A defesa da Câmara de Lisboa que pede a impugnação da multa aplicada pela partilha de dados de ativistas russos considerou, esta sexta-feira, a possibilidade de não haver forma de a autarquia ser condenada, por inexistência de uma norma sancionatória que se aplique ao caso.
No Tribunal Administrativo de Lisboa, no Campus da Justiça, decorreram na manhã desta sexta-feira as alegações orais no julgamento do pedido da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para impugnação da multa determinada por partilhar dados pessoais de promotores de manifestações na cidade com entidades externas, num caso conhecido como “Russiagate”.
Prescindiu-se de prova testemunhal porque a defesa da CML nunca questionou a factualidade do caso — não negou que os dados tivessem sido partilhados e sempre confessou os factos — optou, sim, pela contestação da aplicabilidade legal no caso concreto. A autarquia, na altura liderada por Fernando Medina, fez chegar por e-mail os nomes, as moradas e os contactos telefónicos de três manifestantes anti-Putin à embaixada russa em Lisboa e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros daquele país. A autarquia reconhece o erro, já fez uma auditoria interna e, ao que apurou o Observador, está, desde aí, a aplicar novos procedimentos.
Câmara de Lisboa entrega dados de manifestantes anti-Putin aos Negócios Estrangeiros russos
Em janeiro de 2022, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) aplicou uma multa de 1,25 milhões de euros à autarquia por violações do Regulamento Geral de Proteção de Dados — num total de 225 contraordenações — ao “comunicar os dados pessoais dos promotores de manifestações a entidades terceiras” no âmbito de manifestações, comícios e desfiles. O Ministério Público vem confirmar esta decisão, pedindo igualmente que o valor, a título de multa, seja pago na totalidade, considerando que “a prova está feita” e que “todos os factos na decisão condenatória [se mostram] provados”, não havendo alterações.
O advogado da autarquia Tiago Félix da Costa explicou durante cerca de uma hora os motivos jurídicos por que a Câmara Municipal de Lisboa não pode ser condenada. Começou por explicar que, das 225 contraordenações, 14 já prescreveram — e até ao final do julgamento, “à medida que o tempo passa, mais poderão prescrever”.
De acordo com a argumentação da defesa, o legislador europeu “não estabeleceu coimas para entidades públicas” na aplicação das normas de proteção de dados, tendo deixado para os vários legisladores nacionais definir se devem aplicar coimas às autoridades públicas e em que medida. Ou seja, referiu o advogado, o legislador europeu estabeleceu coimas em geral que se aplicam a pessoas coletivas ou individuais, mas particulares, deixando que os legisladores dos vários países estabeleçam os limites mínimos e máximos da coima e os critérios da sua aplicação.
O legislador português, sublinhou Tiago Félix da Costa em tribunal, diz que as coimas se aplicam às autoridades públicas, mas é omisso ao não estabelecer como é que estas se aplicam. Depois das alegações da defesa, o Ministério Público não quis tomar a palavra. As partes concordaram com a juíza que conduz o processo no facto de poderem ser notificadas “oportunamente” da sentença e não ser necessária a marcação de uma data para a sua leitura. A defesa da autarquia considerou que a sentença deverá ser conhecida em breve.
Quando o “RússiaGate” estalou, Fernando Medina disse que soube do caso através da comunicação social e pediu “desculpas públicas” pela partilha dos dados, assumindo que foi “um erro lamentável que não podia ter acontecido”. Um mês depois de ser divulgação de dados às autoridades russas, a Câmara de Lisboa aprovou por maioria a exoneração do encarregado de proteção de dados do município.
Na apresentação de uma auditoria interna sobre o assunto, Medina reconheceu que a autarquia desrespeitou reiteradamente um despacho de 2013, assinado por António Costa, presidente do município à data, no qual dava “ordem de mudança de procedimento no sentido de só serem enviados dados à Polícia de Segurança Pública e ao Ministério da Administração Interna”.
Em fevereiro de 2023, os três ativistas visados anunciaram que iriam processar a autarquia, exigindo uma indemnização de 120 mil euros como “reparação dos danos morais sofridos”, uma vez que a multa pedida pela CNPD “não beneficiou nenhuma pessoa ou entidade vítima desta prática reiterada de partilha indevida de dados pessoais”. Segundo fonte ligada a este outro processo, o julgamento do pedido de indemnização pelos ativistas ainda não foi agendado e o seu resultado é “independente da decisão relativamente ao pagamento da multa pela câmara, mesmo que este prescreva no todo ou em parte”.