O ex-primeiro-ministro holandês Mark Rutte tomou esta terça-feira posse como novo secretário-geral da NATO. Num momento histórico particular, marcado pela guerra na Ucrânia, pela possibilidade de Donald Trump regressar à Casa Branca, pelo aumento das tensões com a China e pelo crescimento da extrema-direita na Europa, que desafios tem Rutte pela frente? O Observador olha para seis temas que estarão na agenda de Rutte como líder da aliança atlântica.
A ajuda à Ucrânia no terceiro inverno sob ataque russo
Mark Rutte toma posse como novo secretário-geral da NATO numa altura especialmente complexa para a Ucrânia, que se prepara para o terceiro inverno consecutivo sob ataque da Rússia, após três anos em que se tem multiplicado em apelos à NATO e aos parceiros ocidentais para que apoiem o esforço de guerra dos ucranianos contra Moscovo. Os avisos de Zelensky têm sido sérios: se a Rússia não for travada na Ucrânia, a seguir será o espaço da NATO a ser atacado.
Na sua primeira intervenção como líder da aliança atlântica, Rutte garantiu que uma das suas prioridades será “aproximar ainda mais a Ucrânia da NATO”, já que “não há segurança duradoura na Europa sem uma Ucrânia forte e independente” e que “o conflito na Ucrânia não está circunscrito às suas fronteiras”. Na cimeira de Washington, em julho deste ano, os países da NATO já se comprometeram com um “caminho irreversível” da Ucrânia rumo à entrada definitiva na aliança após a guerra. Contudo, no teatro de operações, continuam as queixas de que a ajuda que chega não é suficiente.
Como lembra o jornal The Guardian, a NATO mudou de forma significativa na última década, sob a liderança do norueguês Jens Stoltenberg. Se em 2014, na sequência da anexação da Crimeia pela Rússia, a presença militar da NATO na Europa de Leste era residual (já que a aliança estava mais focada no Afeganistão), agora a aliança tem dezenas de milhares de militares na região. O número de países que cumprem a meta de 2% do PIB em defesa também aumentou — e os membros da aliança têm-se comprometido com múltiplos pacotes de ajuda à Ucrânia, entre equipamento militar e formação.
NATO. Mark Rutte já tomou posse e quer mais investimento para garantir que aliança “continua forte”
Contudo, não chega. Zelensky tem insistido que a Ucrânia necessita de mais apoio militar, mais munições e mais apoio aéreo para vencer o conflito armado contra a Rússia. Ao The Guardian, o antigo embaixador da Eslováquia na NATO, Tomáš Valášek, considerou ser “ridículo” o avanço que a Rússia tem em relação ao Ocidente na produção militar. “A Ucrânia está, de forma completamente desnecessária, a ser forçada a ceder terreno no leste devido a problemas banais como a falta de munições, que deviam estar, eminentemente, dentro dos meios que fornecemos à Ucrânia.”
Os atrasos na entrega de material militar, os impedimentos em relação ao uso desse material em território russo e as divisões políticas em alguns países da NATO (especialmente nos Estados Unidos) em relação ao apoio à Ucrânia colocam em causa a estratégia de apoio à Ucrânia — e acarretam o risco de levar Kiev a capitular, caso o ritmo do apoio militar à Ucrânia não seja capaz de acompanhar a progressão territorial russa. A situação agrava-se especialmente no inverno, com a Rússia a atacar infraestruturas de energia e a usar o frio como arma contra os ucranianos.
[Já saiu o primeiro episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube]
Como escreve o Politico, o momento da entrada de Mark Rutte na liderança da NATO será visto por Volodymyr Zelensky como uma oportunidade para pedir mais ajuda para a Ucrânia. O anterior secretário-geral, Jens Stoltenberg, já sublinhou que a ajuda à Ucrânia nesta matéria deve passar por mais sistemas de defesa anti-aérea para proteger as infraestruturas de energia durante o inverno, mas há desafios para superar, como diz o mesmo jornal: na Europa, estes sistemas são escassos (e alguns países estão a esforçar-se por construir mais); nos Estados Unidos, o processo de envio da ajuda sofreu fortes atrasos no Congresso; e na Europa de Leste, os países mais próximos da Rússia terão resistência em abdicar dos sistemas que têm ao seu dispor para os enviar para a Ucrânia.
No longo prazo, este processo deverá culminar com a adesão formal da Ucrânia à NATO — algo que só poderá acontecer quando Kiev já não estiver em guerra. Até lá, Rutte terá de gerir o complexo processo de garantir o consenso dentro da aliança para continuar a apoiar militarmente a Ucrânia.
A meta dos 2% do PIB que continua por cumprir
Quando Jens Stoltenberg tomou posse, apenas três países da NATO cumpriam a meta orçamental da aliança que os obriga a gastar todos os anos pelo menos 2% do seu PIB em investimentos na área da defesa.
Dez anos depois, Mark Rutte assume a liderança de uma NATO bem diferente: atualmente, 23 dos 32 países da aliança atlântica já cumprem a meta orçamental. Pouco antes da tomada de posse de Rutte, aliás, o seu país-natal, os Países Baixos, alcançaram finalmente a meta dos 2%. Portugal, por seu turno, reafirmou este verão o seu compromisso em chegar a essa meta até ao final da década.
Contudo, a NATO ainda está longe de ter o financiamento de que precisa por parte de todos os seus estados-membros, com países como Itália e Espanha a manterem-se entre 1% e 1,5%. Devido à crónica incapacidade de uma boa parte dos países de cumprirem a sua meta orçamental, o financiamento da NATO tem sido assegurado em grande parte pelos Estados Unidos — o que no passado já levou Donald Trump a argumentar que não pode ser Washington a pagar a defesa dos restantes membros da NATO.
Mark Rutte terá agora o desafio de garantir que a meta de 2% do PIB de cada estado-membro investido em defesa é, finalmente, cumprida.
O possível regresso de Donald Trump à Casa Branca
É neste contexto que se pode ler outro dos grandes desafios para a liderança de Mark Rutte: a possibilidade de Donald Trump regressar à Casa Branca nas eleições norte-americanas do próximo mês.
Como Presidente dos EUA, Trump nunca escondeu o seu descontentamento com o facto de Washington assegurar uma grande parte do financiamento da NATO, pagando a proteção militar de vários países que, cronicamente, não cumpriam as suas metas orçamentais de defesa. Chegou mesmo ao ponto de equacionar retirar os EUA da NATO, como disse a imprensa norte-americana em 2019.
Agora, a possibilidade de Trump regressar à Casa Branca é real. Na campanha eleitoral, o antigo Presidente chegou mesmo a dizer que “encorajaria” Vladimir Putin a invadir os países da NATO que não pagassem o suficiente, ideias vistas como “problemáticas” dentro da aliança. Nos seus comícios de campanha, Trump galvanizado os seus apoiantes com a perspetiva de reduzir o apoio militar à Ucrânia. A hostilidade de Trump em relação à NATO é suficiente para deixar no ar uma questão: um regresso à Casa Branca pode mesmo ditar o fim da aliança?
“Mais do que nunca, os europeus estão sozinhos.” Trump na Casa Branca pode ditar o fim da NATO?
O Politico escreve que, caso Trump ganhe as eleições e cumpra a promessa de cortar o financiamento à Ucrânia, poderá estar em causa a credibilidade da NATO no apoio a Kiev, já que os EUA têm sido o principal financiador do governo de Zelensky na luta contra Moscovo. Além disso, poderá estar em causa a futura adesão da Ucrânia à NATO, um compromisso já assumido pelos estados-membros. Na tomada de posse como secretário-geral, Mark Rutte garantiu que a Ucrânia será uma prioridade da NATO: se Trump ganhar as eleições (e as sondagens mais recentes dão conta de uma corrida muito renhida), o holandês vai ter de tentar manter essa prioridade contra o maior financiador da aliança.
Esta terça-feira, aos jornalistas, Mark Rutte garantiu que não está “preocupado” com a possibilidade de Trump ganhar. “Conheço ambos os candidatos muito bem”, afirmou. “Trabalhei quatro anos com Donald Trump. Era ele quem nos estava a tentar convencer a gastar mais e conseguiu, porque neste momento estamos num nível de investimento muito maior do que estávamos quando ele tomou posse.” Quanto a Kamala Harris, Rutte garantiu que “tem um historial fantástico como vice-presidente” e é “uma líder altamente respeitada”, pelo que também conseguirá trabalhar bem com ela.
O crescimento da extrema-direita na Europa e os ressentimentos a Leste
Como secretário-geral da NATO numa Europa marcada pela guerra Rússia-Ucrânia, Mark Rutte terá de gerir também várias sensibilidades dentro do continente europeu.
Por um lado, terá de dar uma atenção especial aos países da Europa de Leste, que são aqueles que estão mais perto da guerra e que mais rapidamente podem sofrer as consequências de uma escalada que atinja o território da NATO. Por outro lado, como escreve o Politico, existe na região do Leste europeu um ressentimento por nunca ter havido um secretário-geral da NATO oriundo dos países de Leste, estando o cargo quase sempre confiado a figuras da Europa Central ou do Norte.
Apesar de vários países de Leste integrarem a NATO há quase três décadas, na sequência do colapso do comunismo, continuam a ser vistos como secundários na aliança. Uma forma de mitigar este sentimento poderá ser a escolha de figuras do Leste europeu para cargos na secretaria-geral da NATO, como o lugar de número dois.
Ao mesmo tempo, Mark Rutte assume funções numa Europa marcada pelo crescimento de partidos de extrema-direita cujos líderes não têm escondido alguma proximidade e admiração por Vladimir Putin — ao mesmo tempo que demonstram desconfiança e ceticismo em relação à NATO. O caso de Viktor Orbán na Hungria é o mais evidente numa Europa em que líderes como Marine Le Pen (França) ou Geert Wilders (Países Baixos) se têm aproximado cada vez mais de posições de poder.
Rutte terá a complexa tarefa de tentar manter o sentimento pró-NATO na Europa apesar do crescimento destes partidos.
Redobrada atenção ao Médio Oriente com nova delegação na Jordânia
O novo secretário-geral da NATO tomou posse poucas horas depois da mais recente escalada da guerra no Médio Oriente, com o início da incursão terrestre de Israel no sul do Líbano. O aumento da tensão no Médio Oriente deverá marcar a fase inicial do mandato de Mark Rutte à frente da NATO — apesar de, como notava recentemente a Al Jazeera, o tema da Faixa de Gaza ter estado praticamente ausente da mais recente cimeira da NATO, em Washington, em julho deste ano.
Apesar de o tema ter estado arredado da agenda, vários líderes de países da NATO usaram as suas intervenções para dizer que a aliança tem a obrigação de ajudar Gaza da mesma forma que ajuda a Ucrânia — ao mesmo tempo que os Estados Unidos continuavam a anunciar o apoio militar a Israel.
Este verão foi também anunciado que a NATO vai abrir na Jordânia a sua primeira delegação no Médio Oriente, o que indicará uma maior atenção e presença da aliança atlântica naquela região. A NATO é bastante impopular no Médio Oriente, sendo associada aos Estados Unidos e à sua intervenção pró-Israel — e a abertura de uma delegação na Jordânia foi vista por alguns no Médio Oriente como uma traição por parte daquele país.
À Deutsche Welle, vários especialistas sublinhavam recentemente que é improvável que a NATO se queira aproximar dos conflitos atualmente em curso no Médio Oriente, envolvendo Israel, o Hamas, o Hezbollah, os Houthis e o Irão — e que a abertura da delegação resulta de um planeamento anterior de longo prazo, e não de uma resposta à tensão atual. Ainda assim, a partir da Jordânia, a NATO ganha uma nova posição a partir da qual poderá estar mais próxima de um dos pontos de tensão mais prementes dos dias de hoje.
O aumento das tensões com a China
Mark Rutte, que foi primeiro-ministro holandês durante mais de uma década e desenvolveu uma reputação como construtor de consensos, terá também de colocar as suas capacidades diplomáticas ao serviço da NATO num mundo em que as tensões entre o Ocidente e potências como a Rússia ou a China se adensam.
Entre as suas três grandes prioridades para a NATO, a par do aumento do investimento por parte dos estados-membros e do apoio à Ucrânia, Mark Rutte colocou o reforço de parcerias entre a aliança e países de todo o mundo, já que a segurança “tem de ser um esforço de equipa”.
A nível global, a aproximação de países como a China ou a Coreia do Norte à Rússia no contexto do apoio aos seus esforços de guerra contra a Ucrânia levam o Ocidente a aumentar o seu nível de preocupação em relação à Ásia — uma preocupação intensificada ainda pela situação de Taiwan. Nesse sentido, o reforço de relações com países aliados no Oriente, como o Japão, será também uma das linhas de ação de Mark Rutte.