Ainda não há reuniões agendadas e o tempo está a ser, nesta primeira fase, de controlo de danos das primeiras horas do processo orçamental. Muitos ministros (por vezes em duplicado) e até o primeiro-ministro, num esforço de última hora, a desdobrarem-se em entrevistas e respostas públicas à medida que o debate público sobre a dificuldade de aprovar o Orçamento vai aumentando. Pelo meio, vão surgindo os primeiros sinais de cedência com algumas matérias concretas a ganharem destaque, mas ainda há um mundo a separar as partes.

O Governo tem sublinhado que as negociações já começaram em julho, mas os partidos que podem viabilizar o OE para 2022 dizem que falta tudo na proposta que foi entregue. Aos avanços concretos que garante já ter no documento que apresentou segunda-feira, o Governo vai agora abrindo uma lista de possibilidades de acertos com a esquerda na esperança de poder ter um OE viabilizado, chutando para legislação extra-Orçamento. Vale tudo, mesmo que Costa vá garantindo que não acredita nas bruxas da crise política. Pero que las hay

Salário mínimo pode ir além do aumento de 30 euros já falado

É uma negociação que decorre à margem do Orçamento do Estado, mas é fundamental nas negociações com a esquerda e esta quinta-feira surgiu, finalmente, um valor para o salário mínimo nacional no próximo ano. Em entrevista ao Público e à Renascença, a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, disse que no próximo ano este aumento será de “pelo menos 30 euros”. O Observador soube entretanto que o Governo está agora aberto a ir além deste aumento na negociação na concertação social. E na reunião desta quinta-feira com os deputados do PS no Parlamento, o próprio primeiro-ministro deu essa dica ao dizer a intenção do Governo é aproximar-se, já em 2022, “o mais possível do objetivo dos 750 euros para que o esforço em 2023 não seja excessivo”.

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A trajetória de aumento do salário mínimo definida pelo Executivo de António Costa termina precisamente nos 750 euros em 2023, mas o salto maior foi em 2020, com um aumento de 35 euros. A trajetória desde 2016: 53o euros, com o aumento de 25 euros no primeiro ano em funções; mais 27 euros em 2017; mais 23 euros em 2018, para 580 euros; aumento de 20 euros em 2019; mais 35 euros em 2020 e 30 euros em 2021, fixando o valor atual em 665 euros. Ainda faltam 85 euros de aumento para chegar ao patamar definido por Costa e o primeiro-ministro não quer guardar a fatia mais larga para o fim.

Recorde-se que a meta do Governo, os 750 euros no final da legislatura, continua, no entanto, abaixo das pretensões comunistas que defendem um aumento do salário mínimo para os 850 euros mensais. Também o BE considera que essa meta do Executivo é “o mínimo” que se pode fazer nesta fase.

Mínimo de existência ou baixa nos escalões mais baixos

Mais uma medida, na procura de um encontro com o PCP que volta a exigir este ano o aumento do mínimo de existência (valor até ao qual os contribuintes estão isentos de IRS) nas negociações do OE, mas o Governo não deu qualquer sinal nesse sentido, embora tenha dado um passo na direção da pretensão comunistas de conseguir um alívio fiscal para os rendimentos mais baixos. 

Quando foi questionado na Antena 1 sobre o aumento do mínimo de existência, Duarte Cordeiro respondeu que “o Governo já sinalizou isso” ao PCP, mas depois acrescentou que “não necessariamente nessa formulação”. Admitiu que o Executivo “está disponível para estudar” uma baixa nos escalões mais baixos do IRS para que “tenham também um desagravamento”, apontou. Esta é também uma proposta do PCP, mas cumulativa, ou seja, além de querer o aumento do mínimo de existência, o parceiro do Governo no último OE também quer o aumento em 200 euros da dedução específica em IRS para beneficiar os escalões mais baixos.

Incluir esquerda na elaboração do novo Estatuto do SNS que fica pronto para a semana

É uma matéria extra-Orçamento que está a ser finalizada e vai será aprovada no Conselho de Ministros da próxima semana, segundo anunciou António Costa esta quinta-feira. O Governo diz ao BE e PCP, nesta altura, que as questões que levantam “têm de ser detalhadas e aprofundadas”. Uma abertura manifestada pelo ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, na entrevista a RTP esta quarta-feira à noite. Quase à mesma hora, na SIC-Notícias, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares Duarte Cordeiro insistia no mesmo ponto, prometendo à esquerda que essas alterações devem ser feitas “com os partidos que viabilizaram a lei de Bases da Saúde” ao lado do PS, em 2019. Mas ainda não há sinalização de reuniões nesse sentido, junto dos parceiros parlamentares que continuam a aguardar que o Governo dê esse passo.

Este debate tem sido exigido pela esquerda e tem sido feito bandeira do Bloco de Esquerda que pede este novo estatuto “para enquadrar novos investimentos e ter a certeza que a lei de bases da saúde é cumprida”, nas palavras de Catarina Martins. As reivindicações do BE nesta matéria passam por converter contratos precários em definitivos no SNS, pelo estatuto de risco e penosidade, a dedicação plena ou a autonomia para a contratação.

Esta última é uma das que o Governo tem atirado como argumento para mostrar como cede às exigências do partido liderado por Catarina Martins, já que a incluiu na proposta de OE, bem como o compromisso de substituir “gradualmente o recurso a empresas de trabalho temporário e de subcontratação de profissionais de saúde pela contratação, em regime de trabalho subordinado, dos profissionais necessários ao funcionamento dos serviços de saúde”. A isto ainda alia um reforço em 700 milhões de euros, do envelope financeiro para a contratação de profissionais de saúde para o SNS — embora não esclareça a dimensão deste reforço.

Em matéria de Saúde, por exemplo, o BE traçou três prioridades “fundamentais” que continuam por ter garantia de concretização segura: “Fixar profissionais no Serviço Nacional de Saúde, garantir que não há nenhum utente sem médico de família e retomar os cuidados não Covid.” Algumas das questões passam precisamente pelo estatuto que tem sido reclamado à esquerda já que o Governo o colocou no congelador durante a crise pandémica. Mas o novo estatuto estava previsto na lei de Bases da Saúde aprovada com PCP e BE e que determinou que o SNS “dispõe de estatuto próprio, tem organização regionalizada e uma gestão descentralizada e participada”. O caminho para o encontro entre as partes é ainda longo com alguns capítulos de peso para os parceiros, como é o caso do que se segue.

Regime de dedicação plena do pessoal médico

Mais uma porta deixada aberta pelo Governo para a negociação decisiva que tem pela frente para conseguir apoio para este OE. Aliás, Duarte Cordeiro garante que já existiram conversas com o Bloco de Esquerda onde foi “sinalizada a disponibilidade [do Governo] para ir além do que está no Orçamento”. A ideia é “criar condições para que existam mais profissionais dedicados no SNS”, explicou o secretário de Estado face ao que já está inscrito no Orçamento do Estado e que sabe a pouco à esquerda, sobretudo porque o que consta na proposta entregue segunda-feira não determina uma data para a entrada em vigor do regime, nem os moldes em que vai avançar. Apenas diz que será feita de forma “gradual”, tentando acabar com o trabalho dos médicos em simultâneo no SNS e no privado.

O Governo remete os detalhes para o novo Estatuto do SNS, onde se incluirá a concretização do novo regime, a tal regulamentação extra-OE que promete fazer em acordo direto com a esquerda. Tem uma semana e, nesta altura, ainda não existem reuniões marcadas para tratar disso com os parceiros. No BE o que consta no Orçamento é visto como apenas uma norma programática que autoriza o Governo a fazer no estatuto do SNS o que já estava na lei de bases da Saúde e está expectante para perceber o que mais pode vir desta negociação paralela que o Executivo quer agora abrir. Sendo já certo que a esquerda considera insuficiente o que consta da proposta de Orçamento.

Agenda do Trabalho Digno e Código do Trabalho

Mais um tema bandeira da esquerda, com o PCP e o Bloco a pedirem a reversão de medidas troika, nomeadamente o fim dos cortes no pagamento do trabalho suplementar e dos feriados e ainda que, para efeitos de compensação por despedimentos, passem a contar a 20 os dias de salário por cada ano de trabalho contados em vez dos atuais 12. O Governo aponta agora outro assunto, em matéria laboral, para acenar à esquerda: o fim da caducidade da contratação coletiva, as condições de trabalho negociadas entre empregadores e representantes dos trabalhadores para um determinado sector.

Durante a pandemia, o Governo suspendeu a contagem dos prazos da caducidade dos contratos coletivos de trabalho para proteger “a dimensão coletiva das relações de trabalho” num período de crise. No último Orçamento do Estado, também no âmbito da negociação com a esquerda, o Governo passou de 18 para 24 meses o tempo desta suspensão e agora a esquerda quer garantir o que será para lá desse período e que não regresse a possibilidade da contratação coletiva poder caducar por decisão unilateral dos empregadores.

“Vejo que alguns falam no tema da caducidade, mas ela não se trata no Orçamento do Estado, mas trata — e tratar-se-á e bem tratado — na Agenda do Trabalho Digno” que está a ser negociada em concertação social e que irá já ao Conselho de Ministros na próxima semana, segundo o primeiro-ministro, para que fique “em consulta pública rapidamente”.

Não diz o quê concretamente, mas sabe que este é um aceno em direção à esquerda que reclama uma clarificação nesta matéria. Mas é um pequeno sinal no oceano de reivindicações, com matérias que vão além da Agenda que o Governo tem estado a negociar na concertação e onde Costa quer incluir o debate da caducidade. No dia anterior, Duarte Cordeiro tinha prometido na Antena 1 disponibilidade para “ir além do Orçamento até em matérias relativas ao Código do Trabalho, fora da Agenda do Trabalho Digno”, embora não tenha especificado quais. António Costa tem dado sinais de falta de disponibilidade em muitas das matérias laborais exigidas pela esquerda e o BE, por exemplo, critica frontalmente que algumas das matérias de peso, como a precariedade e o teletrabalho, sejam tratados em legislação paralela que o deputado bloquista José Soeiro apelidou de “tortuosa” num artigo de opinião no semanário Expresso.

O caminho de Costa não parece ser o que mais agrada a este parceiro que ainda esta quinta-feira, no cenário de iminente crise política, veio acenar com uma semi-geringonça apoiada em garantias precisamente na legislação laboral: um acordo escrito com o PS para viabilizar o Orçamento que inclua a reposição dos 25 dias de férias, a indemnização por despedimento que vigorava antes da troika e “a questão da contratação coletiva que impede a subida dos salários”, disse Mariana Mortágua em declarações ao jornal Público.

Creches e pensões: disponíveis para “avaliar aproximação”

No rol de entrevistas e intervenções de governantes foi sendo garantido que o Governo “já sinalizou aproximações e avanços” com os parceiros “para além do que está inscrito no Orçamento do Estado. A formulação é de Duarte Cordeiro, que na entrevista à Antena 1 de quarta-feira de manhã dava alguns exemplos disso, garantindo que “num objetivo concreto do PCP, a gratuitidade das creches”, existe “disponibilidade” do Governo que, na proposta entregue no Parlamento, só propôs creches gratuitas para os dois primeiros escalões de IRS, deixando comunistas desagradados.

Quanto a uma das medidas que tem avançado praticamente em todos os Orçamentos acordados à esquerda, que é o aumento extraordinário das pensões mais baixas, o Governo também admite poder ir mais longe do que o que está no OE.  A medida tem constado em quase todos (só falhou no primeiro) orçamentos acordados pela esquerda, mas apenas por uma vez, no ano passado, valeu apenas a partir de janeiro. Nos outros anos, a esquerda só conseguiu que vigorasse a partir de agosto e o Governo voltou, neste Orçamento, a essa mesma fórmula. O PCP quer o ano todo e o BE também. Na mesma entrevista, Duarte Cordeiro admitiu “avaliar essa aproximação”.

Estatuto profissionais da cultura

Quando António Costa foi até ao grupo parlamentar do PS ia com a bazuca de cedências carregada e além do Estatuto do SNS e da Agenda do Trabalho Digno, prometeu também para a próxima semana a aprovação em Conselho de Ministros do estatuto dos profissionais da cultura, um sector especialmente afetado pelos confinamentos da pandemia.

O primeiro-ministro explicou, sabendo que este é também um tema especialmente caro à esquerda, que durante a pandemia “foi um quebra cabeças para apoiar a quebra de rendimentos dos diferentes profissionais da cultura”, tendo em conta a diversidades de formas de contratualização. A ideia é agora, assume, “reconduzir parte da atividade artística a formas de contratualização típicas e normais”, mas também garantir proteção social para aqueles para quem não são possíveis estes contratos típicos.

Espetáculos tauromáquicos reservados a M16

A medida apareceu no Conselho de Ministros desta quinta-feira, de onde Costa saiu para ir direto para o Parlamento dar conta da sua suposta paz de espírito com a aprovação do OE –que não condiz com a catadupa de medidas para agradar à esquerda aqui listadas. Os três deputados do PAN são precisos para as contas da viabilização do OE e, ainda que Inês Sousa Real tenha sido a parceira negocial que apareceu publicamente mais satisfeita com os resultados, isso teve custos e um deles surgiu no Conselho de Ministros que aprovou a classificação etária para assistir a espetáculos tauromáquicos, fixando-a nos maiores de 16 anos”.

Dúvidas houvesse sobre a origem desta medida e o PAN esclareceu-as de imediato quando a líder parlamentar do partido veio reclamar uma “importantíssima vitória” do partido o aumento, de 12 para 16 anos, da idade mínima para assistir a uma tourada em Portugal. Foi a deputada que explicou que a medida “decorre das negociações do Grupo Parlamentar do PAN – Pessoas-Animais-Natureza com o Governo no âmbito do Orçamento do Estado” de 2021. Mais um esforço de última hora para garantir os votos suficientes para a viabilização da proposta do Governo na votação do dia 27 de outubro.