Já é a série mais bem cotada de sempre no IMDB — 9,6 pontos contra os 9,2 de Sopranos, os 9,4 de Game of Thrones e os 9,5 de Breaking Bad — mas os russos garantem: Chernobyl é pura ficção. Assim que a produção da HBO chegou ao fim, o realizador Aleksey Muradov anunciou ao tabloide russo Komsomolskaya Pravda que já tem em marcha — no mesmo modo, série de televisão — um plano para repor a verdade.
E qual é a “verdade”? Segundo a tradução da BBC, aquele que entrou para a História como o maior desastre nuclear alguma vez registado não terá sido um trágico acidente provocado pela urgência da URSS em mostrar “progresso técnico e científico” e amplificado por uma consequente tentativa de encobrimento por parte de Moscovo, mas sim um bem sucedido plano de sabotagem levado a cabo pela CIA. “Muitos historiadores não excluem a possibilidade de, no dia da explosão, um agente dos serviços secretos do inimigo estar a trabalhar na estação”, explicou Muradov, cuja série deverá ser emitida pela televisão estatal russa — e terá sido, de acordo com o Hollywood Reporter, financiada pelo ministério da Cultura em 30 milhões de rublos (cerca de 421 mil euros).
Para perceber se esta é ou não uma “fake series”, como acusa a Rússia, regressámos aos recortes de jornais de 1986.
O reator 4 da central nuclear de Chernobyl, no norte da Ucrânia, junto à fronteira com a Bielorrússia e a cerca de 2 km da cidade de Pripyat, construída à medida como seu satélite na década de 70 para albergar os trabalhadores e respetivas famílias, explodiu à 1h23 da madrugada de dia 26 de abril, um sábado. Mikhail Gorbachev, secretário-geral do Partido Comunista (PC) e presidente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), terá sido acordado poucas horas depois, com um telefonema por volta das 5 da manhã. Já as primeiras notícias demorariam um pouco mais: só surgiram nas primeiras páginas dos jornais de todo o mundo três dias depois, na terça-feira seguinte, dia 29. E apenas depois de o alerta ser dado por Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca, que registaram “níveis de radiação anormais”, explicava o Diário de Notícias. “As primeiras indicações surgiram no domingo, quando peritos finlandeses detectaram níveis seis vezes superiores ao normal nas zonas de Tammarsfors, Karjana e Olkiluotot, e posteriormente registaram-se, também, valores invulgarmente altos na Dinamarca e em Oslo.”
É o mesmo jornal (mas não só) quem o garantia: a assunção de responsabilidades por parte da URSS não foi imediata. Bem pelo contrário: “As autoridades soviéticas começaram por dizer que desconheciam qualquer acidente nuclear naquele país, ao surgirem as suspeitas de que a nuvem radioactiva provinha da URSS, mas, mais tarde, a agência TASS revelou que ocorrera um desastre na central de Chernobyl, a 130 quilómetros a norte de Kiev, e que estava a ser prestada assistência às pessoas afectadas.”
A URSS reconheceu o acidente na noite de 28 de abril, quase 48 horas depois do desastre, em dois breves comunicados veiculados pela agência de notícias russa (e estranhamente replicados no dia seguinte por apenas um jornal soviético, o Izvestia, órgão oficial do regime).
Ao todo, contou na altura o New York Times, foram impressas menos de 250 palavras para dar conta do sucedido — paradoxalmente, várias delas serviram para informar que já antes teriam sido registados “muitos acidentes nucleares, nos Estados Unidos e em outros países”.
Nas comunicações da TASS, sobre o caso concreto de Chernobyl, os jornalistas foram informados de que o acidente tinha provocado dois mortos e 197 feridos, 18 deles em estado grave, deixado um reator danificado e obrigado à evacuação de quatro “centros populacionais”. Nada mais.
Terá sido por isso que, nos jornais portugueses, as primeiras notícias sobre o acidente na União Soviética foram essencialmente compostas de informações sobre a nuvem radioativa que se deslocou de lá para a Escandinávia.
Ao contrário do que aconteceu na URSS onde, em vez de se mandar retirar as pessoas do local, a primeira medida tomada foi o corte das linhas telefónicas, para que a notícia não se espalhasse, na central nuclear de Forsmark, a norte de Estocolmo, assim que foi detetada uma “elevada concentração de radioactividade” nas roupas de um dos 600 funcionários, a fábrica foi imediatamente evacuada, relatou o Diário de Notícias.
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No mesmo jornal, ainda na mesma notícia, a primeira publicada sobre o acidente, o facto de a URSS ter emitido um comunicado foi ainda assim saudado como um sinal da “abertura” de Moscovo: “Uma fonte diplomática ocidental, em Moscovo, considerou «um grande passo em frente» o facto de a União Soviética ter comunicado o acidente, indicando, inclusive, que pode querer dizer alguma coisa quanto ao grau de gravidade do mesmo. Outra fonte sugeriu que a notícia da TASS, dando conta do desastre, se insere aparentemente na linha da política de «maior abertura», defendida por Mikhail Gorbachev”. Alguns dias depois, a 4 de maio, também no DN, o “balanço oficial provisório do desastre” seria considerado “plausível” por especialistas do Comissariado Francês da Energia Atómica: “Numa conferência de Imprensa em Paris, os especialistas disseram que os dois mortos foram certamente vitimados pelos efeitos mecânicos e térmicos do acidente, ou seja, projecção de peças metálicas ou jactos de vapor a alta temperatura. «No próprio momento, não pode haver morte por radiação», disse um especialista”.
Quando a notícia começou a correr mundo, a população de Pripyat já tinha sido retirada para longe da zona de risco das radiações. Mesmo assim, a ordem de evacuação foi dada demasiado tarde e só às 14h de domingo, dia 27 de abril, numa altura em que as radiações já tinham atingido máximos nunca antes vistos, é que os 49 mil habitantes começaram a deixar a cidade, em colunas de autocarros. Isto depois de serem avisadas, via rádio, com menos de uma hora de antecedência e sem que lhes tivesse sido comunicada qualquer informação sobre o risco que corriam.
A edição de dia 30 de abril de 1986 de A Capital dá conta de “evacuações em massa” de “mais de 25 mil pessoas” e do “incêndio incontrolável” ainda ativo na central nuclear ucraniana e questiona, em manchete, o número de vítimas reportado por Moscovo: “Quantos Mortos em Chernobyl? Dois ou dois mil”. “«Oitenta pessoas morreram imediatamente e cerca de duas mil a caminho dos hospitais», disse uma soviética, que a UPI afirma ter contactos com os serviços hospitalares e de socorro, em conversa telefónica a partir de Moscovo”, citava o artigo, imediatamente antes de referir a “breve nota oficial”, segundo a qual “o acidente causou dois mortos e os níveis de radiação na área estabilizaram”.
No Diário de Notícias, seis dias mais tarde, já o assunto não tinha honras de primeira página — a zona estava isolada num raio de 30 quilómetros e o PC até já tinha admitido que o acidente “fora causado por uma falha humana” mas o incêndio continuava por controlar –, a notícia era a de que “Boris Yetlsine, do PC de Moscovo” tinha garantido que “desde que as informações sobre a catástrofe foram reunidas, os países ocidentais foram imediatamente avisados”. Pelo caminho, contava também o DN, o comunista tinha ainda tinha feito questão de dar uma alfinetada aos meios de comunicação dos países não alinhados com Moscovo.
“Troçou da Imprensa ocidental, pelos seus «exageros», afirmando que os refugiados de Chernobyl «consomem leite e legumes, não se passeiam com guarda-chuvas e se lavam todos os dias os seus filhos é porque já o faziam antes». O Pravda, aliás, acusou a Imprensa norte-americana de «fomentar o medo» e salienta que nenhuma das 151 avarias ocorridas de 1971 a 1984 em centrais de 14 países provocou semelhante reacção em Washington”, podia ler-se na edição de 6 de maio de 1986 do DN.
Hoje, 33 anos depois, sabe-se que apesar de a explosão do reator 4 de Chernobyl ter provocado apenas dois mortos, de forma direta, foram pelo menos 29 as pessoas que morreram nos três meses seguintes com síndrome de radiação aguda. O resto é difícil de contabilizar: de acordo com as várias agências das Nações Unidas, poderão ser atribuídas 4 mil mortes ao desastre, outras fontes, como a Greenpeace, dizem que terão sido 90 mil as vítimas de Chernobyl.
Factos incontornáveis: na Ucrânia, nos primeiros cinco anos após o acidente, os casos de cancros infantis aumentaram 90%; nas duas décadas seguintes, na Rússia, na Ucrânia e na Bielorrússia, foram registados 5 mil casos de cancros de tiróide em pacientes que na altura da explosão tinham menos de 18 anos; 485 aldeias foram abandonadas por causa dos perigos da contaminação radioativa, sendo que ainda hoje, apesar de ter havido um grande trabalho de descontaminação e de até já lá existir algum turismo, a zona de Chernobyl ainda é radioativa.
Greves, canções e futebol
Quando o desastre de Chernobyl aconteceu, ainda faltavam oito anos para o fim do apartheid na África do Sul, mais de cinco para a queda do Muro de Berlim e outros tantos para a dissolução da URSS. Nos Estados Unidos Ronald Reagan era o presidente, e em Portugal Mário Soares, menos de um ano depois de assinar o tratado de adesão à CEE, tinha acabado de ser eleito para o cargo, sendo o lugar que deixou vago ocupado por Cavaco Silva.
Nos jornais da altura, alguns dos temas eram incrivelmente atuais — são várias as referências às greves de “cacilheiros” que estavam a causar o caos na travessia do Tejo e de médicos anestesistas nos hospitais, por exemplo –, outros nem tanto — ao contrário do que garantiam Diário de Notícias e A Capital, a partir da notícia da britânica New Society, em 1991 os homens não passaram a poder “dar à luz” embriões “implantados nos intestinos”.
Nos dias seguintes à tragédia, o então presidente brasileiro José Sarney visitou Portugal; um acidente ferroviário fez 18 mortos na Póvoa de Santa Iria; Dora, com “Não sejas mau para mim”, representou o País no festival da Eurovisão ganho pela Bélgica; o cirurgião Rui Bento procedeu ao transplante inédito de um coração num paciente que durante escassos dias, até morrer, teve dois a bater no peito; e o antigo internacional de futebol Vítor Batista foi julgado por dois assaltos a casas e por posse de haxixe.
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Como se não bastasse, foi em plena preparação da seleção nacional de futebol para aquela que se viria a revelar a mais catastrófica presença portuguesa numa fase final de um Mundial de Futebol que as notícias da Ucrânia começaram a chegar. Ainda antes de passar um mês sobre o acidente nuclear, o capitão Manuel Bento, em Saltillo, no México, já se tinha visto obrigado a defender a honra dos “Infantes”: “Droga e prostituição não são connosco”, titulava A Capital a 21 de maio. No dia exato em que a explosão de Chernobyl fez um mês, a notícia principal em Portugal era a de que os “Infantes” tinham entrado em greve.
A partir de então, são cada vez mais raras as informações sobre o acidente. Para trás ficaram, além de inúmeras notícias sobre Chernobyl e suas vítimas, várias reportagens sobre o “caso português”.
No dia 9 de maio, A Capital informava que a radioatividade tinha chegado ao território nacional: “Rastos de iodo na relva e de césio no leite foram detectados em Portugal, na sequência do acidente na central soviética de Chernobyl — disse ontem uma fonte do Ministério da Indústria. O mesmo informador referiu que os níveis daquelas substâncias, detectadas em vários pontos do País, eram muito baixos, sem significado, e acrescentou que não constituem qualquer ameaça para a saúde”. E um dia antes, o Diário de Notícias tinha noticiado que vários passageiros da Aeroflot — companhia aérea russa com quatro ligações semanais entre Moscovo e Lisboa que 15 dias depois do acidente começou a anunciar regularmente na primeira página do jornal — “emanavam radioactividade” à chegada a Lisboa, na segunda-feira anterior.
Tanto no Diário de Notícias como n’A Capital ou no Diário de Lisboa são também frequentes as referências à central nuclear de Almaraz, em Espanha. A 8 de maio, uma notícia do DN, apesar de garantir que o Tejo está “perfeitamente controlado”, dá conta de “falhas de funcionamento” recentes da central, junto ao rio e à fronteira portuguesa, nomeadamente de uma “fuga de água radioactiva” detectada no final de abril. “No entanto, e apesar de as autoridades espanholas garantirem que o acidente não tinha passado de uma pequena fuga no circuito fechado de refrigeração, a Associação Espanhola para a Defesa da Natureza e dos Recursos da Estremadura afirmava que foram vertidos entre três mil e quatro mil litros de água fortemente radioactiva para uma reserva de água onde o gado costuma beber”, podia ler-se no jornal.
Foi neste contexto que, de visita a Inglaterra, juntamente com Mário Soares, para celebrar o aniversário do Tratado de Windsor, o então primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva chocou o País ao admitir em entrevista à BBC estar a estudar a possibilidade de instalar uma central nuclear em Portugal. “Nuclear português para inglês ouvir”, foi a manchete do Diário de Lisboa no dia 12 de maio de 1986. No programa “It’s your world”, Cavaco Silva respondeu a perguntas de 13 ouvintes a partir de 8 países: “Ainda a propósito da central nuclear, Cavaco justificou a possibilidade de lhe ceder pelo facto de importarmos 80 por cento da nossa energia, particularmente sob a forma de petróleo”, explicou o Diário de Lisboa.
Nos dias que se seguiram, foram inúmeras as vozes que se levantaram contra a ideia na imprensa nacional. Como é sabido, a ideia nunca foi além dos estúdios da BBC onde Cavaco Silva foi também interpelado, por um arquiteto inglês, acerca do desordenamento das zonas rurais: “Portugal é lindo, vou inclusivamente passar muitas vezes férias a Portugal, mas o campo tem casas horrorosas como nunca vi na Europa”. A citação sobre a resposta também é do Diário de Lisboa: “A este comentário, o Primeiro-Ministro respondeu que o seu Governo está a preparar legislação que impeça a construção selvagem, justificando que as autarquias não estavam habituadas a planificar. «As autarquias locais estão a corrigir os erros que foram cometidos», concluiu Cavaco Silva”.