Ao contrário do que António Costa assegurou esta quinta-feira na Assembleia da República, a Polícia Judiciária (PJ) detetou movimentos alegadamente não declarados ao Fisco nas contas bancárias que tinham Carla Alves, a secretária de Estado da Agricultura que se demitiu esta quinta-feira.

São 228 mil euros dos 762 mil euros que o Ministério Público (MP) imputa a Américo Pereira, ex-presidente da Câmara de Vinhais entre 2005 e 2017, como não tendo sido declarados fiscalmente e que estão na origem do pedido do arresto preventivo decretado pelo Tribunal de Instrução Criminal do Porto para serem declarados perdidos a favor do Estado na eventualidade do ex-autarca socialista ser condenado.

Conheça os oito pontos essenciais deste caso que levou a um mandato de pouco mais do que 26 horas.

 1 Que caso é este que envolve Carla Alves e o seu marido Américo Pereira?

Trata-se de um caso iniciado em 2014 e que levou à acusação de Américo Pereira (ex-presidente da Câmara de Vinhais, eleito pelo PS, entre outubro de 2005 e 2017), Luís Morais (padre, reitor do Seminário Nossa Senhora da Encarnação em Vinhais) e Nuno Gomes (sócio da empresa TecVinhais – Consultores e Investimentos Lda e 1.º Secretário da Assembleia Municipal de Vinhais entre 2005 e 2008) por parte da 1.ª Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal Regional do Porto.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Curiosamente, o cargo na Assembleia Municipal desempenhado por Nuno Gomes ocorreu quando Armando Vara era o líder do órgão legislativo municipal.

Américo Pereira e Nuno Gomes foram acusados em regime de co-autoria do crime de corrupção ativa, prevaricação e participação económica em negócio, enquanto que Luís Morais foi acusado de prevaricação, participação económica em negócio e abuso de confiança qualificado.

O caso gira em torno de diversas negócios de compra e venda de vários prédios rústicos do Seminário da Nossa Senhora da Encarnação e das consequentes operações urbanísticas que permitiram a conversão de parte desses terrenos em prédios urbanizáveis, que permitiam a construção de habitação.

O procurador Bruno Pereira Castro entende que Américo Pereira terá favorecido Luís Morais, Nuno Gomes e a sua empresa TecVinhais em mais de 900 mil euros.

2 Como é que aparece a secretária de Estado da Agricultura no processo?

Carla Alves aparece neste caso por ser casada com Américo Pereira, união que foi consagrada a 1 de julho de 2006 em regime de comunhão de adquiridos. Ou seja, a agora ex-secretária de Estado da Agricultura não foi acusada (nem foi constituída arguida), mas detinha várias contas bancárias por onde terão passado fundos que estavam à disposição do seu marido.

Isto é, durante a investigação patrimonial realizada ao casal foram detetadas contas bancárias conjuntas entre Américo Pereira e Carla Alves que demonstravam, no entendimento do Ministério Público, que o ex-presidente da Câmara de Vinhais possuía um “património incongruente com os rendimentos lícitos” por si declarado.

O que significa isto? Que entrou mais dinheiro nas contas bancárias de Américo Pereira e Carla Alves do que aquele que foi declarado pelo casal junto da administração fiscal.

3 O que garantiu António Costa na Assembleia da República?

A uma pergunta durante o debate da moção de censura apresentada pela Iniciativa Liberal, o primeiro-ministro foi muito claro, citando uma conversa que alguém do Governo tinha tido com a então ainda secretária de Estado da Agricultura:

Perguntámos à secretária de Estado [Carla Alves] se constavam na conta conjunta os montantes referidos na notícia [publicada de manhã na edição do Correio da Manhã]. E ela disse que não, que na conta conjunta só constavam rendimentos do trabalho. Perguntámos se havia dúvidas sobre as declarações fiscais que fez. Ela disse que ‘não’, que tinha declarado todos os rendimentos”.

O que António Costa quis dizer é que Carla Alves assegurou que os montantes alegadamente não declarados pelo seu marido não tinham passado pelas suas contas, nomeadamente as conjuntas.

4 Isso é mesmo assim? Os fundos não declarados por Américo Pereira não passaram pelas contas conjuntas do casal ou da própria Carla Alves?

Não. Na parte da acusação em que o procurador Bruno Pereira Castro faz a “liquidação do património incongruente”, através do regime de “perda alargada”, é claro que no seu entender existem fundos que passaram por contas bancárias tituladas por “Carla Maria Gonçalves Alves”.

Sendo que os mesmos fundos correspondem a um património “incongruente com os rendimentos lícitos” auferidos por Américo Pereira.

E porquê por Américo Pereira? Porque o MP entende que os fundos que passaram pelas contas bancárias aqui em causa correspondem a bens na “disponibilidade do arguido” — e não de Carla Alves.

Seja como for, o despacho de acusação não esclarece se a conta é individual ou se Carla Alves é apenas a primeira titular, sendo o seu marido o segundo titular.

As contas bancárias são duas:

  • Conta na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Vinhais
  • Conta na Caixa Geral de Depósitos

Passaram mais de 228 mil euros por essas duas contas que, segundo o MP, não foram declarados nos anos fiscais entre 2014 e 2019. A saber:

  • 2014 — 89.062, 03 euros
  • 2015 — 113.635, 86 euros
  • 2016 — 3.633, 90 euros
  • 2017 — 10.816, 79 euros
  • 2018 — 4.343, 61 euros
  • 2019 — 7.498, 50 euros

Total: 228.990, 69 euros

Ou seja, este facto contradiz em absoluto o que foi transmitido por António Costa no Parlamento.

5 Como se chegou a esta investigação patrimonial a Américo Pereira e Carla Alves?

Como é habitual em processos do crime económico-financeiro, e também nos casos de tráfico de droga, o MP solicita uma investigação patrimonial ao Gabinete de Recuperação de Ativos da Polícia Judiciária (PJ) com o fim de perceber se há incongruências entre o património declarado (bens imóveis, móveis ou contas bancárias, por exemplo) e eventuais rendimentos não declarados.

A chamada “incongruência” é precisamente a diferença entre os rendimentos declarados e os não declarados. Detetada essas incongruências, o MP descreve as mesmas na parte final do despacho de acusação, solicita o arresto preventivos dos bens (imóveis, saldos bancários, etc.) que tenham alegada origem ilícita e solicita a perda alargada dos bens a favor do Estado com o trânsito em julgado de uma eventual pena condenatória.

6 Como surgiu essa lei?

A ironia de tudo neste caso que volta a causar danos políticos ao Governo, é que a lei teve o seu primeiro pontapé de saída com António Costa, enquanto ministro da Justiça de António Guterres. Se não fosse a Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro que criou o mecanismo de perda alargada de bens, provavelmente Carla Alves ainda seria secretária de Estado da Agricultura.

Apesar de a lei ter sido criada em 2002, só mais tarde é que foram criados outros mecanismos legais e apenas em 2008 é que a Procuradoria-Geral da República criou um manual de boas práticas, num projeto coordenado pelo procurador-geral adjunto Euclides Dâmaso que foi apelidado de “Projeto Fénix”, para que os magistrados do MP aplicassem este regime de perda alargada de bens e adaptassem a Decisão n.º2007/845/JAI do Conselho de 6 de dezembro.

Foram assim criados o Gabinete de Recuperação de Ativos e o Gabinete de Administração de Bens — o primeiro funciona na órbita da PJ, enquanto que o segundo foi criado para ser gerido pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça.

7 Não tendo nada a ver com o caso, Carla Alves podia deduzir oposição ao arresto dos bens?

Sim, pode. Ao que o Observador apurou, terá sido precisamente isso que a agora ex-secretária de Estado da Agricultura terá feito, solicitando, como é seu direito, a separação do seus bens do arresto preventivo decretado.

Como o arresto preventivo foi decretado sem audiência prévia dos visados (algo normal, visto que a notificação pode levar à dissipação do património que se pretende arrestar), Carla Alves só podia ter deduzido oposição após ter sido notificada do arresto.

O Observador questionou Carla Alves por escrito sobre a data do seu requerimento de oposição ao arresto mas não obteve resposta.

8 A ex-secretária de Estado da Agricultura só soube da acusação quando a comunicação social noticiou o arresto das suas contas?

Não é plausível que assim seja, por duas razões. Em primeiro lugar, o seu marido Américo Pereira foi notificado da acusação em março de 2022, sendo certo que o despacho de encerramento de inquérito tem a data de 14 de fevereiro de 2022.

A própria Procuradoria-Geral Distrital do Porto publicitou a mesma, tendo vários órgãos de comunicação social noticiado na altura tal acusação.

Por outro lado, o arresto preventivo foi decretado antes da acusação ter sido deduzida, sendo que foram arrestados os saldos de várias contas conjuntas do casal, incluindo as duas acima referidas em que Carla Alves aparece como titular. O que significa que Carla Alves não pode mexer nos saldos das contas que foram arrestados desde aquela data.

Acresce, finalmente, que também o arguido Nuno Santos e a sua empresa TecVinhais viram ser decretados arrestos preventivos até ao valor, respetivamente, de cerca de 943 mil euros e 1,8 milhões de euros.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o caso de Carla Alves.

Carla Alves, o novo caso que abala o Governo