece construída sem defeitos, faltando-lhe ambiguidade, cinzentismo, a possibilidade de fintar o leitor.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR


Título: “Um preto muito português”
Autora: Telma Tvon
Editora: Quetzal
Páginas: 184

Durante a leitura de Um preto muito português, o leitor lá se apercebe de que a estratégia narrativa de Tvon passa precisamente por evitar qualquer ambiguidade e por forçar a empatia que advém da ausência de discórdia. Budjurra é bem intencionado e o leitor, ao ouvir-lhe a voz, só lhe vê as boas intenções. Para lá dos longos trechos sobre discriminação racial, que marcam evidentemente o romance, isto vê-se ainda, de forma peremptória, no que a personagem pensa e diz sobre as mulheres, em relação às quais tem um discurso feminista, divagando sobre a ditadura da beleza e advogando, por sua vez, a beleza de todos os tipos de corpos – excepto, precisamente, os que são vítimas dessa ditadura. Volta e meia, parece que é a própria acção do romance que sustenta as considerações que faz, ou seja, que a acção existe para permitir o pensamento, que por sua vez existe para ganhar a simpatia e a concordância do leitor.

Em relação à acção, convém ainda dizer que os episódios compõem um cenário completo. Aos poucos, a personagem dá-se em pleno, tocando em pontos diferentes da vida, tanto etários quanto sociais. De capítulo em capítulo, o leitor mete-se na sua vida, vê-a através dos seus olhos, imiscui-se nos pequenos elementos do quotidiano e vê a cor de pele a ditar os comportamentos, as reacções, as cogitações, em tudo o que parece banal. O dia-a-dia de Budjurra é, assim, marcado pela sua condição de partida, porque é essa condição que é vista pelos demais, ditando-lhe, assim, o lugar, a segurança, o preconceito.

De resto, convém ainda acrescentar que a prosa de Telma Tvon é escorreita, sem gorduras. Não há um intento declarado de literariedade, e por isso mesmo é que a prosa soa a literária, fugindo a autora a uma certa tendência da produção coetânea portuguesa que passa por complicar o que é simples, por armar ao literário, por tentar meter eloquência a pontapé. Em vez disso, e até usando calão, a autora criou uma voz credível, que fica a ressoar no pós-leitura.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia