Índice
Índice
Há um pecado original no edifício do Museu Nacional que no passado domingo foi devorado pelas chamas no Rio de Janeiro. O palácio passou a ser a residência da família real portuguesa pouco depois da sua chegada ao Brasil, em 1808. A forma como a quinta da Boa Vista foi oferecida ao príncipe regente, D. João VI, por um traficante de escravos nascido no Porto, e as benesses que o monarca lhe deu em troca levaram a que o caso fosse invocado, dois séculos mais tarde, por um dos implicados na operação Lava Jato, como sendo o início da corrupção contemporânea no Brasil.
Esse momento, recriado no 6.º episódio da série da Netflix “Mecanismo”, foi relatado à Folha de São Paulo por Carlos Fernando, procurador do caso Lava Jato: “Na primeira vez que nós conversámos com o Paulo Roberto Costa [ex-diretor da Petrobras] para negociar a delação premiada, ele falou: ‘Isso [corrupção] começou em 1808 com a chegada de D. João VI ao Brasil’. A Quinta da Boa Vista era de um mercador de escravos, que a ofereceu a D. João para morar. A partir daí o privado e o público misturaram-se para sempre no Brasil. Essas foram as primeiras frases do Paulo Roberto Costa”.
“O mais soberbo palácio que há nas Américas, com mais de 300 janelas”
Não se sabe quem, há 210 anos, escreveu esta carta a partir do Brasil. É o relato mais detalhado da forma como Elias António Lopes ofereceu uma quinta a D. João VI em 1808, quando a família real portuguesa desembarcou no Brasil para fugir das invasões napoleónicas. O autor, que permanece anónimo, descreveu assim o acontecimento dirigindo-se a um irmão que tinha em Portugal:
“A primeira coisa notável que me lembra dizer-te é a generosa oferta que o Negociante e Cidadão desta Cidade, Elias António Lopes, fez da sua Chácara (Quinta) a S.A.R [Sua Alteza Real], e que o mesmo SENHOR se dignou aceitar. A dita Chácara é uma das melhores coisas que há para o sul. Está situada na bela planície de S. Cristóvão, distante desta Cidade coisa de meia légua à beira mar. No meio dela se eleva uma colina de espaçosa grandeza, sobre a qual está edificado o mais soberbo Palácio que há nas Américas; pois só a varanda que tem em roda, e são de arcaria, tem mais de 300 janelas todas envidraçadas. Quando S.A.R entrou ali pela primeira vez, disse a Elias António, que o acompanhava: ‘Eis aqui uma varanda Real, Eu não tinha em Portugal uma coisa assim’. ‘Hoje’, respondeu Elias, ‘hoje é que Vossa Alteza a faz Real com a sua presença.’” [grafia adaptada ao presente para facilitar a leitura]
De um lado, o mar; do outro, a floresta da Tijuca e o Corcovado. Não espanta por isso que tenha sido baptizada como Quinta da Boa Vista. Faltaria resolver a dificuldade do trajecto até à cidade, mas D. João VI mandou arranjar e iluminar todo o caminho com lâmpadas de azeite dos dois lados. A carta dirigida a um irmão em Portugal, publicada na obra “Relação das festas que se fizeram no Rio de Janeiro, quando o Príncipe Regente N.S, e toda a Sua Real Família chegaram pela primeira vez aquella capital” (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro), dá detalhes sobre a festa de inauguração da quinta e a forma como a família real começou a habitar o espaço, dando prioridade aos jantares.
“No dia seguinte às 9 da manhã foram levantadas as Armas Reais no próprio Palácio, e ao mesmo tempo subiu ao ar uma girândola de foguetes, que anunciou a todos esta inauguração. Desde aquele dia começou a chamar-se a dita Chácara Quinta de S. Cristovão. S. A. R. tem ido lá jantar muitas vezes, e até já conseguiu de sua Augusta Mãe que fizesse o mesmo por três vezes, e toda a Real Família por outras muitas. Umas vezes vai por terra, e outras por mar. Tem lá criados da Casa, e tudo o mais que lhe é necessário. S.A.R mandou fazer na mesma um belo jardim, que dois regatos de cristalinas águas podem regar abundantemente.”
Por fim, o documento explica ainda o que Elias recebeu em troca do príncipe regente: cargos, honrarias e futuras fontes de rendimento. E isto foi só o início.
“A Grandeza desta Quinta poderá ser de uma légua em circuito, tudo planície, à excepção da colina em que está edificado o Palácio. S. A. R., querendo gratificar a Elias António Lopes generosa oferta, que os mesmos Fidalgos avaliam em 4000 cruzados, houve por bem nomeá-lo Comendador da Ordem de Cristo, Fidalgo da Casa Real, e Administrador da mesma Quinta.”
Agora o mesmo episódio narrado mais de dois séculos depois, na série Mecanismo, que tem feito sucesso na Netflix. Pode espreitar o trailer aqui:
Há um momento em que o procurador do escândalo de corrupção Lava-Jato pergunta ao diretor de abastecimentos da Petrobrás quando é que tudo começou. João Paulo Rangel, personagem inspirado em Paulo Roberto Costa, responde assim:
“Tudo começou em 1808 com a vinda de D. João VI para o Brasil… naquela época quem mandava eram os comerciantes, os traficantes de escravos, eles eram os donos do dinheiro… e um deles, o mais rico, chamava-se Elias António Lopes. Percebeu que a cidade não tinha muito a oferecer e cedeu a Quinta da Boa Vista para D. João VI morar com a sua família. Aí começou. Ele (Elias Antonio Lopes) recebeu a Ordem Militar de Cristo e foi nomeado escrivão e tabelião de Paraty e Senhor de Tiradentes, Cavaleiro da Casa Real, Alcaide-Mor e também… provedor de seguros da corte e arrecadava impostos em várias localidades… e aí começa essa longa tradição que vem dar aqui…”
Museu Nacional: de casa da família real a museu visitado por Einstein
Um escravo de Elias valia 118 sacos de farinha
Elias António Lopes chegou a ser o terceiro maior traficante de escravos na praça mercantil do Rio de Janeiro, segundo Manolo Florentino, historiador brasileiro, autor de Em costas negras e de várias outras investigações sobre o comércio de escravos. Elias tinha quatro embarcações: Europa, Paquete Infante, São João Americano e Deligente. Os seus navios negreiros iam a Goa e Malabar buscar tecidos, para usar como moeda de troca em Moçambique ou Angola, onde comprava os escravos que transportava até ao Brasil.
Eram viagens feitas em condições duríssimas. Uma parte significativa dos escravos — amontoados e sem espaço para se movimentarem — não sobrevivia à travessia. Por exemplo, numa expedição em 1812 para recolher 469 escravos em Moçambique, via Cabo da Boa Esperança, apenas 350 chegaram vivos ao Rio de Janeiro. Ou seja, em cada quatro escravos, um morreu.
À chegada ao porto do Rio de Janeiro, os traficantes pagavam na Alfândega os direitos sobre os escravos, que eram depois expostos na Rua do Valongo, perante quem estava interessado em os comprar. Eram relativamente baratos, mesmo para famílias de classe média. James Tuckey, oficial da Marinha britânica, relatou que, em 1803, um negro adulto era vendido por 40 libras no Rio de Janeiro. Uma mulher era mais barata: 32 libras. Um rapaz custaria 20 libras. Já um negro que tivesse sobrevivido à varíola seria mais valioso, porque em princípio viveria mais anos.
Eram avultados os investimentos na montagem de uma expedição de um navio negreiro, como enumerou Manolo Florentino: aquisição ou aluguer das naus; formação do stock para assegurar a permuta e sustentar os intermediários; manutenção dos escravos durante a viagem; e seguro dos cativos e dos equipamentos usados na travessia. Mas o negócio proporcionava também margens elevadíssimas. Por exemplo, em 1814 Elias António Lopes vendeu 486 escravos que trouxe de Cabinda e facturou 45 contos de réis, um lucro assinalável para a época.
Entre 1790 e 1830, mais de 1.500 navios negreiros atracaram no Rio de Janeiro, com cerca de 700 mil escravos, muito usados nos trabalhos agrícolas em plantações longe da cidade.
Em 1808, quando a família real portuguesa chegou ao Brasil, dos 70 mil residentes no Rio de Janeiro metade eram escravos. O próprio Elias chegou a ter cem escravos a trabalhar nas suas propriedades e nas suas embarcações. Valiam ao todo 8 contos de reis. Por exemplo, os sete escravos marinheiros do Paquete Infante foram avaliados em 759$200, o equivalente a 832 sacos de farinhas ou 169 barris de carne seca, segundo o artigo Escravos, senhores e vida marítima no Atlântico: Portugal, África e América portuguesa, c.1760 – c.1825, de Jaime Rodrigues, professor de História da Universidade Federal de São Paulo. Fazendo uma conta simples, significa que cada escravo valia o mesmo que 118 sacos de farinha ou 24 barris de carne.
Diretor do Museu Nacional do Rio: “O Brasil não cuida da sua história”
Armas, religião, fortuna: a ascensão social de Elias no Rio
Elias terá começado a traficar escravos em 1795, mas chegou ao Brasil muito antes disso, em princípio em 1771, com 15 anos — é pelo menos essa a data de uma carta que dali enviou ao seu pai, segundo a dissertação sobre o negociante portuense da autoria de Nilza Licia Braga, investigadora da Universidade Federal Fluminense. Elias António Lopes nasceu na freguesia da Vitória, no Porto, em 1756, filho ilegítimo do capitão António Lopes Guimarães, que seria casado com outra mulher, e de Maria Antónia. Um documento que o jovem Elias terá levado para o Brasil foi um caderno comprido escriturado no Porto em 1739, o que indicia que terá recebido conhecimentos de escrituração mercantil através dos negócios do pai (que teria contactos no Brasil, a quem terá pedido que acolhessem e orientassem o filho nos primeiros tempos).
Em 1790 (com 34 anos) já surge referenciado como comerciante estabelecido na Rua Direita (atual Rua Primeiro de Março), a mais importante do Rio de Janeiro naquele fim do séc. XVIII. Nesse ano, recebeu do vice-rei e capitão general de mar e terra do Estado do Brasil, D. José de Castro, Conde de Resende, a patente militar de capitão de Rebelim do Moinho de Vento da Fortaleza da Ilha das Cobras. Em tempo de guerra, seria obrigado a residir nessa fortaleza, uma das 12 que protegiam a barra do Rio de Janeiro no fim do séc. XVIII.
Além da distinção honorífica, o capitão estava isento de pagar certos encargos e terá tido outras vantagens materiais, relacionadas com a proximidade entre a sua fortaleza e o porto do Rio de Janeiro, onde fazia negócios. Por exemplo, armazenava pólvora num armazém no Forte da Ilha de Santa Bárbara, para a comercializar para as fortalezas localizadas na Baía de Guanabara, principalmente na Ilha das Cobras. Tinha farda, armas (dois espadins) e jóias, que deveria usar quando estava em funções (conservava, aliás, todos esses adereços à data da sua morte).
Também atingiu outro estatuto social através da religião. Quatro anos depois de ter sido apontado como capitão de uma fortaleza, entrou para a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo (carmelitas). No livro 6.° de Entrada de irmãos e irmãs, regista-se que “tomou o hábito e professou” em 29 de Março de 1794, tendo pago 19$200 réis. Tinha em casa um oratório e várias imagens de santos, de anjos e de Cristo. Elias, que não se casou nem teve filhos, viria a ser sub Prior desta ordem em 1813.
“São estratégias típicas de um indivíduo querendo se inserir numa sociedade de Antigo Regime, de forte hierarquia social e de tradição senhorial e militar”, salientou Nilza Licia Braga, autora da dissertação intitulada “Entre Negócios e vassalagem na corte joanina: a trajetória do homem de negócio, comendador da Ordem de Cristo e deputado da Real Junta de Comércio Elias António Lopes“.
Em 1799, o vice-rei Conde de Resende já incluiu o nome de Elias António Lopes numa lista dos 36 homens mais ricos do Rio de Janeiro. Sete dessas fortunas, incluindo a de Elias, estiveram ligadas ao tráfico de escravos.
Embora já tivesse papel de relevo na sociedade brasileira, o grande salto do negociante portuense deu-se depois da chegada da família real ao Rio de Janeiro. O Paço Real, no centro da cidade, oferecia poucas condições de conforto e deixava a família de D. João VI muito exposta ao povo, pelo que foi facilmente aliciada com o palácio da Boa Vista. Em contrapartida, como forma de gratidão, D. João encheu Elias António Lopes de honrarias, cargos e fortuna. Começou logo por o fazer comendador da Ordem de Cristo, referindo expressamente a oferta da quinta como razão para a condecoração, mas frisando que essa “repartição” dos lucros de Elias com o Estado era feita com “notório desinteresse”:
“Atendendo ao notório desinteresse, e demonstração de fiel vassalagem, que vem de tributar à Minha Real Pessoa Elias António Lopes, Negociante da Praça desta Capital, no oferecimento que Me fez de um prédio situado em São Cristovão de distinto e reconhecido valor em beneficio da Minha Real Coroa, E desejando fazer-lhe honra e Mercê como ele merece por esta acção voluntária de repartir com o Estado os lucros adquiridos pelo seu comércio: Hei por bem fazer-lhe Mercê de uma Comenda da Ordem de Cristo das de África, que vagar podendo usar logo da Insígnia de Comendador, como também da Propriedade do Ofício de Tabelião Escrivão da Comarca e Almotaceira da Villa de Parati, logo que finde a arrematação, e de Administrador do referido Prédio.”
Uma vez que a família era do Porto, Elias foi até dispensado por D. João de passar as provas da Mesa de Consciência e Ordens, que deveria ouvir várias testemunhas para determinar se o candidato era digno de pertencer à Ordem de Cristo.
A sequência de nomeações é impressionante nos anos que se seguem: depois da Ordem de Cristo, da administração da Quinta da Boa Vista, do cargo de tabelião em Parati, D. João VI atribuiu-lhe um dos dez lugares de deputado no tribunal da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fabricas e Navegação (“atendendo ao merecimento e préstimo”, lê-se no despacho régio). Em 1810 foi feito fidalgo cavaleiro da Casa Real e passou a Alcaide-Mor e Senhorio da Vila de São José del-Rei, uma área riquíssima com grande potencial madeireiro e agrícola na comarca do Rio de Janeiro. Foi aliás o próprio Elias que pediu a D. João esta nomeação. O príncipe regente acedeu e justificou com “o zelo e honra” com que o negociante desempenhava as suas “obrigações de um útil e bom vassalo” e “muito especialmente pelas generosas demonstrações de afecto” que lhe dedicava.
Contrariando um parecer negativo da Junta do Comércio, o príncipe regente nomeou ainda Elias para corretor e provedor-mor da Casa de Seguros da praça da Corte — o ramo segurador era fundamental para quem tinha actividades mercantis e investia largas somas nas expedições dos navios negreiros que iam buscar escravos africanos. Foi ainda nomeado conselheiro de Sua Majestade. E moedeiro, ou membro da Casa da Moeda, zelando por isso pela qualidade do dinheiro em circulação e beneficiando de mais privilégios especiais.
Mas talvez a função mais rentável de todas tenha surgido a partir de 1810, quando se tornou responsável pela recolha de impostos em várias localidades, em conjunto com outros negociantes, que em troca recebiam uma percentagem das receitas que entregavam à Coroa. Elias recebia por exemplo um terço dos dízimos cobrados na Ilha de Santa Catarina e arredores; metade do Contrato da Dízima da Chancelaria da corte; 2/9 do Subsídio literário e do real da carne da corte; 2/9 do Contrato do Equivalente do Tabaco e Subsídio Pequeno; um quinto do contrato de cobrança do dízimo da capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul; mais um quinto dos dízimos de São João Marcos e freguesias anexas; e mais 1/25 avos dos dízimos de São Gonçalo.
Quando morreu e foi feito o inventário da sua fortuna, foram encontrados registos de vários empréstimos que fez à Coroa, com indicações suas bastante claras e compreensíveis face a todas as benesses que recebeu: “Não cobrar”. Os 400 mil reis que a fazenda real devia a Elias estavam já no item de contas perdidas.
A corrupção contemporânea no Brasil começou com a doação do Palácio a D. João VI?
Paulo Roberto Costa, o ex-diretor da Petrobrás que praticamente apontou Elias António Lopes como pai da corrupção no Brasil, não precisa de ser um grande conhecedor de História. Basta-lhe aliás ter sido leitor de Laurentino Gomes, autor dos best-sellers 1808, 1822 e 1889. O jornalista brasileiro já considerou por várias vezes a corrupção no Brasil como “uma herança portuguesa”, a partir do momento em que os ricos da colónia financiaram o rei, em 1808, em troca de benefícios e de títulos de nobreza. “Durante os 13 anos em que a corte permaneceu no Brasil houve mais títulos de nobreza do que em todos os 500 ou 600 anos anteriores da História de Portugal. Houve uma troca de interesses e muita corrupção”, disse o autor ao DN em 2008.
Mais recentemente, em 2015, já com os escândalos de corrupção a abalarem a cúpula da classe política brasileira, Laurentino Gomes deu uma conferência no Rio de Janeiro para tentar responder às perguntas: “O Brasil é um país corrupto por natureza? Dá para mudar isso?” Voltou a 1808, para dizer que o regime de toma-lá-dá-cá se agravou com a chegada da corte ao Brasil, começando logo com o presente que Elias deu a D. João VI, “a melhor e maior casa da cidade, onde se situa hoje o Palácio da Quinta da Boa Vista, no bairro de São Cristóvão. Nos anos seguintes, esse traficante foi um dos homens que mais enriqueceu e mais ganhou títulos de nobreza no Brasil. Fez, portanto, um ótimo negócio”.
Já Nilza Licia Braga, a investigadora que estudou mais aprofundadamente Elias António Lopes, não o vê como pioneiro da corrupção. Invoca por um lado muitos exemplos de condutas ilícitas para benefício particular, ainda no tempo colonial, até mesmo de grandes autoridades portuguesas. Depois faz questão de o inserir na conjuntura histórica a que pertence. “Elias António Lopes reflete o seu próprio tempo, quando ele e muitos negociantes almejavam nobilitação por meio de mercês concedidas pela monarquia portuguesa. A mobilidade ascendente de Elias exemplifica que a permanência dos valores aristocráticos de Antigo Regime português se fazia presente no início do século XIX, quando os homens de negócio prestavam favores ao regente e em troca eram recompensados com mercês.”
Depois de ter consultado vasta documentação referente aos negócios do traficante de escravos, a investigadora ficou convencida que “Elias não se enxergava como um corruptor”, como disse ao Observador. “A prática de ser condecorado com mercês, a partir de contribuições financeiras à monarquia, era um hábito frequente entre os negociantes. Ele via essa prática de ‘favores’ à Coroa portuguesa como algo natural. Até mesmo o tráfico negreiro, que julgamos como um negócio desumano e inconcebível nos dias de hoje, era visto como um negócio lucrativo e permissivo na economia portuguesa, que era praticado em seus domínios ultramarinos na época colonial”.
A luta pela herança entre a coroa e os sobrinhos de Elias
Depois de ter oferecido a quinta a D. João VI, Elias António Lopes viveu apenas mais sete anos. Morreu repentinamente, a 7 de Outubro de 1815, e foi sepultado na casa de Profundis, na catacumba n.° 52 da capela da ordem carmelita de Nossa Senhora do Monte do Carmo, vestido com um dos seis hábitos da Ordem de Cristo que possuía.
Tomás Pereira de Castro Viana, um caixeiro de Elias, manteve os negócios do ex-patrão, incluindo a conclusão de uma expedição para ir buscar escravos a Cabinda, e ficou encarregue de fazer o inventário de todo o seu património. Duas semanas após a morte, em casa do falecido, Tomás jurou com a mão direita colocada nos evangelhos que não iria ocultar qualquer bem.
Um mês e meio após a morte de Elias, D. João VI comprou aos administradores da herança duas propriedades coladas à Quinta da Boa Vista e também 95 escravos.
O inventário demorou quase dois anos, ficando apenas pronto em 22 de setembro de 1817: quatro navios, 13 imóveis, jóias, carruagens, acções do Banco do Brasil e rendas que lhe deviam. Valor total: 236 contos. Descontadas as dívidas que Elias deixou por saldar, sobraram 66 contos — e uma luta por essa avultada herança.
O facto de a morte ser inesperada justificará que Elias não tenha preparado um testamento. Como não se casou nem teve filhos, iniciou-se essa disputa entre dois sobrinhos (Joaquim António Lopes e Elias António Lopes, homónimo do tio), que reclamaram a herança, e o Desembargador Procurador da Coroa e Fazenda, que defendia que o património do traficante de escravos devia reverter para a coroa, porque os irmãos eram (tal como Elias) filhos ilegítimos. O pai de Elias, o capitão António Lopes Guimarães, era casado quando morreu em 1779, enquanto a mãe era solteira, pelo que Elias e os irmãos terão sido fruto de uma relação adúltera ou, de acordo com o jargão da época, de “danado coito”. Segundo o Procurador da Coroa e Fazenda, os irmãos e sobrinhos de Lopes não conseguiram provar legalmente que eram seus herdeiros.
O caso arrastou-se durante mais de quatro anos e só teve um desfecho em 1820, após uma intervenção do próprio D. João VI, que foi contra o procurador que defendia os interesses da coroa e deu razão aos herdeiros. Apesar de serem ilegítimos, os sobrinhos herdaram a fortuna deixada por Elias, graças à intervenção do príncipe regente a quem o negociante tinha doado a melhor quinta que havia no Rio de Janeiro.