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O veterinário André Santos é o 20.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental
"Se tiver de identificar um fator preciso, não consigo, mas talvez o luto de dois cães e uma relação complicada de acabar que tive."
"Percebi que precisava de ajuda quando vi que continuava a sentir-me triste, não estava a ver uma luz ao fundo do túnel."
"Não sei dizer se foi da sertralina e senti o efeito placebo, ou se foi a sertralina, a terapia, fazer exercício e tentar mudar a minha forma de pensar."
"Os antidepressivos não nos tiram da chuva, são um guarda-chuva. Vão proteger-nos da chuva, mas nós temos de aprender a sair da tempestade."
"Medicina veterinária tem uma pequena agravante, que é a eutanásia. E a eutanásia é muito dura. É ver as pessoas completamente sem chão."
"Numa semana podem ser duas eutanásias e mais dois animais em urgência que morrem. Tudo bem. Mas se forem duas semanas, um ano, dez anos, 12 anos..."
"O que resulta comigo é uma dieta: o que como, o que oiço, o que digo, com quem estou e se faço terapia. Tudo isso junto faz imensa diferença."
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O veterinário André Santos é o 20.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O veterinário André Santos é o 20.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

André Santos e a depressão. “A eutanásia dos animais é muito dura. Em 12 anos, já vi muitos morrer”

Os 469 mil seguidores de André Santos no Instagram já sabem: é difícil encontrar um vídeo ou uma foto do veterinário sem um cão, um gato ou outro animal de companhia que lhe passe pelo consultório. Na esmagadora maioria das vezes, são fotos e vídeos engraçados e felizes — como o que acabou republicado por uma outra página internacional, a 9GAG, com mais de 57 milhões de seguidores. Mas o médico também já se deixou ver em lágrimas, depois de ter sido obrigado a eutanasiar um gato que era seu doente no hospital.

Na verdade, o momento acabou por servir de pretexto para que André Santos falasse sobre saúde mental e da sua própria fragilidade, mas, sobretudo, para deixar um alerta sobre o impacto emocional da profissão. Os dados de um estudo publicado no ano passado mostram que mais de metade dos veterinários têm sintomas de ansiedade, depressão e stress — sintomas graves para mais de 25%. E as estimativas apontam que, entre eles, a taxa de suicídio é quase quatro vezes mais alta do que na população em geral.

Nesta entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental“, uma iniciativa do Observador e da FLAD, agora incluída no projeto Mental, André Santos conta que parte da razão está, precisamente, na eutanásia, porque “é impossível separar o papel de um veterinário no luto dos donos”, que pode ser mais ou menos complicado consoante a forma como todo o processo é gerido. “Será que fiz o correto? Será que comuniquei aos donos da forma correta?”, questiona muitas vezes. E explica: “Estamos ali num consultório que está embebido em emoções muito fortes, negativas, que são normais. E numa semana podem ser duas eutanásias e mais dois animais em urgência que morrem. Tudo bem. Mas se forem duas semanas, um ano, dez anos, 12 anos de profissão, que é o que eu tenho… já vi muitos animais morrer e já eutanasiei outros tantos.”

A forma como comunica com os donos dos animais nos momentos de más notícias foi, aliás, um dos sinais que o levaram a perceber que precisava de ajuda. Há cerca de cinco anos, depois do fim de uma relação longa e da morte de dois cães da família, começou a sentir-se permanentemente triste e a chorar demasiadas vezes, por exemplo a caminho de casa, à noite, no final de um turno no hospital. Durante algum tempo, achou que era normal, mas, à medida que os meses iam passando, concluiu que não ia conseguir sair daquele estado sozinho.

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Diagnosticado com depressão, fez terapia e tomou um antidepressivo, descobriu a meditação e outras ferramentas que o ajudaram a contrariar os pensamentos mais negativos. E percebeu que, muitas vezes, precisa de recorrer a uma espécie de dieta: “O que como, o que oiço, o que digo, com quem estou, se faço terapia. Tudo isso junto faz imensa diferença.”

[Veja aqui a entrevista completa a André Santos]

Quando é que começou a perceber que alguma coisa não estava bem consigo?
Tive uma fase mais negra há uns quatro, cinco anos, que ficou ainda mais negra — à semelhança de uma grande parte das pessoas, e até mais nos homens — com uma relação duradoura que acabou. Mas foi um acumular de situações.

Antes desse gatilho, as coisas já não estavam bem?
Já não estavam bem, mas não era algo de que eu tivesse consciência. Temos o trigger [gatilho] e o que acontece é que descamba tudo. E nós, mais tarde, fragmentando as coisas, percebemos que há várias caixas que podiam ter sido arrumadas de melhor forma. No trabalho, felizmente, faço genuinamente aquilo que gosto de fazer, mas é um trabalho que também tem um lado negro grande.

Já vamos a esse lado do trabalho e do impacto que tem para um veterinário, em termos de saúde mental. Antes, o que quer dizer com o “período negro”? Era um período de tristeza, de frustração, ou era daquelas fases em que achamos que já não sentimos nada?
Acho que o grande alerta é quando quase já há uma ausência de tristeza, um não sentir as coisas. O que acontece é que temos fases, à semelhança de toda a gente: problemas de saúde, financeiros, de relações pessoais, com amigos, o que quer que seja. O que aconteceu comigo para depois ter ali uma parte mais difícil na minha vida foi uma boa relação, que durava há muito tempo, que acabou. E isso, depois, anexado a tudo o que eu não conseguia gerir. Porque, parecendo que não, quando temos o apoio de alguém é mais fácil gerir aquilo que não vai estando bem na nossa vida. É mais difícil quando deixamos de ter esse apoio e temos de fazer o luto numa relação. E, nessa altura, também perdi os meus dois cães, que eram cães que tive com os meus pais. Portanto, tudo junto, deu-se ali um período mais complicado para mim. Se tiver de identificar um fator preciso, não consigo, mas talvez ali o luto de dois cães e uma relação complicada de acabar. Isso fez com que tivesse de procurar ajuda.

E foi logo ali que percebeu, quando a relação acabou, quando estava a fazer esse luto, que se calhar precisava de procurar ajuda ou ainda esteve ali um bocadinho a tentar perceber se superava?
Tive ali três, quatro meses em que sempre achei que era normal. É normal estarmos mal por termos períodos mais chatos na nossa vida, piores. Temos de chorar, é normal. Eu também sempre tive facilidade em falar com a minha família ou com amigos pontuais, falar sobre as coisas.

"Às vezes assumimos que as pessoas que estão próximas de nós, como nos conhecem bem, devem saber como é que nos sentimos. E hoje em dia vejo que não, nós é que temos o dever de manifestar sempre como nos sentimos."

E falava?
Sim. Percebi que precisava de ajuda quando vi que continuava a sentir-me triste, não estava a ver uma luz ao fundo do túnel. Continuava a sentir-me triste, a acordar triste. Sou um pessoa bem disposta, de bem com a vida. Foi quando comecei a acordar triste que percebi que talvez precisasse de ajuda naquela fase, porque não estava a conseguir gerir isto muito bem, estava a afetar o meu trabalho também. E então foi aí que decidi: “OK, preciso de procurar ajuda porque talvez precise de ajuda — ou, se calhar, não.” Fui com todas as dúvidas que as pessoas têm: “Se calhar, isto é normal. Se calhar, não é. Mas eu, sozinho, não consigo perceber. Portanto, vou procurar alguém que me possa ajudar.”

Quando falava sobre isso, o que é que amigos ou familiares lhe diziam? “Se calhar é melhor procurar alguém” ou “isso é normal, dá tempo”?
Nunca ninguém me disse para procurar ajuda. Não por serem contra, mas porque essa parte do chorar de manhã ou quando estava sozinho, ou no caminho do trabalho para casa, à noite — às vezes tenho horários mais noturnos, a sair à meia noite ou às dez, e lembro-me e, no caminho para casa, chorava ou estava triste — não comentava tanto com as pessoas à minha volta. Dizia que estava triste, mas não entrava nesses pormenores.

Porque é que não detalhava as coisas mais duras?
Sinceramente, não tenho muito tabu com a vulnerabilidade. Se for preciso dizer que choro, não tenho vergonha. Mas, na altura, não falava porque, se calhar, eu próprio não achava necessário ir a esse pormenor. Estava enganado, mas a verdade é que não foi por sentir que as pessoas não receberiam isso de braços abertos ou que eu sentisse vergonha. Nunca foi por isso, mas talvez por inconsciência e por achar “OK, estou triste, mas não preciso de dizer ‘estou triste, choro aqui, choro ali'”. Acho que isso ajuda muitas vezes. É importante, na minha perspetiva, definirmos o que é que é tristeza, o que é que é solidão, o que é ansiedade, o que é um estado mais depressivo. Darmos um nome às coisas, objetivarmos. Acho que ajuda muito as pessoas que estão do nosso lado — não só a nível profissional, mas também aos nossos amigos, familiares — a compreenderem-nos um bocadinho melhor. Às vezes assumimos que as pessoas que estão próximas de nós, como nos conhecem bem, devem saber como é que nos sentimos. E hoje em dia vejo que não, nós é que temos o dever de sempre manifestar como nos sentimos perante determinada situação e não assumir que as outras pessoas têm de nos conhecer a esse ponto.

Na altura, antes de ter procurado ajuda e de ter feito esse trabalho que o leva hoje a dizer que “é preciso dar um nome às coisas”, conseguia dizer “esta tristeza”, “esta solidão”, “esta ansiedade”? Ou era tudo uma grande confusão emocional?
Não, não. Era: estou triste, choro, já passaram três, quatro, cinco meses e não estou a conseguir melhorar este estado. Já não é uma relação que acabou, já não é um luto de um animal que eu perdi — isso, às vezes, pode demorar anos, mas não é normal eu estar sempre no mesmo estado durante aquele tempo. Mas só conseguia manifestar: estou triste. Choro e estou triste.

E era funcional? Conseguia, ainda assim, fazer o esforço de se levantar, mesmo que a chorar, e fazer o seu dia a dia?
Sim, felizmente nunca deixei progredir muito. Houve certas coisas que, mesmo não me apetecendo fazer, obrigava-me: exercício, comer relativamente bem, falar com amigos, trabalhar. O que sentia no trabalho, que às vezes é muito emocional, é que tinha menos, não paciência, mas menos capacidade de ter uma carga que faz parte do meu trabalho para com os donos, precisamente nas más notícias. Vi tudo isto a ser abalado, mas nunca deixei de fazer as coisas, se calhar porque intervim comigo muito cedo, o mais cedo possível. Como também trabalho na área da saúde, se calhar pensei :”Não estou conseguir gerir isto, vou procurar ajuda já, porque isto daqui um ano vai estar pior.”

"Quando tinha de trabalhar um assunto, era quando não queria falar daquele assunto, quando me sentia reativo com a psicóloga, sentia vergonha. E pensava: 'OK, se é isso que estou a sentir, é disso que tenho de falar'."

Quando vai procurar ajuda, faz exatamente o quê? Fala com alguém que conhecesse, da psiquiatria ou da psicologia? Marca uma consulta?
Foi sorte. Tinha batido no carro de uma cliente e deixei lá um papel com o meu número. E essa cliente, que também tem uma cadela schnauzer, é psicóloga. E eu disse-lhe que queria experimentar. Ela disse-me: “Olhe, André, eu não posso ser sua psicóloga porque sou sua cliente e quero continua a ser sua cliente, mas conheço a pessoa indicada para si” — que, até hoje, é a minha psicóloga.

E o que é que disse? Disse-lhe: “Acho que estou deprimido ou que tenho uma depressão” ou só que precisava de falar?
Sim, disse isso. Já sabia que precisava mesmo de falar com alguém. Nós sentimos que é difícil, “ninguém sente o que eu sinto, isto é muito meu, não vou conseguir explicar”, sentimos que somos uma gota no oceano. Mas, pelo menos a minha psicóloga, tudo aquilo que vê nas pessoas — porque nós não somos o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro caso —  bate certo. É muito constante. Não estamos nunca sozinhos e tudo tem uma solução — ou quase tudo tem uma solução. Então, sempre tive essa perceção de que aquilo que eu sentia — de estar sozinho a nível sentimental, emocional — de certeza que a pessoa que me recebesse e me ouvisse ia identificar noutros casos que teve. Porque acontece isto numa doença renal como numa doença do foro mental, numa ansiedade, numa depressão. Nós não somos únicos, não estamos sozinhos em nenhuma parte. É muito raro isso acontecer.

Na primeira consulta, de repente está à frente de alguém que não conhece lado nenhum e que quer saber do mais íntimo que o André tem. Como é que isso foi para si?
Nada difícil. Eu sou um bocado emocional, deito cá para fora. Acho que, à semelhança de qualquer especialidade de medicina ou de terapia, houve duas partes. A primeira foi: “OK, eu estou mal, vamos resolver este problema. Porque é que eu estou mal?”, associado aqui muito concretamente à relação que acabou e ao luto dos animais. Vamos resolver isso.

Era o problema mais agudo.
Era o problema mais agudo daquilo que estava acumulado. E daí a importância da terapia continuada. Cheguei a fazer terapia de duas em duas semanas e hoje em dia faço um checkup de quatro em quatro meses ou de cinco em cinco. Não se passa nada específico, mas faço continuamente. E depois, o que nos melhora enquanto pessoas, o momento em que começamos a conhecer-nos um bocadinho melhor — e, às vezes, não conseguimos fazer isso sozinhos — é quando estamos bem, ou estamos melhor, e querermos perceber porque é que isto se desencadeou, porque é que, noutras fases da vida, se complicaram determinadas situações que não se deviam ter complicado, e conhecermo-nos um bocadinho melhor, os nossos traumas, o nosso pequeno ser. A partir daí, conseguimos gerir as situações da vida de uma forma muito mais leve, muito mais fácil.

  • A entrevista foi gravada na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, em Lisboa
    FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
  • FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
  • FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Funcionou logo à primeira? É muito comum não haver química imediata com o psicoterapeuta. Consigo funcionou? 
Tenho essa sorte até hoje. Não posso generalizar, mas eu “oiço” bem quando as coisas não estão bem. Quando tinha de trabalhar um assunto, era quando não queria falar daquele assunto, quando me sentia reativo com a psicóloga, sentia vergonha. E pensava: “OK, se é isso que estou a sentir, é disso que tenho de falar.” E, às vezes, é difícil. Um exemplo: se há uma coisa que nos aconteceu, na qual sabemos que fomos vitimizados por alguém, é fácil ouvirmos que essa pessoa nos fez isto e aquilo. Quando depois passamos para o passo seguinte, que é sobre nós e sobre o que nós podemos melhorar, é aí que vamos ouvir o que não queremos, vamos navegar em mares que desconfortáveis, porque são os nossos problemas. E aí também temos de saber ter a dinâmica e a vulnerabilidade de dizer “OK, é aqui que tenho de melhorar”. Isso é um passo difícil, é um passo em que não queremos puxar muito, que mexe com o nosso ego. Mas acho que, feito da maneira certa, é fácil. Pelo menos comigo. Tenho muita sorte de te ter a mesma psicóloga, sempre tive empatia com ela, muita química. É uma excelente profissional e também é super nova. Até hoje, tenho sorte.

Começa pela psicoterapia, com a psicóloga, mas depois também tem contacto com a psiquiatria. Foi porque sentiu necessidade? Foi a psicóloga que sugeriu?
A psicóloga nunca sugeriu, foi tudo mais ou menos na mesma altura. Tinha uma amiga que é psiquiatra e ela disse-me: “Não estás a conseguir gerir isto, toma sertralina”, que é dos medicamentos antidepressivos mais comuns, com menos efeitos secundários.

Isso não o incomodou?
Não, nada. Não. Indo à ciência da coisa, eu sabia o que aquilo fazia. Não aumenta os níveis de serotonina, mas aumenta a biodisponibilidade — a pouca que temos, em caso de depressão, fica mais disponível para ser utilizada pelo corpo.

Mas, às vezes, em casa de ferreiro, espeto de pau. Diz-se que os médicos são os piores doentes porque não se deixam tratar. E o estigma dos medicamentos, muitas vezes, pesa. Não lhe pesou a si?
Não. Ouvi uma vez uma expressão de que nunca mais me esqueci, e eu concordo: os medicamentos antidepressivos, seja em que estadio da depressão for, não nos tiram da chuva, são um guarda chuva. Eles vão proteger-nos da chuva, mas nós temos de aprender a sair da tempestade sozinhos. E o que aconteceu foi que eu também gosto de ler e de me informar sobre as coisas. Não tenho nenhuma formação na área da psicologia ou da psiquiatria, apenas estudo porque gosto. E aquilo que percebi — não querendo fazer disto uma frase polémica, é ciência, há artigos disponíveis em todo o lado — é que, em fases iniciais de depressão leve ou moderada-leve, a diferença entre fazer medicação ou não fazer medicação é nenhuma. É placebo. Isto são estudos, não sou eu a ser polémico com nenhuma frase. O efeito placebo não é nada mais nada menos do que o nosso corpo a reagir a alguma coisa — neste caso, uma doença do foro psiquiátrico — sem nada. Mas é auto-capacitante. Nós é que pensamos que temos uma molécula que nos ajuda e isso espoleta as nossas emoções e o nosso cérebro.

"Não sei dizer se foi da sertralina e senti ali o efeito placebo, ou se foi sertralina, mais a terapia, mais fazer exercício, mais tentar mudar a minha forma de pensar — foi quando comecei a meditar. Acredito que tenha sido tudo uma ajuda, uma conjugação."

Estamos a ser tratados, por isso, naturalmente vamos sentir-nos melhor.
Mas é placebo. No fim do dia, estamos a ser tratados por nós. Nas depressões leves, que foi o que eu tive, não há evidência científica de vantagem da medicação.

Mas sentiu esse efeito?
Já não me recordo bem do tempo, talvez tenha tomado durante quatro a seis meses, mas por ter noção de que já fazia uma dose baixa e por ter noção daquilo que eu estava a enfrentar e que havia uma forte possibilidade de haver um efeito placebo, comecei a entrar noutras coisas alternativas, que hoje em dia não têm nada de esotérico, é ciência. Quando falamos de pensamento positivo ou gratidão, entramos logo num patamar de “isto é esotérico”. É muito fácil. Já a minha mãe dizia “tens de pensar positivamente”. Hoje em dia, isto é ciência. Hoje em dia, percebemos que o pensamento é a linguagem do nosso cérebro e as emoções são a linguagem do nosso corpo. Ou seja, nós temos determinados pensamentos e, imediatamente, o sistema límbico, que estimula a produção de hormonas, vai estimular uma emoção — tem a ver com a serotonina, dopamina, oxitocina, o que quer que seja. Essa emoção, ao longo do tempo, torna-se o nosso mood, o nosso temperamento. Esse temperamento, ao longo do tempo, torna-se a nossa personalidade. Portanto, indiretamente, a forma como pensamos diariamente vai afetar quem somos, com o tempo. E nós, até aos 35 anos, estamos pré-formatados para os nossos traumas, para a nossa vida toda. Mas a vantagem disto é que o nosso cérebro é um órgão com uma neuroplasticidade muito grande. É difícil desmecanizar isto tudo que temos recorrentemente ao longo de 30 anos ou 35 anos, mas é fazível.

Então, quando começou a fazer a sertralina, mesmo que fosse efeito placebo, sentiu diferença? Começou a sentir-se um bocadinho melhor? Quando acordava, continuava a acordar a chorar?
Senti uma melhoria.

E depois começou a juntar essas outras ferramentas para prosseguir com essa melhoria?
Exato. Não sei dizer se foi da sertralina e senti ali o efeito placebo, ou se foi sertralina, mais a terapia, mais fazer exercício, mais tentar mudar a minha forma de pensar — foi quando comecei a meditar. Não comecei tudo no mesmo dia, mas o bolo foi todo no mesmo mês e meio, dois meses. Por isso, não sei se foi de tudo ou de uma coisa em específico. Acredito que tenha sido tudo uma ajuda, uma conjugação.

O que é que a meditação, por exemplo, lhe trazia? Era, sobretudo, para gerir a ansiedade, mais do que a tristeza?
Há quem goste de ler e há quem diga “a minha meditação é exercício”. Não, isso é mindfulness. Meditação é estar sentado, ou como quisermos, mas em silêncio, a olhar para dentro de nós, para as nossas emoções. Isso ajuda a percebermos como é que nos sentimos e ajuda a darmos um nome às coisas. Eu acordava triste, mas não sabia se era ansiedade, se era a tristeza, se era depressão, se era culpa. Não sabia. E é difícil. Fazia uma meditação de dez minutos, guiada por uma pessoa a falar. Desses dez minutos, se calhar estava a “meditar” um minuto ou dois. No resto, o nosso cérebro começa a pensar em tudo e mais alguma coisa. Faz parte. O difícil é tornar isso um hábito. Demorei mais de 30 dias a dizer “tenho de me sentar dez minutos por dia”. Se eu lavo os dentes três ou quatro vezes por dia durante dois minutos, porque é que não hei-de meditar dez minutos, que faz parte da minha saúde mental? Faço isto há três anos e, honestamente, só ganhei gosto em meditar há uns quatro ou cinco meses. Demorou muito tempo. Criei o hábito, são só dez minutos, sento-me ali comigo e cada vez é mais fácil começamos a olhar para dentro de nós, começarmos a perceber que tipo de emoções estamos a sentir, termos resposta para muitas coisas. A verdade é que consigo sair dali melhor do que entrei, com mais pensamentos positivos, mais feliz.

"Acho que isso foi o que tirei de melhor, ou continuo a tirar, de fazer este trabalho: ter uma maior capacidade de passar as fases mais complicadas que nos surgem naturalmente na vida. Isso, no fim do dia, é o melhor de termos estas ferramentas."

Quando deixou de tomar a sertralina, fez o desmame direitinho?
Houve uma altura em que parei. Não me recordo se eram dois meses e eu fiz um mês de desmame, mas fiz menos tempo do que o desmame previsto.

Tinha essa vontade de se libertar e seguir com as vias que tinha encontrado e que o estavam a fazer sentir bem?
Sim, sim.

E, no meio disso, em que momento começou a pensar “isto está melhor, eu estou melhor”? Demorou muito tempo?
Não. Acho que continua a ser normal termos dias melhores e dias piores, está tudo bem com isso. Eu continuo a chorar, às vezes, mas é saudável, é uma purga do organismo. Mas nunca mais aconteceu levantar-me triste sem um motivo.

Nesse percurso, teve alguma recaída — achar que já estava a acordar vários dias sem chorar e, de repente, por qualquer razão, acordar outra vez péssimo, triste e confuso? Ou foi uma linha reta?
Não é linear, não é sempre a melhorar. Mas, talvez por já ter algumas ferramentas, não durava nem tanto tempo nem consigo lembra-me de um período, depois de ter acontecido, em que me sentisse assim mal. Acredito que tenha tido dias melhores e dias piores, mas nunca uma fase. Depois disso tive, sei lá, uma relação que acabou, também perdi uma pessoa, é normal, faz parte da vida e temos direito ao nosso luto, à nossa tristeza fisiológica normal da vida. Mas nunca mais tive aqueles episódios de pensar “não sei o que é que se está a passar para eu estar triste”,  isso nunca mais me aconteceu.

Recupera, faz o seu trabalho para isso, mas depois a vida continua a acontecer, as relações continuam a acabar, perdemos pessoas. Sente que saiu desse percurso de recuperação mais capaz de lidar com as coisas que iam surgir?
Sim, definitivamente. Acho que isso foi o que tirei de melhor, ou continuo a tirar, de fazer este trabalho: ter uma maior capacidade de passar as fases mais complicadas que nos surgem naturalmente na vida. Isso, no fim do dia, é o melhor de termos estas ferramentas. Vamos todos sentir partes más da nossa vida, faz parte. Termos estas ferramentas que nos ajudam a superar isso é o que de melhor se tira deste processo.

Durante a entrevista, o veterinário esteve sempre acompanhado pela cadela Azeitona

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Já deu por si a, quando acontece qualquer coisa, acordar mais triste e pensar “não, André, não vais cair nesse buraco outra vez”?
É precisamente isso. Acho que é importante pensarmos e recebermos todas as emoções, boas e más, e filtrarmos. Mas vamos falar sem ser de um episódio específico, uma perda de um animal, uma doença, o que quer que seja. Não estou a falar disso, estou a falar só de um dia aleatório em que estamos mais tristes: é tão simples como pararmos de estar tristes, pararmos de ter esses pensamentos. Foi isso que a meditação me ensinou. Às vezes acordamos com a neura, mas sem nenhuma justificação. Somos nós que começamos a ruminar pensamentos e possíveis cenários do passado ou do futuro. E simplesmente estamos ali, caímos naquele loop e, de repente, isso produz hormonas e já estamos com más emoções, uma má manhã. Se nós pararmos isso na fase inicial, há muito menos probabilidade de termos dias maus sem uma justificação para isso. Todos os dias vão ser proporcionalmente melhores. Pelo menos, é o que acontece comigo.

Na fase em que estava pior, uma das dificuldades para si era ter de lidar com o lado emocional dos donos, sobretudo quando era preciso comunicar más notícias. Tinha menos disponibilidade emocional para perder o tempo que tinha de perder com as pessoas. A sua profissão, na verdade, está sujeita a um impacto muito grande na saúde mental. Como é que se protege desse impacto emocional?
Eu trabalho no AniCura Estoril Hospital Veterinário, que até há uns tempos era o Hospital Veterinário do Restelo, ou seja, foi adquirido por um grupo sueco, o AniCura. Já existe outra mentalidade nesses países e, quando o hospital foi adquirido, a primeira coisa que aconteceu foi que, na sala dos médicos — onde os médicos e enfermeiros almoçam, que tem uma cozinha e uma sala de estar —, colocaram no frigorífico a informação de que havia apoio psicológico gratuito.

Isso nunca lhe tinha acontecido durante todos os seus anos de trabalho?
Não. Acho que agora, em Portugal, começa a ser diferente, como noutros países — Estados Unidos, Reino Unido — começaram a ter uma maior perceção, já há alguns anos, do apoio psicológico. E acho que todas as ferramentas de que falei são ferramentas importantes, mas aquilo que se calhar é mais unânime é a terapia. É muito importante que os veterinários, e os enfermeiros também, façam terapia de quando em vez para gerir bem este tipo de emoções. Não quero entrar em comparação de quem tem mais, quem tem menos, não é isso. Ser veterinário é uma profissão dura. Comparando com outras profissões da área da saúde, temos a frustração de não conseguir tratar os doentes como na medicina humana e temos, às vezes, a parte salarial, que também não é remunerada como poderia ser. Não que me possa queixar, mas temos turnos meio malucos — até há uns anos, fazia noites e tinha os turnos, é assim para quem trabalha num hospital. E é muito trabalho, é stress, porque mexemos com vidas. Mas, depois, veterinária tem uma pequena agravante, que é a eutanásia, que não existe em medicina humana. E a eutanásia muito dura. Há dois grandes tipos de eutanásia. Um é a eutanásia de um cachorro que chegou atropelado — ontem estava ótimo, chegou agora atropelado, está vivo, mas não tem condições e temos de eutanasiar. Para os donos, de repente, estava tudo bem e vão ficar sem o animal. O outro é a eutanásia nas doenças crónicas, que é muito dura porque nem os próprios veterinários sabem quando é o dia. Por exemplo, a doença articular crónica: um Golden Retriever com 16 anos, com as análises bem e super bem disposto, mentalmente bem, mas não anda porque tem problemas articulares crónicos. Já não tem qualidade de vida, faz xixi no mesmo sítio, já tem escaras. Nesse caso, porque é que a eutanásia é hoje? Porque é que não é amanhã? Não tenho resposta. Porque é que não é daqui uma semana? Passa-se um mês, passam dois e os donos não conseguem desfazer o laço, porque é muito difícil. E cabe ao veterinário também ter um papel aí, de dizer quando é o dia. Porque, se for amanhã, ele está bem, conscientemente, mas não tem qualidade de vida. Se me perguntar “daqui um ano?”, não faz sentido. Nós vamos procrastinando, adiando. E são difíceis essas eutanásias.

"É quase um clichê, mas fico, de certa forma, feliz por ter passado por aquela fase, porque descobri muitas coisas, muitas ferramentas que hoje utilizo — e só as utilizo porque passei por aquela fase muito complicada."

Porque é que é difícil, para si, em termos emocionais? E porque é que sente necessidade de proteger a sua saúde mental? Porque lhe cabe um papel que preferia não ter ou porque faz espelho da dor daquelas pessoas na sua própria dor pela perda dos seus animais?
Acho que é um bocadinho de tudo, mas é, sobretudo, ver as pessoas completamente sem chão. Quem tem animais sabe. Há muita gente que não tem animais porque não quer passar por isso. É uma dor
devastadora. E os veterinários não são psicólogos, nem nem pouco mais ou menos, mas é impossível separar o papel de um veterinário na eventual complicação do luto dos donos. Porque os veterinários, quer queiram quer não, podem ajudar muito na diferenciação de ter um luto complicado ou um luto, não vou dizer saudável, mas normal, que é o tempo que dura e a severidade — porque o luto pode evoluir para uma quantidade grande de doenças psicológicas. Primeiro, os donos têm de sair da clínica com a ideia, com o sentimento de que fizeram o melhor para os animais. Não pode surgir uma réstia de dúvida. Não estou a falar em termos clínicos. Clinicamente, eu consigo justificar tudo. Mas isso não me interessa, se os donos não saírem do hospital e sentirem “isto está a ser super duro, mas foi o melhor”. Se ficar ali uma semente de “será que devia ter feito isto, será que devia ter esperado mais um tempo?”, isso pode desenvolver um luto muito complicado. E os veterinários, com a experiência e com a empatia que têm com os donos, desenvolvem individualmente essas capacidades. A mim, o que me afeta numa eutanásia é que estamos ali num consultório que está embebido em emoções muito fortes, negativas, que são normais. E numa semana podem ser duas eutanásias e mais dois animais em urgência que morrem. Tudo bem. Mas se forem duas semanas, um ano, dez anos, 12 anos de profissão, que é o que eu tenho… já vi muitos animais morrer e já eutanasiei outros tantos. Portanto, tenho de ter a capacidade de, também eu, ter a minha ajuda. Às vezes é difícil perceber. Será que fiz o correto? Será que comuniquei aos donos da forma correta? Por tudo isto, é importante haver tanto juntas médicas, como nós chamamos, com outros colegas para discutir os casos, como a terapia para filtrarmos as nossas próprias emoções. Mesmo sabendo que faço o meu melhor trabalho, às vezes preciso de ajuda.

Continua a fazer terapia quando sente que precisa, uma espécie de check up só para ver se está tudo bem. O que é que a terapia lhe dá?
Dá-me uma opinião imparcial sobre determinadas situações da minha vida. A minha terapeuta não é muito de passar trabalhos para casa, mas, não foi assim há tanto tempo, numa situação específica, disse-me: “André, quero que escrevas uma carta a ti próprio quando tinhas sete ou oito anos.” E eu até pensei que ia escrever determinadas coisas, associadas a algumas coisas de que eu não gostava em mim quando era criança e que depois se desenvolveram mais tarde. E não fazia ideia, mas percebi quando escrevi uma carta a mim próprio que não gostava muito de mim quando era criança. Não me lembrava — ou não me lembro ainda, estou a fazer esse trabalho — de ter lembranças minhas a rir, bem disposto. O meu cérebro apagou isso, em forma de defesa, e eu não fazia ideia. Portanto, há coisas em que precisas de estar mal para ir à terapeuta, mas eu realmente vou descobrindo coisas sobre mim que me vão ajudando a estar melhor na minha vida quando estou bem. Para fazer terapia, não tenho necessariamente de estar com um problema. Se estiver tudo bem, sem algum problema específico que queira desfragmentar, digo: “Teresa, podemos ter um checkup, uma consulta?”. Às vezes por coisas com o meu pai, com a minha mãe, para perceber algumas dinâmicas. Comigo, o que resulta é uma dieta. E a dieta é: o que como, o que oiço, o que digo, com quem estou, se faço terapia. Tudo isso junto faz imensa diferença no nosso dia a dia. Sinceramente, sou uma pessoa muito, muito mais feliz. É quase um clichê, mas fico, de certa forma, feliz por ter passado por aquela fase, porque descobri muitas coisas, muitas ferramentas que hoje utilizo — e só as utilizo porque passei por aquela fase muito complicada. Portanto, não mudaria, continuaria a ter aquela fase. E se tiver de ter outras para depois melhorar, também estou aberto a isso.

Quanda olha para essa fase difícil, pensa “OK, já passou, já estou bem” ou tem a tentação de ir olhando por cima do ombro com medo de que alguma coisa possa ser um gatilho para o levar para um lugar daqueles outra vez?
Medo não tenho, mas os gatilhos estão lá. É a vida. E o que é um gatilho para si pode não ser um gatilho para mim — e vice-versa. Temos é de conhecer aquilo que desencadeia em nós alguma reatividade, que mexe um bocadinho com o nosso ego, para depois conseguimos combater isso e perceber: “Isto sou só eu com medo de alguma coisa que aconteceu no passado e enraizou-se. E dá perfeitamente para desfragmentar. Repito: primeiro temos de identificar os nossos gatilhos e aquilo que desencadeia emoções mais negativas; depois, com tempo e trabalho, dá para desfragmentar completamente isso tudo e sobrevivemos bem. Continuo a ser reativo a determinadas coisas, sou é muito menos reativo e consigo perceber que aquela reatividade vem de determinados aspetos ou de coisas que me foram ditas ou que eu senti. E, tendo consciência disto, não é um emaranhado de emoções, é só um emaranhadozinho de emoções.

“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento que agora faz parte do Mental, a secção do Observador dedicada a temas da Saúde Mental. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças. Pode ler aqui as entrevistas anteriores:

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

Uma parceria com:

Fundação Luso-Americana Para o Desenvolvimento Hospital da Luz

Com a colaboração de:

Ordem dos Médicos Ordem dos Psicólogos

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