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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Ana Jorge: "A Ordem tem feito um mau serviço à carreira de enfermagem"

Crítica das PPPs na Saúde, a ex-ministra da Saúde admite vantagens desde que fora de gestão clínica dos hospitais. Ana Jorge lamenta que Ordem dos Enfermeiros aja como se fosse um sindicato.

Ex-ministra da Saúde de José Sócrates, Ana Jorge sucedeu a Correia de Campos em 2008 e liderou o Ministério da Saúde até à queda do Governo em 2011. Médica pediatra, é hoje coordenadora dos cuidados continuados integrados da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa — e acompanha de perto o desenrolar das políticas de saúde em Portugal, nas quais intervém com frequência. Em abril, foi uma das principais signatárias de uma carta aberta contra as parcerias público-privadas na Saúde. Oito anos antes, tinha estado na inauguração do hospital de Braga, gerido em regime de PPP, enquanto ministra. “Na altura não havia alternativa”, recorda agora, em entrevista ao programa Sob Escuta, a grande entrevista semanal da Rádio Observador.

Crítica das PPP, considera que durante a discussão da nova Lei de Bases da Saúde houve uma “exacerbação” do tema, esquecendo-se a outra face da relação entre os setores público e privado. Mas é à Ordem dos Enfermeiros que deixa as maiores críticas. “Penso que nos últimos tempos a Ordem, no meu conceito, tem feito um mau serviço à carreira de enfermagem”, assegura, considerando que “muito daquilo que a Ordem nestes últimos tempos tem feito é muito como sindicalista, e isso não é benéfico num Estado como o nosso”.

[Veja aqui o best of da entrevista a Ana Jorge]

Para a ex-ministra, grande parte dos problemas sentidos hoje no setor da saúde devem-se aos cortes feitos no tempo da troika. “Era expectável que fosse ao fim destes anos”, afirma Ana Jorge, assinalando que os equipamentos de saúde “têm uma duração significativa”, pelo que é normal que os efeitos não se sintam imediatamente após o desinvestimento. “Ao fim de quatro, seis, sete anos, começam a sentir-se os efeitos”, destaca.

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Defensora de políticas públicas que abram caminho à dedicação plena dos médicos ao SNS, Ana Jorge critica o “conflito de interesses” registado em situações de médicos que trabalham simultaneamente no público e no privado, na mesma área geográfica, servindo a mesma população. “Hoje não tenho aqui capacidade, vá ter comigo ao vizinho do lado que eu trato do resto”, exemplifica.

Ex-ministra da Saúde de José Sócrates em entrevista no programa Sob Escuta da Rádio Observador

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Porque é que, no texto que escreveu para o Relatório de Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, diz que este é o período mais preocupante da vida do SNS, que está em forte crise?
Talvez seja um bocadinho forte a minha afirmação no texto que está no relatório. Não quer dizer que eu negue o que disse, não é isso — e isto é uma oportunidade de situar bem o que é que isso significa. Comecei a trabalhar em saúde quando ainda não havia SNS. Acompanhando e percebendo o que foi a evolução do SNS ao longo destes 40 anos, obviamente que nada tem a ver com aquilo que era há 40 anos, do ponto de vista das condições de vida, das condições de saúde das pessoas e dos recursos que os profissionais têm para tratar. Quando eu coloco a situação de que agora é um momento preocupante é porque acho que há um certo sofrimento — sofrimento dos profissionais — e algum desencanto. Essa é a preocupação. Não é que não se esteja a trabalhar bem, não é que não haja condições, mas é preciso haver boas condições e ânimo para se querer continuar a trabalhar. Esse é o meu receio neste momento.

A dada altura, no mesmo relatório, há um outro texto, do médico Cipriano Justo, em que diz que o que fica para memória futura do SNS hoje é manifestamente pouco, e que, sem as movimentações da sociedade civil e do setor fora do Ministério da Saúde, estaria muito pior do que está hoje e do que foi herdado do Governo anterior. Concorda com esta afirmação?
Diria sim e não. Penso que ele se refere fundamentalmente à discussão que tem havido à volta do estatuto do SNS e da Lei de Bases da Saúde. Nesse sentido, a participação que houve da sociedade civil foi importante.

Mas se não fosse essa discussão estaríamos com um SNS pior do que no final do Governo anterior?
Eu não diria que estivesse pior. O que é que achamos que é pior? Os indicadores de saúde? A avaliação do nível de saúde da população portuguesa? A prestação de cuidados? O acesso aos serviços? Nós estamos com melhores indicadores de saúde. Há umas pequenas oscilações, eventualmente, do número da mortalidade infantil, mas isso não se pode valorizar porque o valor é tão baixo que pequenas alterações podem fazer com que as taxas sejam muito diferentes. Não são significativas e estamos com bons indicadores de saúde.

Mas ao mesmo tempo temos as queixas dos médicos, dos enfermeiros, dos utentes…
São coisas diferentes. O acesso a tratamentos existe, hoje há capacidade de tratar bem e dentro do SNS. Mas, se falarmos da dificuldade que há nos acessos, dos tempos de espera, muitas vezes para as consultas e para algumas cirurgias, neste momento houve algum atraso e há alguma dificuldade, e isso é sentido pelas pessoas. Se olharmos para isso, poderemos dizer que nessa parte não estamos bem, ou não estamos tão bem quanto queríamos. Mas não estamos bem. Aí sim.

Acha que houve um retrocesso? Já houve algum momento em que estivéssemos melhor do que agora?
Penso que já estivemos melhor e já estivemos pior. Nos últimos tempos houve algum agravamento. Houve uma saída muito grande de profissionais dos serviços públicos de saúde, não só em número absoluto, como em tempo parcial. Algo que muitas vezes não é falado. Diz-se que muitos médicos saíram, muitos enfermeiros saíram, e aquilo que acontece é que não só saíram a tempo inteiro e deixaram de trabalhar para o serviço público, como há muitos profissionais que estão nos serviços públicos, que se mantêm, mas a tempo parcial. Isto é, estão a meio tempo, estão a 20 horas, estão a 15 horas, estão a 17,5 horas, que é meio tempo. O que significa que dois valem por um em termos de horas de trabalho. Aí, houve de facto uma redução de profissionais. Outros porque atingiram o seu limite para a idade da reforma possível — não quer dizer que não continuem a trabalhar, mas não estão no serviço público, estão nos outros locais. A oferta na área privada é muito grande neste momento, e não era há uns anos atrás, nos grandes grupos económicos da saúde, e isso levou a alguma diminuição da capacidade de respostas dos serviços públicos. Nomeadamente, as cirurgias, que são o exemplo mais falado. Para fazer cirurgia, tenho de ter no mínimo o cirurgião, que pode ser de várias especialidades, tenho de ter sempre anestesista e tenho de ter enfermeiros. Se faltar um deles, não posso fazer cirurgias. Aí, tem havido alguma dificuldade, exatamente porque há menos capacidade de resposta de alguns destes grupos, separadamente uns dos outros.

Já vamos falar sobre a questão da exclusividade dos profissionais de saúde e dessa divisão de tempo entre o público e o privado. Mas queria voltar àquele ponto em que falava sobre o desencanto. A palavra que usa no relatório é “desilusão” dos profissionais. Descreve-os como pessoas sem esperança de que as coisas possam melhorar. Diz, aliás, que não basta dinheiro para resolver este problema, que é preciso devolver o orgulho aos profissionais de saúde. Como é que isso se faz?
Tenho pensado um pouco sobre isso e não tenho uma resposta, neste momento, suficientemente forte para dizer que é por aqui que devemos ir. Acho que merece alguma reflexão. Hoje, o SNS é diferente daquilo que era há uns anos, os profissionais são diferentes, as expectativas que têm hoje provavelmente são diferentes, nomeadamente os jovens enfermeiros, que são os grupos, em termos numéricos, mais significativos no SNS. Continuo a achar que a importância de uma carreira profissional desenvolvida com base na qualificação técnica, na sua competência e na sua diferenciação, não existe neste momento. Qualquer um de nós, da minha geração e posterior, fazia a sua diferenciação, a sua especialização, e ia ia subindo na carreira. Obviamente que tinha algum reflexo do ponto de vista remuneratório, mas a diferença não era tanto por aí. Era, de facto, o poder desempenhar outras funções e ter acesso a essa área de diferenciação, que só existia nos serviços públicos. Hoje em dia, isso não é muito valorizado, ou não tem sido valorizado, não só pelos profissionais, que não percebem a vantagem — os mais novos — desta diferenciação na carreira.

"Não é que não se esteja a trabalhar bem, não é que não haja condições, mas é preciso haver boas condições e ânimo para se querer continuar a trabalhar. Esse é o meu receio neste momento."

Essa carreira, assim diferenciada, ainda existe?
Essa carreira não existe neste momento. Existem os mais antigos, que hoje são os graduados e graduados séniores, que é no fundo a diferenciação que há. Após fazer uma especialização tem, depois, uma avaliação inter-pares. Isso é aquilo que lhes dá a competência para terem um grau diferente de carreira. Logo, mais capacidade de poderem desempenhar a sua função, dentro de uma instituição, com capacidade de decisão, de orientação de serviços, de profissionais e de equipas. Não tem sido muito valorizado e é isto que provavelmente é preciso voltar a criar, esta ou outra que seja mais adequada aos tempos de hoje. Isso é importante, porque aquilo que acontece, muitas vezes, em algumas instituições, principalmente as hospitalares, é que o trabalho em saúde é um trabalho de equipa. E é importante que haja uma equipa de profissionais e essa equipa tem de ter liderança e tem de ter chefias.

Um dos principais conflitos está nos enfermeiros, e em parte com questões relacionadas com a carreira. Dizem os enfermeiros que grande parte da carreira foi eliminada por si em 2009, quando desapareceram uma série de categorias na hierarquia. Porquê? Que vantagens trouxe?
É uma das questões pelas quais os enfermeiros normalmente me responsabilizam a mim, quando estive no ministério…

Com bastante frequência.
É o problema do enfermeiro-chefe. Continuo a achar que o enfermeiro-chefe não deve ser um lugar de carreira.

Porquê?
Porque a chefia é algo que se conquista, que se nomeia para chefiar. Uma pessoa, enfermeira ou não, poderá não ser chefe o resto da vida.

Mas havendo agora esta dificuldade com a inexistência de uma carreira que torne o setor atrativo para estas profissões, arrepende-se de ter eliminado algumas dessas categorias?
Não. Porque as categorias existem como enfermeiro, especialista e enfermeiro principal. Os enfermeiros poderão aceder e diferenciar-se para ter uma especialidade. E essa especialidade terá de ser reconhecida, obviamente, pela Ordem — penso que é o seu organismo, é um setor regulado, e portanto pode fazê-lo —, e esses especialistas poderão depois assumir funções de chefia. Essas funções de chefia variam consoante as necessidades dos locais onde trabalham. Poderá ser por concurso, poderá ser por nomeação, é irrelevante do ponto de vista da decisão. Deverão demonstrar competência, ou com um programa ou por avaliação, ainda que durante algum tempo.

Portanto, não é um lugar de carreira.
Não é um lugar de carreira. À semelhança do que acontece na carreira médica. O lugar de chefia desapareceu da carreira médica exatamente por isso. Porque, antigamente, havia o lugar de chefe de serviço, e o chefe de serviço da carreira médica não era um lugar de um diretor de serviço. Era um lugar de carreira, como agora é o assistente graduado sénior. E a diferença é exatamente para isso, para não haver confusão entre a diferenciação técnica e a chefia. É evidente que a chefia, se for possível, deverá ser escolhida entre as pessoas que têm maior graduação. Mas há pessoas que não têm essa graduação e que, do ponto de vista da sua competência de liderança e de chefiar uma equipa, até o podem desempenhar.

Então que categorias é que poderia haver na carreira?
O conflito, ou a razão da insatisfação, é que consideraram que o lugar de chefia é um lugar de carreira. Aquilo que justifiquei — e não foi só por mim, eu decidi e assumi — foi uma tentativa de organizar as carreiras da administração pública. É evidente que as carreiras da saúde são carreiras especiais e têm particularidades. Não são completamente transponíveis como qualquer outra da administração pública.

A esta distância, teria feito o mesmo?
Acho que deveria haver enfermeiros, enfermeiros especialistas… Há ali uma área em que estou de acordo com os enfermeiros: quando são especialistas devem ser reconhecidos como tal. Reconhecidos do ponto de vista remuneratório e de lugar. E depois passariam a principais. Mas os principais são lugares que são desempenhados em função das necessidades dos serviços. Para aceder a um lugar desses, eu faço um concurso para o lugar. Imaginemos, há dez vagas e há cinquenta candidatos, eu concorro, apresento currículo, apresento uma discussão. São selecionados e ficam nesse lugar, e as chefias deviam ser retiradas daí. Mas poderia haver, e deveria haver, um reconhecimento desse lugar do ponto de vista da remuneração. Este era o princípio que, quando estive no Governo, estava em cima da mesa, e que não foi fechado. Não houve tempo, porque entretanto o Governo caiu. Era a parte que estava em discussão, mas não havia completamente acordo com os sindicatos, nomeadamente por causa do lugar de enfermeiro chefe. Uma das argumentações que eu fazia é que, para a pessoa subir na carreira, teria que ir sempre a chefe, e nem sempre o melhor enfermeiro, do ponto de vista até da competência técnica, é um bom chefe. O que aconteceu muitas vezes, experiência vivida no sítio onde eu trabalhava, é que pela carreira — e as pessoas tinham direito porque isso significava subida na carreira e parte remuneratória equivalente — deixavam de ser bons enfermeiros especialistas para serem maus enfermeiros chefes. Do ponto de vista da chefia de um serviço, que não é exatamente a mesma coisa. Não tem a ver com a competência como profissional de enfermagem, mas com as competências de chefia e de organização de serviços.

Dizia há pouco que entende algumas reivindicações dos enfermeiros, pelo menos na questão remuneratória. Neste momento vivemos um período de guerra aberta entre enfermeiros e Ministério. Esta questão, por exemplo, da sindicância à Ordem dos Enfermeiros tem estado na ordem do dia. Esta semana houve acusações: a Ordem dos Enfermeiros apresentou um parecer do constitucionalista Paulo Otero em que compara a entrada na sede da Ordem a práticas próprias de um Estado fascista. Concorda que seja feita uma sindicância à Ordem dos Enfermeiros?
Não tenho acompanhado de perto essa situação, portanto não me vou pronunciar muito. Acho que a Ordem dos Enfermeiros, com a qual trabalhei muito desde a sua constituição há cerca de 20 anos, nos últimos tempos tem feito um mau serviço à carreira de enfermagem. Aos serviços de enfermagem.

Pode explicar?
A Ordem, e os enfermeiros, fizeram toda uma evolução, ao longo destes últimos anos, de dignificação da carreira, da sua profissionalização, da qualificação. Muito daquilo que a Ordem nestes últimos tempos tem feito é como sindicalista, e isso não é benéfico num Estado como o nosso. É bom que haja diferença entre as competências da Ordem, que tem poderes delegados do Estado como organismo regulador da profissão, e os aspetos sindicais, que são para os sindicatos. Essa confusão de papéis não tem sido benéfica.

"Acho que a Ordem dos Enfermeiros, com a qual trabalhei muito desde a sua constituição há cerca de 20 anos, nos últimos tempos tem feito um mau serviço à carreira de enfermagem. Muito daquilo que a Ordem nestes últimos tempos tem feito é como sindicalista, e isso não é benéfico num Estado como o nosso"

Quando olha para a relação atual, complicada, entre o Governo e a Ordem dos Enfermeiros, parece-lhe que a responsabilidade está mais na Ordem dos Enfermeiros?
Quando existe conflito, ou quando não funciona bem, não é só sempre de um lado, obviamente. Há sempre razões de parte a parte. Mas, neste momento, considero que a conduta da Ordem não é algo que seja tranquilizador para o setor. Tenho um trabalho muito próximo, ainda hoje, com muitos enfermeiros, e sentem exatamente isso. E lamentam muito o caminho por onde se tem ido.

E a ministra Marta Temido tem gerido bem o diferendo com os enfermeiros?
É difícil, neste momento… A ministra Marta Temido entrou no Ministério num momento de grande conflito de todos os setores da saúde, quase todos, principalmente os profissionais.

Mas parece-lhe que o conflito se agravou desde essa entrada?
Não sei se se agravou. Acho que ele se desencadeou porque estava iminente. Houve um arrastar de alguma situação e é evidente que é sempre indesejável que se extremem as posições. Quando há um conflito aberto, muito dificilmente depois se chega a acordos. É mais difícil. É sempre desejável não haver extremar de posições para se poder construir qualquer coisa de positivo. Quer para o Ministério e para o Governo, porque há questões salariais que são muito difíceis de resolver, apesar de ter havido no Governo alguns sinais de melhoria do ponto de vista financeiro e do ponto de vista orçamental. Mas não é possível resolvê-los todos em quatro anos. Os anos da troika foram difíceis e portanto há aqui muitas questões. Apesar disso, e da esperança que havia de que isto agora estava tudo bem, não está. Portanto, a dificuldade eclodiu nas mãos da ministra Marta Temido.

Essa foi uma sensação causada não só nos enfermeiros, mas em todos os portugueses, também por causa da retórica do Governo, que foi falando de como as coisas estavam de facto melhores, ou uma ilusão que alguns números podem dar às pessoas?
Penso que alguns números podem dar alguma ilusão e, de facto, o sofrimento que houve durante os tempos da troika foi muito grande. E o aliviar dessa pressão dava-nos eventualmente a ideia de que isto poderia ser bem diferente. Obviamente que foi diferente, e houve muitas situações que foram resolvidas, mas não é possível resolver tudo. Também há uma outra questão que é preciso não esquecer: os efeitos na saúde daquilo que foram os cortes não se fazem sentir de imediato. Era expectável que fosse ao fim destes anos.

A bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco (INÁCIO ROSA/LUSA)

Inácio Rosa/LUSA

Portanto, ainda estamos a sentir os efeitos dos cortes que foram feitos na altura da troika?
Obviamente. Nomeadamente nas questões de não investimento nos equipamentos e na renovação. Estes equipamentos têm uma duração significativa, portanto, se não se investiu durante quatro anos, nesses quatro anos não se nota, porque se consegue ir mantendo. Quando se deixa de fazer manutenção, quando se deixa de investir, ao fim de quatro, seis, sete anos, começam-se a sentir os efeitos.

E vamos continuar a sentir esses efeitos?
Há alguma tentativa, neste momento, de começar a ser possível recompor, e há sinais disso. Mas, eventualmente, pode não ser fácil, de um momento para o outro, deixar de haver esses efeitos, não é? De facto, aquilo que aconteceu foi muito significativo. É evidente que os sinais só aparecem ao fim de uns anos — e é o que estamos a atingir agora. Nomeadamente também nos profissionais.

Quando falamos da ebulição no setor da saúde falamos nos enfermeiros, mas não só. A Ordem dos Médicos, por exemplo, está a fazer um périplo por hospitais do país para expor os vários problemas. Há direções hospitalares que caem em bloco, há queixas de utentes, utentes a serem atendidos em contentores, alguns deles crianças. Parece que nada está bem no setor. A área da saúde é ingovernável?
Não. É evidente que há um conjunto de situações, e não podemos esquecer várias coisas. Uma, estamos a aproximar-nos de eleições desde há um ano e é inevitável que, neste momento, ciclicamente, sempre que há eleições, esteja quem estiver no Governo, haja contestação. Há evidência de que isto acontece. Não vou defender os contentores, obviamente. Mas é evidente que esses contentores que havia no hospital de São João estão lá há muitos anos e que aquilo servia de charneira para se poder fazer obras nos outros serviços. Aconteceu na pediatria, o que aconteceu foi que as obras não se fizeram e eles estiveram lá mais tempo do que era expectável.

Às vezes também se resolvem. Esta história dos contentores é de há um ano e agora está a ser resolvida junto às eleições.
A envolvência da população, de uma maneira ou de outra, é sempre algo que é positivo.

"Os efeitos na saúde daquilo que foram os cortes [do tempo da troika] não se fazem sentir de imediato. Era expectável que fosse ao fim destes anos"

Mas vamos passando de governo para governo, de ministro para ministro, e parece que nunca é possível resolver os problemas com as classes profissionais, com os hospitais, com as administrações. Por isso, repetia a pergunta: é ingovernável?
Não tenho essa noção. É um setor complexo, é um setor difícil de governar, pela sua complexidade e pela sua extensão. A saúde tem duas características importantes. Primeiro, está 24 horas aberto, 365 dias. Há outros setores que também estão, não é só a saúde. Mas a saúde, além disso, tem muitas vezes situações de grande tensão, é a saúde das pessoas. A existência de emergências e de urgências cria no setor uma particularidade diferente dos outros setores. Quando nós temos a vida das pessoas na mão, quando temos urgências hospitalares e as pessoas o que sentem é muita vontade de segurança, do socorrer, de irem a um serviço e ter a resposta adequada — que nem sempre é a resposta que as pessoas querem ouvir —, mas que lhes dê segurança. Que sintam que estão a ser bem atendidas e que no momento têm aquilo que é possível e é necessário para elas. Isso cria alguma tensão, da dificuldade na própria governação da saúde. Depois, também há muitos interesses instalados na saúde, como é óbvio. Não é nada de novo. O setor privado expandiu-se muito e abrangeu muito aquilo que não havia, que é a capacidade de internamento e de fazer intervenções muito diferenciadas, que eram só do setor público e que agora também estão no setor privado. Obviamente que a complementaridade tem de existir e, neste momento, não é possível que não haja setor privado na saúde em Portugal. Agora, esse mesmo não pode é viver à custa do SNS.

O que nos leva à questão das parcerias público-privadas. O tema também já não novo, mas escreveu no relatório da primavera que tinha uma dimensão reforçada.
Mas não são as parcerias que têm a dimensão reforçada. O que está reforçado é o setor privado. Não é a mesma coisa.

Mas o Estado perdeu o controlo?
Não. As parcerias público-privadas são hospitais públicos geridos por privados. Construídos e geridos pelo setor privado numa parceria. Mas há outro setor privado, que tem convenções com o SNS, que é muito maior e com um volume de negócio muito maior. Para dar um exemplo: a hemodiálise em Portugal, de crónicos, é principalmente feita no setor privado, com convenção com o Estado.

E bem?
Penso que neste momento está melhor, mais bem organizada, porque em grande parte o pagamento é feito por tratamento compreensivo. Levou o seu tempo. Há vinte anos houve uma situação muito dramática, que foi: tudo está nas mãos dos privados, pouco há de capacidade de resposta no setor público, e portanto eles põem o preço que querem na negociação. Isso aconteceu. Em determinada altura, ou havia acordo ou não havia resposta para tratar doentes em hemodiálise.

Em abril assinou uma carta aberta dirigida ao primeiro-ministro, em que se pronunciava contra as parcerias público-privadas e dizia que o argumento da eficiência na gestão era falso. Quando olhamos para alguns estudos que nos dizem que entre os melhores hospitais do país, quer em termos de eficiência, quer em termos clínicos, estão hospitais geridos neste regime, devemos ignorar esta evidência?
Não. Devemos analisá-la e não ignorar. Essa carta respeitava fundamentalmente à gestão clínica das parcerias. No hospital, a parte clínica deverá ser feita, e essa é a nossa posição, pelo setor público.

Os edifícios podem ser construídos e geridos por privados?
Construídos e geridos por privados. E há uma série de serviços que podem perfeitamente ser geridos. Até porque a parceria público-privada, quando é construção e gestão, tem 30 anos do ponto de vista da própria construção e manutenção dos edifícios, e tem 10 anos no acordo feito para a área clínica. Obviamente, quando eu faço um contrato a 10 anos, hoje aquilo que eu faço em termos da gestão clínica, 10 anos depois é completamente diferente. A situação muda completamente.

Ana Jorge foi ministra da Saúde entre 2008 e 2011

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Porque é que diz que a questão clínica deve sempre ser pública? O que é que torna uma gestão pública da saúde inerentemente melhor do que a privada?
Não é tanto a gestão que é melhor. É mais completa. Há duas ou três áreas que também não têm sido muito faladas quando se fala em gestão em PPP. Essa parceria é um contrato com o Estado para fazer determinadas ações, e eles recusam muitas vezes abranger determinadas áreas de saúde. Um exemplo: uma parceria público-privada recusou ter serviço de psiquiatria completo, como está no programa de saúde mental.

Qual foi?
Os serviços de psiquiatria e de saúde mental, hoje, estão em todos os hospitais gerais, que têm serviços dentro do hospital, de internamento e consulta em hospital, e têm serviços na comunidade, serviços esses que são do hospital, da responsabilidade do hospital, e que funcionam na comunidade.

E houve um hospital PPP que não tem? Qual?
Nomeadamente o de Loures. Era o serviço de Odivelas, que passou, e os serviços da comunidade do centro hospitalar psiquiátrico eram no Júlio de Matos. Sendo que a população quando tem qualquer de situação de internamento é em Loures. Isto não faz sentido do ponto de vista da organização.

Mas isso não significa só que o Estado pode estar a negociar mal esses contratos?
Tem a ver, é evidente, com a capacidade de negociação e com os preços que são apresentados pelo privado que está a negociar com o Estado.

Mas os privados têm interesse em ter essa parceria. O Estado terá alguma margem para impôr algumas condições. Não as impõe porquê?
Aí já não lhe posso responder porque é que esta não foi, porque já não fui eu. Sei que estive no início da negociação. Quando ainda estava no Governo fiz esse princípio de negociação, que considerei importante, porque era um serviço de boa qualidade. No fundo, os serviços da comunidade, o que é que vão fazer? Diminuir a necessidade de internamento. E o que dá dinheiro é o internamento. Logo, se eles fizerem melhores cuidados na comunidade, têm menos internamento, portanto não valorizam tanto a sua capacidade de poder negociar um valor mais elevado para os internamentos.

Mas isso significa que é preferível nós termos um hospital com gestão pública que até tem indicadores ao nível da sua eficiência financeira, e até clínicos, mais baixo do que um hospital gerido no âmbito de uma PPP porque esse hospital público faz todo o serviço, nomeadamente os serviços à comunidade? Nós preferimos aceitar um nível do serviço mais baixo — refiro-me àqueles que estão sempre no topo das listas —, porque os que estão no topo das listas não cumprem os outros serviços?
Mas quando diz que eles têm um serviço melhor, em que aspeto?

Quer em questões clínicas quer em questões de eficiência financeira.
Têm melhores resultados do ponto de vista da saúde?

A PPP de Braga é consistentemente, creio que nos últimos dois anos…
Sim, esteve muito melhor apresentada, com melhores resultados.

Do ponto de vista clínico. Melhores cuidados de saúde. Portanto, a pergunta é se o problema que vê numa parceria público-privada…
Eles também não quiseram continuar, não é? Com o valor que tinham.

Mas acha que aquela parceria devia ter terminado?
Não sei se devia…

Existência de PPPs na Saúde "pode ser positiva no sentido de que fazem algum trabalho que é positivo, (...) desde que fora da gestão clínica. A gestão clínica não tem benefício para o Estado nem para a população."

Esteve na inauguração, em 2011, e disse que não era adepta do modelo, mas não tinha alternativa. Agora há?
Na altura não havia alternativa. Agora, talvez haja. Era preciso construir o hospital e a parceria apareceu como construção e gestão. De facto, era fundamental que aparecesse o hospital de Braga. Era uma necessidade absoluta da substituição do velho hospital que lá existia, de São Marcos, e não havia capacidade de o fazer de outra maneira. Portanto, foi negociado aquilo que era o melhor possível para a população e para as condições do Estado. Houve, de facto, algumas dificuldades na fase inicial de implementação da PPP de Braga. Nomeadamente com os doentes mais complicados, como os doentes com HIV, como os doentes que faziam tratamentos com medicamentos biológicos, etc. Lembro-me de que foram alguns dos setores com alguma dificuldade, porque são aquela parte mais onerosa do ponto de vista da medicação. Houve ali necessidade de grande negociação, através da ARS-Norte, que era quem geria o contrato com a PPP de Braga. Necessidade de fazer uma intervenção de acompanhamento muito sério e de grande discussão. Depois, chegaram a um acordo e as coisas correram bem a partir daí. De facto, não foi fácil. Por outro lado, e porque há de facto setores em que, nas PPPs, aquilo que é possível atender é o que vem no contrato. Tudo o que não está no contrato, obviamente que estes hospitais não são obrigados a tratar nem a atender. Portanto, podem encaminhar para outro setor que não é PPP.

Estava a falar das condições do velho hospital de São Marcos. Com certeza conheceria as condições daquele hospital. A população de Braga ficou seguramente melhor servida com o novo hospital e com essa gestão, mesmo que por uma PPP.
Ah ficou, com certeza, claro. Mas eu não disse que não estava. Acho que o novo hospital de Braga, que é resultado de uma PPP, fez uma grande diferença quer do ponto de vista das instalações quer na resposta que deu à população, porque passou a ter capacidade, hoje — e não foi sempre igual, no princípio as coisas não foram tão fáceis quanto agora estavam a ser, foi preciso aferir algumas negociações quer do ponto de vista financeiro quer do ponto de vista de doentes a tratar. O hospital de Braga é um hospital polivalente. Ficará no fim de linha, do ponto de vista da diferenciação de cuidados. Isso é complexo. Houve, inicialmente, alguns daqueles doentes que estavam a ser tratados lá e eram encaminhados para outro local.

Então, do seu ponto de vista, a existência de parcerias público-privadas pode ser positiva.
Pode, no sentido de que fazem algum trabalho que é positivo.

Desde que fora da gestão clínica?
Desde que fora da gestão clínica. A gestão clínica não tem benefício para o Estado nem para a população. E tem a desvantagem de fazer alguma seleção, de não abranger tantos cuidados quanto os outros, e isso fica ultrapassado — e o Estado tem capacidade, até para poder reter e ter os profissionais dentro daquilo que é a gestão clínica.

Tem insistido na necessidade de separar bem as águas entre o público e o privado. A nova lei de bases deixa um vazio relativamente às parcerias público-privadas, para serem decididas mais tarde. Parece-lhe que se perde aqui uma oportunidade de separar as águas, como tem defendido?
A separação das águas tem a ver muito em separar o que é público e o que é privado. As parcerias público-privadas não têm de estar dentro da Lei de Bases da Saúde. A lei de bases define princípios gerais e obviamente elas podem ficar de fora.

Mas aquela carta aberta, em abril, vinha a propósito da discussão da Lei de Bases da Saúde, e pedia especificamente que as PPP ficassem fora.
Da área da gestão clínica. E ficam. Não sei qual é o texto final da lei de bases, mas tanto quanto se sabe, e se for votada na sexta-feira, as PPP não ficam abrangidas na lei de bases.

É um problema a definir mais tarde.
É um problema a definir mais tarde.

Mas isso não é empurrar esse problema com a barriga?
Talvez não.

Retirá-lo desta discussão agora.
As PPP, ou outro modelo de parcerias público-privadas, poderão eventualmente depois ser decididas em função daquilo que for a oportunidade e as necessidades mais tarde.

Esta lei de bases responde às necessidades da população, que, como diz, está mais envelhecida, com os profissionais de saúde mais desmotivados?
Espero que a lei de bases vá definir algo que permita que depois haja outras condições para que os profissionais se sintam mais gratificados por trabalhar nos serviços públicos de saúde, que tenham condições. E as condições são, inclusivamente, de diferenciação dentro dos serviços, de capacidade técnica, de serem reconhecidos nos serviços pela sua competência. Estamos a falar numa área, fundamentalmente, de hospital. E o SNS não são só hospitais, e a lei de bases também não se refere exclusivamente aos hospitais. E onde o setor neste momento se sente com maiores dificuldades é no setor hospitalar. Porque no setor dos cuidados primários as coisas correm bastante bem e a reforma que aconteceu nos centros de saúde com as Unidades de Saúde Familiares seria, eventualmente, possível, e há alguma vontade, de poder transpor para a área hospitalar modelos de gestão que permitam maior autonomia, maior reconhecimento dos profissionais na sua própria organização, que são os centros de responsabilidade dentro do hospital.

Do que conhece do texto, parece-lhe uma boa lei de bases? Ou acha que a versão de Maria de Belém — houve aquela polémica com a diferença entre a proposta do Governo e aquela que tinha sido a proposta do grupo de trabalho de Maria de Belém — era melhor?
A de Maria de Belém? Penso que é diferente. Tem ali algumas componentes que não seria tão necessário carregar numa lei de bases, que podia ser uma coisa mais curta.

Ana Jorge admite existência de PPPs na Saúde, desde que fora da gestão clínica (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Maria de Belém tinha exatamente a opinião contrária. Achava que a proposta do Governo nem sequer era uma lei de bases.
Foi uma lei de bases construída do ponto de vista jurídico, muito mais completa. Muito profunda do ponto de vista jurídico. E eu não me vou pronunciar muito sobre isso, porque não sou jurista e portanto não quero entrar nessa discussão. Não haverá necessidade de fazê-lo. Poderá ser uma lei, nessa ótica, menos completa, mas que possa responder, e possa permitir que o SNS exista, que haja um sistema de saúde com o qual o SNS se articula, quer com o setor privado, quer com o setor social. Há parcerias com o setor social que são felizes, nomeadamente os cuidados continuados, que são praticamente todos com o setor social. Há alguns privados também, e no público praticamente não existem. E que são uma boa forma de trabalhar. Portanto, que esta lei de bases permita isto e permita, fundamentalmente, fazer dentro do sistema hospitalar, que é aquele mais complexo, mais exigente, mais oneroso, reforçar os cuidados primários e reforçar muito a articulação com os setores e as especialidades dentro do hospital, mas que os hospitais possam ter maior autonomia, mais responsabilização, obviamente, mas poderem fazer a sua organização num modelo que é, no fundo, aquilo que aconteceu nas USF: poderem ter uma contratualização por pequenos serviços, que no fundo são a gestão intermédia que faz falta nos hospitais, e que possam dar um modelo de funcionamento com uma capacidade de resposta maior à população. É, no fundo, isso que se pretende.

Olhando um pouco para o que foi a discussão pública e no Parlamento à volta da Lei de Bases da Saúde, muito capturada pela questão das parcerias público-privadas, parece-lhe que foi uma discussão demasiado ideológica? Pode ter deixado fora da discussão alguns outros tópicos que era necessário discutir mais?
Acho que houve ali uma exacerbação em relação às parcerias público-privadas. Elas são quatro. A discussão foi exacerbada porque elas estavam a chegar ao fim, a parte da gestão clínica, na maioria, estava na necessidade de ser ou não revista. Continuar, não continuar, fazer concurso. Portanto, isso levou a um aumento exagerado, no meu ver, e a que muito do enfoque de toda a relação público/privado fosse à volta das parcerias. E não é. Era bom que se olhasse também para o relacionamento do público/privado além das parcerias. Por exemplo, nos meios complementares de diagnóstico, que como sabe são, grande parte deles, feitos através de convenções, no setor privado. Ou as cirurgias, também muitas transferidas pelos cheques-cirurgia para as áreas privadas. Isso tem de ser bem regulado, porque é que não é feito aproveitando a capacidade instalada do setor público. E que possa haver a diferenciação de setores, aí sim em termos dos profissionais, a importância de começar a ver uma separação clara de quem está no público e quem está no privado. Mas, para isso, obviamente que, nomeadamente na área médica, tem que haver um reconhecimento do ponto de vista financeiro. Porque será aquilo que é apontado como a maior dificuldade.

"Acho que houve uma exacerbação em relação às parcerias público-privados. Elas são quatro. (...) Isso levou a um aumento exagerado, no meu ver, a que muito do enfoque de toda a relação público/privado fosse à volta das parcerias. E não é."

Deixámos para trás o tema dos médicos e da exclusividade dos médicos. Em 2008, era Ana Jorge ministra da Saúde, começou um debate sobre a exclusividade no SNS ser obrigatória. Essa ideia acabou por ser abandonada porque não havia médicos suficientes nem dinheiro para fazer isso. Em 2009, também como ministra, acabou com a possibilidade da exclusividade no SNS. Agora, naquele relatório da primavera, diz que há que fazer o caminho para a plena dedicação ao setor. Foi um erro acabar com a exclusividade dos médicos?
A exclusividade foi criada nos anos 80, pela ministra Leonor Beleza, e nessa altura quem optasse pela exclusividade tinha um acréscimo da remuneração. Eu própria, nessa altura, optei pela exclusividade. Praticamente sempre trabalhei em exclusivo no SNS, por opção. Eu ainda estava pouco envolvida nas questões da política da saúde, mas aquilo que nós tínhamos sentido é que houve mais adesão à exclusividade do que aquilo que era a expectativa do Governo na altura. E ela foi andando, e muitos poderiam fazer essa exclusividade. Ela era feita de uma forma, e ao fim de uns anos percebeu-se que talvez não fosse a melhor maneira de a concretizar. Na discussão das carreiras, em 2009, esta possibilidade desaparece da carreira médica.

Mas porquê?
Isto foi posto em cima da mesa muito pelos sindicatos, e não havia capacidade de haver acompanhamento, do ponto de vista remuneratório. Eram mais 40% sobre o vencimento. Para que a exclusividade dos profissionais seja rentável do ponto de vista da eficiência, é preciso que os serviços estejam organizados dessa forma. A exclusividade permite-me ter horário completo no hospital ou no centro de saúde, ter atividade de manhã e de tarde. Não é só porque os médicos estão mais tempo que acontece qualquer coisa. Tem de haver toda uma organização feita com essa base. E os serviços têm de funcionar para consultas da parte da tarde. Para isso é preciso haver enfermeiros, é preciso haver administrativos, é preciso haver todo esse setor. E isso não foi acompanhado dessa forma.

E agora há essas condições para voltar?
Não. É preciso que se aponte e o caminho comece por aí. Neste momento, aquilo que acontece é que com os horários desfasados há muita atividade, mais do que havia há uns anos, a tempo inteiro nos hospitais. Há muitos hospitais que já têm atividade prolongada até às quatro, cinco, seis da tarde, com consultas, fundamentalmente, ou com atividade de bloco operatório — porque, no internamento, os doentes estão lá sempre. Isso deve manter-se. Aquilo que nós apontamos é que tem de haver uma progressão, que as pessoas possam fazer opção, que os serviços se organizem para ter atividade completa. Daí aquilo que há pouco dizia, que a organização dos serviços, nomeadamente a gestão intermédia, e a organização através de centros de responsabilidade, o façam dessa forma.

Portanto, não basta recolocar a possibilidade da exclusividade.
São coisas em simultâneo. A exclusividade tem outra questão. Se eu trabalhar num serviço privado, não trabalho para dois privados ao mesmo tempo. Mas posso trabalhar num hospital público e a 500 metros ter uma clínica de um outro a fazer a mesma coisa. E a confusão de papéis é grande. Como é que eu tenho um diretor de um serviço num hospital público, e que assume a direção clínica num hospital privado a mil metros de distância.

Acha que os médicos não separam essas águas?
Os médicos até podem separar, eventualmente, mas a população fica confusa. Eu entro num setor e ele é o meu diretor; vou a outro e já não sei onde estou. Portanto, isto não é muito transparente, não é muito linear, e a população é a mesma. Há conflito de interesses, claramente. Isto não quer dizer que as pessoas não sejam honestas no seu trabalho, não estou a pôr isso em causa. Mas não faz muito sentido. Eu corro de um lado para o outro, e hoje não tenho aqui capacidade, vá ter comigo ao vizinho do lado que eu trato do resto.

"Há conflito de interesses, claramente, quando os médicos estão no público e no privado ao mesmo tempo. Isto não quer dizer que as pessoas não sejam honestas no seu trabalho, não estou a pôr isso em causa. Mas não faz muito sentido. Eu corro de um lado por outro, e hoje não tenho aqui capacidade, vá ter comigo ao vizinho do lado que eu trato do resto."

Isso, para si, devia acabar num raio de X quilómetros?
Isso está definido. Aquilo que existe neste momento é que todos os profissionais que trabalham no setor público e no privado devem fazer um pedido de acumulação de funções. Nem todos fazem. Claramente, se posso trabalhar no mesmo raio, a população que eu assisto é a mesma. Aí, pode haver conflito de interesses. Se forem situações completamente separadas, é menor. Mas, de qualquer forma, aquilo que é importante é definir o que é a dedicação, poder estar a tempo inteiro. Obviamente que isto, de um momento para o outro, não é fácil, porque, apesar de haver muitos profissionais neste momento, não há tantos que possam fazer isso.

Como é que se resolve a questão das remunerações, que são mais altas no setor privado? Esses 40%, se voltarmos ao regime anterior, chegam para tornar a exclusividade mais atrativa?
Provavelmente não, porque no outro tempo também já não chegavam. Quando a pessoa faz essa opção, aquilo que tinha e aquilo que lhe dava do ponto de vista remuneratório era inferior a ter uma acumulação com o setor privado. Embora nessa altura não houvesse estes grandes grupos de saúde, com esta capacidade tão grande, como existem hoje. Não havia grandes hospitais privados. Havia, sim, clínicas, fundamentalmente de consulta, e havia pequenos hospitais que faziam pequenas cirurgias de pequena monta. Não havia grandes hospitais. Hoje, a concorrência no setor é muito grande. A sua diferenciação existe, já têm capacidade de fazer áreas muito diferenciadas. Portanto, concorrem buscando os profissionais que se formaram e se diferenciaram no SNS. A diferenciação dos médicos é o curso e depois a especialização. Mas, depois da especialidade acabada, ainda há todo um caminho que se tem de fazer para sedimentar conhecimentos e para se desenvolver. Hoje, o setor privado já tem alguma capacidade de formar médicos. Mas, se falar com alguns, o investimento no setor público e da obrigação de formar pessoas, de tempo para a formação, é um pouco diferente daquele que existe no setor privado. No setor privado, conta o número de consultas, os tempos, mais do que no setor público. É por eficiência, porque é lucrativo e do outro lado não tem os aspetos lucrativos.

Noutro dia, numa consulta, ouvi um médico já reformado do setor público — com muitos anos de setor público, mas que, por causa da idade, não pode continuar a prestar lá serviço —, numa consulta num privado, dizer que a grande diferença é que no privado tem tempo para os doentes e condições para os atender. Não é só uma questão de dinheiro. São, também, as condições que eles sentem que podem dar aos doentes, nomeadamente tempo.
Não sei se é bem assim, porque eles têm tempos muito contados e um número de doentes para ver.

A ex-ministra da Saúde Ana Jorge defende que se criem condições para a dedicação exclusiva dos médicos ao SNS (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Esta era a perspetiva daquele médico.
Pode acontecer. O tempo não é igual para todos os doentes. Há doentes que vejo e para o quais tenho necessidade de mais tempo, há outros para os quais tenho necessidade de menos tempo. Isso, no setor público, também é possível fazer. Desde que a agenda seja bem organizada, e às vezes nem sempre é. É preciso, também, ter disciplina naquilo que é o trabalho no setor público. Não é o ter que entrar no serviço e pôr o pontómetro, ou o registo eletrónico da entrada e da saída. Não é por aí que as pessoas cumprem mais ou cumprem menos. Cumprem se o serviço estiver organizado e estiver organizada a liderança do serviço e a capacidade de intervir. As condições físicas, as amenidades, obviamente que são maiores no setor privado. São, na maior parte, instituições mais novas, que portanto têm outras amenidades que os velhos hospitais. Mas é evidente que se compararmos o atendimento num centro de saúde e no ambulatório de um setor privado, a diferença muitas vezes não é nenhuma.

Queria perguntar-lhe por um tema mais específico em que tem estado envolvida, que é o estudo sobre o sistema de saúde militar. Não sei se esse estudo já está concluído. Que conclusões tira e que recomendações vão ser apresentadas ao Governo?
O trabalho foi entregue ao ministro da Defesa e, obviamente, tem de ser ele a divulgá-lo e não eu. Aquilo que nós tentámos fazer foi uma apreciação, no fundo o complemento a um estudo anterior que tinha sido feito há uns 13 anos, e que agora foi um refrescamento sobre a evolução do que aconteceu. Há 13 anos nós tínhamos proposto a unificação dos hospitais. Agora existe um Hospital das Forças Armadas e foi uma leitura atualizada.

Mas houve alguma coisa que a surpreendeu nessa leitura atualizada?
Um dos primeiros pontos é que o Hospital das Forças Armadas é um hospital que está bom. Não está completo naquilo que seria o necessário, mas está em fase de completar todas as valências, e tem de ser sentido como o hospital dos três ramos das Forças Armadas.

E ainda não é?
E isso às vezes não é bem.

Porque se mantém algum rivalidade entre os ramos, até a esse nível? Que era visível geograficamente nos hospitais diferentes, mas agora mantém-se?
Têm culturas muito diferentes. Um anda no ar, outro está na terra, outro está no mar. Isto dá características muito diferentes às pessoas dos três ramos.

E isso tem sido um entrave.
Não é um entrave, acho que é uma característica, é uma realidade, e tem de haver um esforço de todos — e de todos são os ramos — para que isto seja melhor para eles, terem um bom hospital do que não terem nenhum hospital bom.

[Veja aqui a entrevista completa a Ana Jorge]

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