Os semblantes ficaram pesados e o pátio da sede PSD/CDS começou a gelar, apesar do calor tropical: Miguel Albuquerque ia vencer as regionais, mas sem maioria. A confirmação (da eleição de apenas 23 deputados, a um da maioria) caiu quando Luís Montenegro se preparava para falar na base da coligação ‘Somos Madeira’. O presidente do PSD só apareceria quase uma hora depois. E há uma razão para isso: Montenegro e Albuquerque combinaram, nesse tempo, excluir o Chega de qualquer solução governativa e orientar o discurso para a continuidade do atual presidente do governo regional. Nada de demissões.
Ainda antes de Miguel Albuquerque chegar à sala, no Instituto do Vinho, no Funchal, o Observador sabe que houve telefonemas entre Luís Montenegro e Rui Rocha e também entre Miguel Albuquerque e Nuno Morna, por quem a estrutura do PSD não morre de amores. “Houve contactos a vários níveis”, confirmaram fontes de ambos os partidos. Para não ficar excessivamente dependente da IL, o PSD encetou também contactos com o PAN, que, pelo seu lado, abriu as portas à “negociação”. Pode, assim, estar a caminho uma “gerinponcha” na Madeira, que pode ter as seguintes configurações: PSD/CDS+IL; PSD/CDS+PAN; ou PSD/CDS+IL+PAN. Há aqui um detalhe: o CDS terá informado o PSD que, em princípio, vetará um acordo com a IL, o que dá força à solução PAN.
O primeiro a delinear a estratégia foi Luís Montenegro, que parecia querer vender a ideia de que perder a maioria era quase melhor do que ter cumprido o objetivo eleitoral de a manter. O presidente do PSD começou por dizer que não se metia na autonomia, mas deu uma garantia ainda antes de Albuquerque: “Não haverá nenhuma solução governativa na Madeira que tenha a contribuição do Chega.” E foi mais taxativo do que alguma vez tinha sido a nível nacional: “Não vamos governar nem a Madeira, nem o país, com o apoio do Chega”.
Segundo passo: enaltecer a vitória de Albuquerque com o resultado de Costa nas legislativas. Afinal, explicou Montenegro, o PSD e o CDS tinham obtido 43,1% dos votos, mais do que os 41,37% que deram a maioria absoluta a António Costa. Ou seja: na leitura de Montenegro foi uma “vitória em toda a linha” e não haver maioria é um capricho do método d’Hondt. Nacionalizando e puxando a si a vitória, o líder do PSD dizia mesmo uma espécie de resultado ao intervalo: “”Montenegro-1; Costa-0“.
A vez de Albuquerque: um mortal que dá vida
Minutos depois, era a vez Miguel Albuquerque, dar um pequeno mortal à retaguarda, tentando convencer toda a gente que o que tinha dito não era que se demitia caso não atingisse a maioria, mas apenas que se demitia caso não conseguisse negociar uma maioria para governar após as eleições. Foi um mortal que, no entanto, o manteve vivo.
Na entrevista ao Observador e em dezenas de outras intervenções Miguel Albuquerque tinha dito: “Ou tenho maioria ou não tenho condições para governar.” Na quarta-feira, o candidato do PSD foi questionado diretamente pelo Observador sobre se não faria acordo com a Iniciativa Liberal, ao que Albuquerque respondeu: “Tenho muitas dificuldades num quadro desses porque não posso fazer Governo neste momento, a negociar orçamento a orçamento, proposta a proposta. É um inferno. Depois, não conseguimos concretizar aquilo que propomos aos eleitores. Portanto, é um pouco difícil.”
Como parte da estratégia, Miguel Albuquerque enalteceu ainda a sua vitória, lembrando que teve mais percentagem que Costa nas legislativas e também que venceu “em todos os 11 concelhos da Madeira” e em “52 das 54 freguesias” do arquipélago. Depois garantiu que “amanhã ou depois de amanhã” irá apresentar uma solução de governação, mas que “está excluída em qualquer circunstância o Chega”. Na sala muitos militantes e dirigentes regionais do PSD falavam mais na hipótese PAN do que na Iniciativa Liberal, embora o Observador saiba que os contactos vão neste momento mais avançados com os liberais.
IL um parceiro mais natural, mas PAN também disponível
Se Miguel Albuquerque não quis apresentar logo o nome dos partidos com quem estava a negociar, estes acabaram por se denunciar. Rui Rocha, líder da Iniciativa Liberal, disse que o partido tem “total disponibilidade” para se sentar à mesa com a coligação PSD/CDS e que “não será pela IL que Madeira não terá uma solução de estabilidade governativa para os próximos tempos”. O Observador confirmou depois que, quando Rocha falou, as negociações entre sociais-democratas e liberais já tinham sido iniciadas.
Luís Montenegro deixou pistas de que este acordo com a IL pode ser um balão de ensaio para o Governo da República. “Quem me dera ter este resultado nas legislativas”, confessou o presidente do PSD. O líder social-democrata disse que se ia “inspirar” na vitória da Madeira na sexta-feira, quando a maioria absoluta era provável. Agora, Montenegro parece testar as relações com a IL ao afastar de vez o Chega e dizer que até não se importava de depender da IL para governar a nível nacional. O almoço do Campo Grande, que juntou os líderes de PSD e IL em maio num restaurante no Campo Grande pode ter agora o seu primeiro teste de stress.
Mas Albuquerque pode não querer ficar apenas nas mãos dos liberais (lá vem, de novo a desconfiança do PSD com o ex-CDS, Nuno Morna). Mais do que isso: o próprio CDS está a colocar entraves a este cenário. Apesar de a IL ser um parceiro mais natural, o PAN está à espreita para influenciar a governação e ser a (ou uma das) soluções. A líder do PAN, Inês Sousa Real, disse em declarações ao Observador que está “disponível para ouvir” o PSD sobre soluções que deem “estabilidade” à região. Inês Sousa Real considera que uma maioria absoluta “não é saudável” e o PAN está disponível para aumentar a pluralidade “no contexto de reuniões entre partidos que são normais em democracia após resultados eleitorais”.
Também a deputada eleita do PAN, Mónica Freitas, disse ao Observador que para o partido “é importante não haver maioria absoluta”, mas que o PAN está disponível para o “normal diálogo e negociação” a partir de amanhã. Revelou ainda que Miguel Albuquerque (ainda) não lhe tinha ligado.
Costa perdeu a obsessão, mas acabou de camarote
O PS desceu de 35,8% dos votos para 21,3% nas regionais da Madeira, o que representa uma perda de 22.363 votos e a redução da bancada de 19 para 11 deputados. Está assim cada vez mais longe aquela que foi a confessa “obsessão” de António Costa: ver os socialistas governar a Madeira. Mas a derrota estrondosa do PS acabou por passar despercebida. O líder do PS/M, Sérgio Gonçalves, que nem sequer respondeu a perguntas de jornalistas, não se demitiu do cargo e pediu a demissão de Albuquerque.
António Costa, que em 2019 tinha feito declarações públicas com pompa a falar do “resultado histórico” de Paulo Cafôfo, agora fugiu das câmaras e colocou o secretário-geral adjunto do PS a reagir aos resultados. João Torres admitiu um resultado “aquém do desejado” e prometeu que “o PS não volta as costas à Madeira”.
A perda de maioria absoluta por parte de PSD e CDS acabou por mascarar a derrota socialista e António Costa acabou de camarote a gozar o prato a partir de São Bento, com uma nota repleta de ironia política: “O primeiro-ministro felicitou o Presidente do Governo Regional da Madeira pelo resultado eleitoral hoje alcançado, com votos de continuação de bom trabalho em prol da Região e do País.” Não deu a cara pela derrota, mas mandou uma farpa cheia de habilidade semântica.
Ventura completa implantação nacional, mas torna-se irrelevante na governação
O que fica claro é que ninguém quer mesmo nada com o Chega. O partido teve uma vitória relevante, mas com um travo amargo. O crescimento face a 2019 (quando tiveram apenas 619 votos) é fulgurante, mas apesar de eleger quatro deputados para o parlamento regional e ser a quarta força fica de fora de qualquer solução governativa (ao contrário do que aconteceu nos Açores) e vê o seu adversário do espaço não-socialista (a Iniciativa Liberal) a assumir essa relevância.
André Ventura pode, no entanto, reivindicar o mérito da vitória para ele já que — ao contrário de todos os outros partidos — o Chega era o único que tinha a cara do líder nos outdoors e cartazes na região. Na campanha nas ruas, os eleitores também mostraram nem sequer saber quem era o candidato do Chega, Miguel Castro, mas muitos abordam o presidente do Chega quase como uma estrela.
Apesar disso, Ventura cimenta a ideia do Chega como um partido com implementação nacional, presente, como ele referiu, nos três Parlamentos do País: Assembleia da República, Madeira e Açores. Isto depois de já se ter afirmado como quarta força nas regionais dos Açores e nas autárquicas. Apesar de serem eleições com um cariz localizado, o resultado ajuda a contrariar a ideia (muitas vezes vinculada entre dirigentes de PSD e IL) que o Chega está a perder gás e perto de atingir o seu máximo eleitoral.
Conquista ‘Morna’ pode pôr coligação PSD-IL a fervilhar
Os liberais vivem de resultados, mas na Madeira o problema foi de expectativas. Seria sempre uma vitória histórica um partido que começou por ser o “partido do Twitter” e se tornou num partido urbano-chic eleger num parlamento regional numa região autónoma (mesmo que à boleia do muito urbanizado Funchal). Completar o tríptico AR-Açores-Madeira também seria sempre motivo de regozijo de um partido com tão poucos anos de existência. E é.
Na moção de estratégia que apresentou à liderança, Rui Rocha definiu um objetivo muito claro: eleger uma bancada parlamentar (leia-se, dois deputados). Com a eleição de apenas um, pela bitola de um liberal, os objetivo aparentemente tinha falhado. O próprio presidente da IL disse ao Observador que este “seria um objetivo de menor alcance”. Nuno Morna falou em “serviços mínimos”. No entanto, a dependência do PSD de um acordo com os liberais faz dos 3.555 votos da IL mais relevantes para a governação que os 12.028 do Chega. A IL passou de uma vitória Morna a um player na governação.
Comunistas dão prova de vida na Madeira
Os militantes e dirigentes comunistas costumam afirmar — mesmo perante a crise — que o PCP sobrevive mesmo que não tenha representatividade, pois tem no seu ADN um histórico de atividade e influência mesmo na cladestinidade. Já lá vão os tempos em que os comunistas ganhavam sempre, mesmo quando não ganhavam. Depois da quebra eleitoral nas legislativas de 2022, o partido afundou ainda mais — de acordo com as sondagens — devido à posição mais próxima da Rússia que tem na Guerra da Ucrânia. Estas foram as primeiras eleições depois do “fator-Ucrânia” e a CDU passou no teste. Ao mesmo tempo, a CDU consegue a vitória na mini-liga que tem com o Bloco: as sondagens davam os bloquistas à frente, mas esse cenário ficou longe de acontecer.
O Bloco de Esquerda cumpriu o objetivo eleitoral de regressar ao Parlamento regional, mas ficou atrás de PAN, IL, CDU e JPP. Há ainda uma outra leitura em que a Madeira pode servir de balão de ensaio para o continente. Há quatro anos, a bipolarização Albuquerque-Cafôfo fez o Bloco de Esquerda e o PCP perderem quase metade dos seus eleitores para o voto útil nos socialistas. O resultado deste domingo comprova que, perante a desilusão da não-mudança, o eleitorado não teve problemas em regressar à origem. Saiu-se melhor o PCP neste particular do que o BE.
Apesar da guerra de irmãos, o JPP recuperou os cinco deputados que tinha conquistado na estreia em 2015. Foi não só uma vitória do partido que tem o seu bastião em Santa Cruz, mas também de Élvio Sousa sobre o irmão Filipe. O autarca de Santa Cruz achava que o quinto lugar não era digno, mas o irmão provou que não só era digno, como elegível. Os gauleses prosseguem fortes, mas sem relevância para efeitos de governação. Albuquerque fartou-se de avisar que nada estava ganho. E acertou.