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Idade, rendimento mensal e grau de escolaridade são três dos fatores que mais influenciam os hábitos culturais no nosso país, segundo o “Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses 2020”, um estudo pioneiro agora divulgado, com financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian e execução pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa.
No que respeita à utilização da internet, os mais excluídos são os idosos e as pessoas com baixa escolaridade e menores recursos económicos — os mesmos que mais consomem televisão. No capítulo da leitura, 61% não abriram qualquer livro impresso durante um ano. Nas visitas a monumentos e museus, 50% das pessoas com pouca instrução revelaram falta de interesse.
Finalmente, as idas ao cinema surgem associadas a indivíduos com formação académica superior e a residentes na área de Lisboa e na Madeira, enquanto as festas religiosas e populares ou os festivais de gastronomia têm muito mais público do que o teatro ou a dança.
Os coordenadores do estudo foram o sociólogo José Machado Pais, o programador cultural Miguel Lobo Antunes e o politólogo Pedro Magalhães. A autoria é partilhada com Emanuel Cameira, Jorge Rodrigues da Silva, Rui Telmo Gomes, Teresa Duarte Martinho, Tiago Lapa e Vera Borges. A apresentação à imprensa decorreu na terça-feira, através de videoconferência.
Já nesta quarta-feira o trabalho será discutido num colóquio no edifício-sede da Gulbenkian, em Lisboa, com a presença de Joaquim Caetano (diretor do Museu Nacional de Arte Antiga), Américo Rodrigues (diretor-geral das Artes) e Marta Martins (diretora executiva da Artemrede), entre outros convidados. De acordo com informação no site do ICS, o estudo já está também em livro, com a chancela da Imprensa de Ciências Sociais.
“Os dados revelam significativas desigualdades sociais no acesso à cultura, em função do perfil sociográfico dos inquiridos”, lê-se. “Há práticas culturais minoritárias, com destaque para os espetáculos eruditos, que não estão ao alcance de todos. É possível que a oferta cultural nas plataformas digitais, em contexto pandémico, possa acentuar-se no futuro.” Acrescenta-se que “a crescente escolarização dos jovens, registada nas últimas décadas, poderá também ampliar os horizontes de participação cultural quando se equaciona o futuro”.
Na apresentação de terça-feira, Miguel Lobo Antunes — antigo programador e administrador da Culturgest, em Lisboa — sublinhou que este inquérito permite, pela primeira vez à escala nacional, conhecer a realidade cultural do ponto de vista dos públicos.
No prefácio do livro a que o estudo deu origem, o programador escreve que ao longo da vida profissional verificou que as decisões de política cultural e programação se baseavam em “convicções não alicerçadas num conhecimento rigoroso da realidade, antes numa opinião intuitiva”. Mas “agora, no domínio das práticas culturais, em resultado do inquérito, já não é assim. Temos um retrato bastante pormenorizado da nossa realidade e que permite o confronto com o de outras.”
O inquérito reúne informação “socialmente relevante e estatisticamente representativa da população residente em Portugal, regiões autónomas incluídas”, segundo os autores. A recolha aconteceu nos últimos meses de 2020 e assenta em três pilares: “receção cultural”, “prática artística” e “indicadores de interpretação sobre o que conduz, ou bloqueia, o consumo cultural”.
As conclusões abrangem várias áreas. A saber:
- “consumos culturais através da Internet, da televisão e da rádio”;
- “práticas de leitura em formato impresso e digital”;
- “frequência de bibliotecas, museus, monumentos históricos, sítios arqueológicos e galerias de arte”;
- “idas ao cinema, concertos e espetáculos ao vivo, incluindo festivais e festas locais”;
- e ainda “participação artística e capitais culturais”.
Internet
No que diz respeito à internet, 71% disseram utilizá-la com frequência, o que fica abaixo da média de 87% da União Europeia entre pessoas dos 16 aos 74 anos, diz o estudo, argumentado que a explicação tem “razões de natureza demográfica, educacional e económica”. Apenas um em cada quatro inquiridos com mais de 65 anos disseram utilizar a internet, contra cerca de 100% entre os 15 e os 34 anos.
Os homens (61%) utilizam-na mais do que as mulheres (55%). Eles passam uma média de 19 horas por semana ligados à rede para trabalho ou estudo e 12 horas em atividades de lazer. Elas, 18 e 9 horas, respetivamente.
“As razões invocadas para não usarem indicam défices de conhecimento (‘não tenho interesse, não vejo utilidade’) e défices económicos (‘ muito caro’)”, comentou Machado Pais.
Televisão e rádio
Quanto à “dieta mediática”, como lhe chamou o sociólogo durante a apresentação aos jornalistas, revela uma “relativa persistência da centralidade da televisão”: 90% ligam o televisor todos os dias, sobretudo pessoas com 65 anos ou mais e com rendimentos mais baixos, ao passo que 40% ouvem rádio principalmente em deslocações de automóvel.
“Os programas de televisão habitualmente mais vistos contemplam notícias, reportagens e informação (81%), filmes (57%), séries (43%), telenovelas (40%), documentários (36%) e programas desportivos (33%)”, lê-se. “O contexto pandémico levou a que 23% dos inquiridos passassem a ver mais televisão e a ouvir um pouco mais de rádio (5%).”
Livros
Ao nível da leitura e das bibliotecas, os investigadores concluíram que 61% dos inquiridos não tinham lido qualquer livro impresso nos 12 meses anteriores (por comparação, a percentagem é de 38% em Espanha, refere o estudo). Já a leitura de livros eletrónicos interessou a apenas 10%.
Curiosamente, “a larga maioria dos inquiridos portugueses (68%) lê livros por prazer, percentagem que se eleva entre os mais idosos e os de mais baixa instrução” diz o estudo. “Os que menos prazer retiram da leitura (43%) são os jovens dos 15 aos 24 anos, precisamente os que mais leem para estudar ou realizar trabalhos escolares (45%).”
Machado Pais fez notar que “a maioria dos indivíduos não beneficiou de estímulos à leitura em contexto familiar”, pois reportaram que nunca os pais ou outro familiar os tinham acompanhado a uma livraria ou biblioteca (mais de 70% dos casos).
Museus e monumentos
Sem surpresas, o Mosteiro dos Jerónimos (63%), a Torre de Belém (61%) e o Mosteiro da Batalha (59%) foram os museus e monumentos preferidos entre os respondentes, até porque a importância histórica atribuída é o motivo mais vezes invocado para a decisão de visitar espaços como aqueles.
O inquérito destaca que os portugueses valorizam a “sociabilidade associada” à visita a monumentos, pois apenas 4% o fazem sozinhos, enquanto 65% vão com familiares e 27% com namorados ou amigos. A falta de tempo (39%) ou de interesse (38%) e o preço elevado das entradas (21%) são os motivos invocados pelos que não costumam fazer tais visitas.
“É entre os inquiridos com mais baixas qualificações académicas (50%) ou de classe socioprofissional modesta – como acontece com 50% dos operários e 43% dos trabalhadores de serviços – que mais se alega a falta de interesse ou a preferência por outras atividades”, diz o estudo. Nos 12 meses anteriores ao início da pandemia, 31% dos inquiridos tinham visitado monumentos históricos, 28% tinham ido a museus, 13% a sítios arqueológicos e 11% a galerias de arte.
Cinema, espetáculos, festas
No capítulo dos espetáculos, os mais frequentados foram as festas religiosas e populares e os festivais de gastronomia (38%), seguidos de concertos (24%) e teatro (13%). O circo (7%) ficou à frente dos chamados espetáculos eruditos, como os de música clássica (6%), dança clássica (5%) e ópera (2%).
“O poder de atração dos festivais e festas locais é transversal a toda a população”, lê-se no inquérito. “A distinção cultural ocorre, sobretudo, no acesso a espetáculos eruditos, francamente preferidos por inquiridos com rendimentos elevados, grandes empresários, profissionais liberais, profissionais socioculturais e gestores. Em contrapartida, as festas locais atraem quem quem tem habilitações escolares mais reduzidas, tendo uma forte implantação na Região Autónoma dos Açores.”
Quanto ao cinema, foi a escolha de 41% nos 12 meses anteriores ao início da pandemia. Entre os jovens dos 15 aos 24 anos, a percentagem alcançou 82%. “A assiduidade nas idas ao cinema aparece também associada a inquiridos com formação superior, grandes empresários, profissionais liberais e residentes na área metropolitana de Lisboa e na Região Autónoma da Madeira”, escrevem.
“Onde é que se pode atuar?”
Isabel Mota, presidente da Fundação Gulbenkian, interveio na apresentação de terça-feira para deixar dois desafios aos autores do estudo: “Onde é que se pode atuar” e “que políticas públicas são adequadas”, perguntou, referindo-se às políticas a adotar pelas instituições culturais e por municípios e Estado central face às conclusões agora conhecidas.
Miguel Lobo Antunes ensaiou uma proposta. Falou em “medidas macro e medidas micro”. Por um lado, resumiu, é necessário “uma grande campanha de estímulo à leitura ou à ida ao cinema, e insistir com a televisão, pelo menos a televisão pública, para dar mais informação nos noticiários sobre o que se passa” na área cultural. Por outro, sugeriu a “descida dos preços” dos bilhetes de acesso a eventos artísticos e a criação de “mais atividades dirigidas a certos públicos” que revelam pouca apetência.
“Estamos muito agradecidos à Fundação por ter financiado este estudo, mas isto tem de ter continuidade, para vermos como é que as coisas mudam ao longo do tempo”, afirmou Miguel Lobo Antunes. “Do ponto de vista das políticas, da gestão e da programação não podemos olhar para isto e dizer ‘fica assim, não se pode fazer nada’. Quanto mais problemas há, melhor, para quem tem de atuar, porque tem mais para tentar perceber e resolver.”
A sublinhar a importância atribuída pela Gulbenkian e pelo ICS ao inquérito, um comunicado enviado aos jornalistas sublinhava tratar-se de um “grande estudo, que oferece um retrato inédito da diversidade das práticas culturais em Portugal”.
Ao intervir na terça-feira, Guilherme de Oliveira Martins disse que o inquérito “assume uma importância muito significativa” para a Gulbenkian porque “pela primeira vez em Portugal temos um amplo tratamento à escala nacional das práticas culturais”, sendo este o “ponto de partida” para se conhecer melhor a realidade portuguesa, comparando-a com a de outros países.
No prefácio do livro a que o estudo deu origem, o diretor do Programa Gulbenkian Cultura, Miguel Magalhães, escreve que o inquérito “tem como objetivo primeiro fornecer às instituições culturais uma grelha de leitura sobre os seus públicos, atuais e de futuro, e dar um contributo para a produção de políticas públicas inovadoras”.
Além disso, diz o mesmo responsável, o estudo vem “trazer novos dados para um debate que é transversal à nossa sociedade: como garantir o acesso de todos à cultura e às artes num momento em que os processos de democracia cultural — e de democratização cultural — chocam com uma realidade atomizada e por vezes ilegível para os nossos decisores políticos e gestores culturais”.
Segundo Miguel Magalhães, a Gulbenkian vai utilizar o estudo como apoio para “preparar um futuro que se adivinha estimulante e a renovar e introduzir novos mecanismos de fruição e de acesso à cultura”.
20% com menos de 500 euros
A população estudada abrangeu duas mil pessoas pessoas com idade superior a 15 anos, residentes no Continente e nas ilhas, 58% das quais eram mulheres. O trabalho de campo esteve a cargo da empresa de estudos de opinião Metris GfK e decorreu entre 12 de setembro e 28 de dezembro de 2020 em 168 localidades, através de entrevistas pessoais na residência dos inquiridos, conduzidas por 57 entrevistadores, indica a ficha técnica. “A amostra é probabilística, estratificada por região (NUTII) e dimensão das localidades”, lê-se.
Os entrevistadores fizeram até um máximo de 83 perguntas por pessoa, conforme o caminho determinado pela sequência de respostas, e pediram à população estudada que falasse dos hábitos culturais nos 12 meses anteriores ou — se os espaços culturais implicados estivessem sem atividade à data do inquérito, por força das medidas de contingência da pandemia — para que se referisse a hábitos entre março de 2019 e março de 2020, ou seja, antes do surgimento da covid-19. A taxa de resposta foi de 39%.
Pedro Magalhães disse aos jornalistas que uma taxa de resposta muito inferior a 100% é o que “sucede em todos os inquéritos” e que “do ponto de vista cooperativo, e tendo em conta a dimensão do inquérito, este suscitou interesse” por parte dos inquiridos.
Ainda no que concerne às características da população estudada, 54% disseram estar casados ou em união de facto, 22% solteiros, 15% viúvos e 9% divorciados ou separados. Quanto ao grau de ensino, cerca de 13% tinham curso superior e 48% afirmaram não ter chegado ao 9º ano. Apenas cerca de 15% dos inquiridos afirmaram que o rendimento do agregado familiar estava acima de 1.500 euros por mês e 20% responderam dispor de menos de 500 euros.