Ao nível do auditório, que tinha entre os três e os dez anos, António Costa baixa-se e fica ali de cócoras a falar longamente com o Tiago de menos de um metro, de bibe aos quadradinhos e curioso com a visita à sua escola em Benfica do Ribatejo. Esta sexta-feira, quem olhava não imaginava que aquele é o primeiro-ministro no centro de um furacão político. Mas é e, pela primeira vez desde 2015, o PS passou a última semana a fazer todo o tipo de contas: ao número de votos que precisa para fazer passar o Orçamento para 2022, às medidas e respetivos custos que tem de dar para convencer a esquerda, mas sobretudo ao número de votos que teria se as eleições acontecessem nos próximos meses. E chega ao fim dessa semana (mais uma) pesada sem certezas e, por isso mesmo, “humilde” e sem dedo espetado para os parceiros que ameaçam pôr fim ao reinado socialista iniciado com Costa.
Foi com pés de lã que o PS se começou a mover nos corredores onde se debate o Orçamento do Estado desde que ouviu o PCP dizer “a frase”. Nada de novo na parte em que, na reação à proposta entregue pelo Governo na segunda-feira, os comunistas se queixavam de insuficiências, mas de repente, “a frase”, “um novo tom” do grande parceiro que restou ao PS para aprovar o OE do ano passado. O líder parlamentar do PCP dizia sem rodeios: “Na situação atual, considerando a resistência do Governo até este momento em assumir compromisso em matérias importantes além do Orçamento e também no conteúdo da proposta de Orçamento que está apresentada, ela conta hoje com a nossa oposição, com o voto contra do PCP”.
Estava lançado o caos. No Governo houve queixos a cair e no partido assumiu-se: “Pelo sim pelo não, está decretado o estado de alerta no PS“. “Há quem ache que o PCP está a fazer bluff para maximizar os ganhos. Mas é mais do que isso”, resumiu um destacado socialista ao Observador: “O PCP só têm condições para viabilizar o Orçamento se tiverem vitórias muito impactantes e visíveis.” Durante a semana, tanto entre membros do Governo como do partido, as conclusões foram-se repetindo: “Estamos confiantes, mas isto é para levar a sério“. “Margem há”, até porque as contas para o Orçamento foram feitas “por baixo”, mas falta saber até onde quererá o PCP ir (e o Governo acompanhar).
No meio do PS chegou, curiosamente, a ser aplicada a mesma fórmula que Rui Rio usou à saída de Belém, esta sexta-feira, para falar nas hipótese do Orçamento passar: “Está 50/50”. E isso fez com que, de repente, se começassem a fazer conjecturas várias sobre um assunto que até aqui estava encerrado: eleições antecipadas. “O que ganharia a esquerda com isso?” Esta é a pergunta mais repetida, perante a surpresa da ameaça comunista nesta altura do campeonato. “E se a esquerda achar que agora é melhor do que daqui a dois anos?”
Pensamentos que se cruzam com os de socialistas mais crentes na vitória: “E num momento sensível para o PS depois das eleições autárquicas vão dar o trunfo da vitimização ao PS?” Uma coisa é certa, é no PCP que o PS coloca toda a atenção, com uma deputada a dizer isso mesmo ao Observador e a levantar outra perspetiva ainda: “Será que há a intenção de os comunistas renovarem o seu grupo parlamentar o quanto antes e preparar a sucessão de Jerónimo de Sousa?” E mais ainda: “Será que é melhor eleições e enfrentar Rangel do que Rio? Com Paulo Rangel o debate com Costa vai ser polarizado e isso é vantajoso para o PS”. Os cálculos — alguns deles públicos — até irritaram o PCP.
A multiplicação de cálculos e teorias mostra que há muito receio e nem nos gabinetes mais políticos do Governo se arrisca um desenlace para o impasse orçamental. A resposta foi alinhar a argumentação, nas várias entrevistas de governantes e nas intervenções de António Costa, e passar a mensagem: este é um bom Orçamento; as negociações não estão fechadas, o Governo é humilde; o Governo está aberto a alterar a sua proposta; o Governo tem aqui quase duas mãos cheias de cedências a pensar na esquerda.
Quarenta e oito horas depois do PCP fazer a tal declaração bombástica, e já depois de ter recuado e admitido os aumentos na função pública para agradar os comunistas, o primeiro-ministro aparecia ele mesmo a dar forma a todas estas ideias e a acelerar reformas extra-Orçamento. Precisamente aquilo que tinha dito não querer fazer, ainda no debate a semana antes no Parlamento. Nesse dia, perante as insistências do Bloco de Esquerda em negociar alterações ao Código do Trabalho, Costa dizia que essas não eram matérias orçamentais. Mas uma semana depois, já com o PCP — que costumava garantir não misturar dossiês — a reclamar medidas na mesma área, colocou-as todas em cima da mesa e está tudo em aberto para negociar antes de as aprovar em Conselho de Ministros.
“O PCP precisa de uma vitória impactante para viabilizar”, avisava um socialista que acrescentava de seguida que o simples aumento extra das pensões logo em janeiro, em vez de agosto, era insuficiente. Agora há cartas de peso lançadas, mas até ao momento não há registo de novas reuniões entre Governo e PCP e Governo e Bloco de Esquerda, para avançar nessa espécie de tempo extra.
A estratégia de Costa neste Orçamento mudou. Em primeiro lugar porque chamou a si a apresentação dos maiores trunfos que verteria para a proposta, logo no congresso do PS na rentrée política, com duas bandeiras à cabeça: a classe média e os jovens. Não deixou, como de costume, grandes ganhos para esquerda reclamar. E em segundo lugar, inclui quase nada dos seus parceiros na proposta que entregou. Chamou-lhe um “bom Orçamento” e agora surge a dizer que pode “melhorar”. O aparente controlo da situação choca, no entanto, com a urgência com que mudou de discurso de repente sobre as matérias extra-Orçamento.
A “urgência” é precisamente um dos sentimentos que os socialistas identificam: se ainda há semanas o PS aparecia na campanha autárquica hiper-confiante, satisfeito com os efeitos da vacinação e a apostar tudo nos efeitos do PRR, o primeiro “alerta seríssimo” — a perda da Câmara de Lisboa — fez com que o partido saísse de uma espécie de “estado de negação” em que parecia acreditar numa espécie de ciclo de poder infinito, assume um deputado. Dali passou para o “sentimento de urgência” em resolver os problemas que agora reconhece que existem — a pasta orçamental, tal como uma remodelação que parece cada vez mais difícil de evitar.
Ainda assim, por muito que seja preciso resolver os impasses com a esquerda e especialmente com o PCP, há um espectro que paira sobre o PS: se as figuras cimeiras — Mário Centeno à cabeça — aparecem a avisar para os perigos de não controlar a despesa pública é porque a imagem das contas certas, do PS reabilitado pós-Sócrates, é o “seguro de vida” do partido, assume fonte socialista. E essa credibilidade, que será mesmo “a maior conquista deste Governo”, não pode perder-se no meio da dura negociação.
Costa sabe que a imagem, no meio do caos político, conta. E tem feito questão de passar a ideia de estar “calmo e tranquilo” com a aprovação da proposta que diz não ter “nenhuma razão para achar” que não sairá aprovada como nas seis vezes anteriores em que negociou com a esquerda. Sabe que nenhuma delas esteve tão tremida como esta, mas faz questão de não deixar transparecer qualquer preocupação.
Na quinta-feira, neste mesmo contexto, saiu do Parlamento, almoçou ali perto e quando subiu novamente para o seu gabinete, no palacete de São Bento, resolveu ir a pé. Dispensou o carro que o aguardava à porta do edifício e atravessou por dentro da Assembleia da República até ao seu gabinete, que fica para lá do jardim, passando à porta do grupo parlamentar do PCP, por exemplo, parando para dois dedos de conversa no corredor.
No dia anterior, o Presidente da República tinha indicado para quem o quisesse ouvir: se o Orçamento chumbar não há duodécimos, mas sim eleições antecipadas e o tempo não está para isso. A carapuça servia a quem pudesse sonhar com esta via no Executivo, mas também aos parceiros que estão a tornar o acordo difícil. Marcelo não ficou por ali, no dia seguinte, veio detalhar que são os partidos quem “tem a faca e o queijo na mão”. A pressão foi direcionada e Costa, na tal ida ao Ribatejo na sexta-feira, acrescentou à ideia que seria “completamente irracional” ter eleições antecipadas.
Marcelo pressiona acordo e avisa que sem Orçamento não há duodécimos, mas eleições antecipadas
O primeiro-ministro não apontava a suspensão de fundos europeus como o principal problema de um eventual chumbo, mas sim a perda de medidas de recuperação de rendimentos e de incentivos às empresas que constam no Orçamento. E afastava “dramas”. “Com toda a franqueza, drama já tivemos o suficiente durante o último ano e meio, com a perda de mais 18 mil vidas e mais de de um milhão de portugueses infetado. Querem mais drama do que isto? Eu não quero. A partir daqui temos é de aproveitar o sucesso deste processo de vacinação”, afirmou à margem da visita à escola.
Antes de se meter no carro e voltar a Lisboa — para pouco depois entregar mais uma cedência, quando tinha dito que não o faria — ainda foi questionado sobre uma cantilena que as crianças da escola requalificada que acabara de visitar em Benfica do Ribatejo. Os miúdos cantavam sobre o “dedo refilão” e “o aperto de mão”. E Costa aproveitou a deixa para mostrar como quer sair desta de mansinho e de braço dado com a esquerda: “Agora vou esconder o dedo refilão para não refilar. Agora é só fazer figas para que tudo corra bem”.