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O apresentador Fernando Alvim é o 19.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental
"A partir de meia hora, 20 minutos, é muito difícil para mim estar focado, concentrado numa coisa. Tem de haver ali várias manobras de distração."
"É muito difícil ler um livro até ao final. Estou sempre a fazer vários cursos e eles estão sempre a meio, salto de um para o outro."
"Se calhar, isso também se reflete na forma como tenho os meus amigos, as minhas relações. É sempre uma espécie de confusão generalizada."
"Sinto que vivo num turbilhão."
"Acho que me lembro do momento. Lembro-me de pensar "isto é possível, conseguir ler este livro até ao fim". Isto pode mudar a nossa vida."
"A minha pergunta é: o que é que eu teria sido se isto se tivesse descoberto desde o início? Será que teria sido uma outra pessoa?"
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O apresentador Fernando Alvim é o 19.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O apresentador Fernando Alvim é o 19.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Fernando Alvim e o défice de atenção. "Se tivesse descoberto isto no início, a minha vida teria sido melhor"

Fernando Alvim reconhece agora os sinais que já tinha em criança, mas o diagnóstico só chegou há cerca de um ano. Foi medicado e "a vida mudou". Percebeu-o quando conseguiu ler um livro até ao fim.

Há muito que alguns amigos brincavam com ele: “O melhor exemplo de défice de atenção é o Alvim, estão lá os sinais todos”, diziam. Ele, porém, nunca viu, nunca pensou nisso. Até ao dia em que leu o livro de um psiquiatra, de quem se tornou amigo, e que lhe confirmou o diagnóstico.

Hiperatividade e défice de atenção são perturbações habitualmente diagnosticadas nas crianças, mas, para o locutor e apresentador de televisão, autor do programa Prova Oral, na Antena 3, esse diagnóstico só aconteceu há cerca de um ano. Isto embora sempre tenha tido aquilo que descreve como uma vida muito agitada, em que não fazer nada era quase fisicamente impossível.

Nesta entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental“, uma iniciativa do Observador e da FLAD, agora incluída no projeto Mental, Fernando Alvim conta que sempre foi incapaz de estar concentrado numa só coisa durante mais de 20 ou 30 minutos e que sente que vive num turbilhão permanente. Para contornar o problema, habituou-se a criar estratégias, como “listas para tudo e mais alguma coisa” ou uma chave com código para poder abrir a porta de casa, de todas as vezes em que se esquece da chave lá dentro.

Nunca sofreu muito com isso — achou que era como era —, mas diz que o medicamento que começou a tomar depois do diagnóstico mudou-lhe a vida. E lembra-se do momento em que percebeu isso mesmo: quando conseguiu ler um livro até ao fim. Não se deixa atormentar pelo passado, mas lamenta só ter descoberto essa “porta” agora. E admite que, às vezes, faz uma pergunta: “O que é que eu teria sido se isto se tivesse descoberto desde o início? Será que teria sido uma outra pessoa?”

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[Veja aqui a entrevista completa a Fernando Alvim]

O seu diagnóstico foi muito tardio, mas consegue olhar para a altura em que era uma criança, quando estes sintomas costumam ser mais identificados, e ver sinais da perturbação de hiperatividade e défice de atenção?
Acho que, como qualquer criança, tive as minhas perturbações, mas, possivelmente, com esta distância, se calhar entendo algumas delas como resultado daquilo que já seria o meu défice crónico de atenção.

Que sinais eram esses? Era uma criança esquecida, agitada?
Sempre fui uma criança muito agitada. Se calhar é o ritmo da vida de todos, mas lembro-me de que, enquanto miúdo ou enquanto adolescente, tinha de fazer sempre muitas coisas. Nunca fui o tipo de pessoa que, sei lá, fizesse uma coisa à tarde e que ali ficasse. Havia aquele ciclo, que era o ciclo dos cafés, em que as pessoas ficavam a tarde inteira num café, a conversar. Eu nunca fui esse tipo de pessoa porque não conseguia. Sentia, não só, que era um desperdício estar ali a tarde toda — e com razão —, como o meu próprio corpo exigia que eu dali saísse. Então sempre fiz isso.

Quando diz “o meu próprio corpo exigia que eu saísse dali”, era uma coisa física?
Era uma coisa física e mental. Acho que as coisas não se alteraram assim tanto, ainda sou assim. É quase impossível estar a fazer absolutamente nada, que é uma coisa que me agrada muito — essa ideia de não estar a fazer absolutamente nada —, mas depois não consigo. Isto quer dizer, por exemplo, que uma das coisas que mais gosto de fazer, que é ler, é muitas vezes interrompida. Esse ato é interrompido porque vou ao telemóvel, vou fazer qualquer coisa. Diria que não consigo estar mais de quinze, vinte minutos concentrado numa só coisa. Exceto quando estou a trabalhar, aí não há alternativa.

Nessa altura, quando ainda era uma criança, em que é que isso tinha consequências mais chatas? Na escola, por exemplo, era difícil estar atento a uma aula e ficar ali sentadinho aqueles cinquenta minutos?
Era, era muito difícil. Ainda é. O meu défice de atenção é francamente inibidor porque, sei lá, a partir de meia hora, vinte minutos, é muito difícil para mim estar focado, concentrado numa coisa. Portanto, tem de haver ali manobras de distração várias para eu me concentrar.

Isso fazia com que fosse um mau aluno?
Não era um mau aluno, mas acho que podia ser muito melhor se conseguisse concentrar-me. Aliás, na verdade, por incrível que possa parecer, era um aluno um bocado marrão, no sentido em que, antes dos exames, fechava-me em casa, ficava a estudar. Mas depois não devia ser muito esperto porque não tirava assim grandes notas, tirava notas medianas.

Mas conseguia fazer isso, ficar em casa a estudar.
Conseguia, que remédio, era a única forma de passar nos anos letivos.

Com distrações pelo meio.
Tinha muitas distrações pelo meio, mas tentava. Tentava que não prejudicasse em tudo o resto. Levantava-me, ia fazer qualquer coisa, voltava. Mas, se virmos bem, se calhar hoje temos uma geração que, toda ela, faz aquilo que eu estou a dizer. Portanto, não me considero um menino especial. Acho que agora, sobretudo com as novas tecnologias, os miúdos desenvolveram uma espécie de dependência tecnológica que não lhes permite estarem mais de cinco minutos atentos ao que quer que seja. Não sei como é que será ser professor nos dias atuais, mas sou de uma família onde toda a gente — irmãs, pais — são professores. E acredito que não deve ser nada fácil ser professor no tempo atual, porque temos uma turma inteira à nossa frente que eu apostaria que 80% estão agarrados ao telemóvel e que nem sequer estão a ouvir aquilo que o professor está a dizer.

"Se calhar isso também se reflete na forma como tenho os meus amigos, as minhas relações, acho que é sempre uma espécie de confusão generalizada."

Voltando a essa altura, não houve em nenhum momento, na escola ou em casa — ainda para mais numa família de professores —, alguém que tivesse colocado a questão, “se calhar, o Fernando não é só agitado ou só distraído, se calhar há aqui qualquer coisa”?
Infelizmente, não, nunca veio essa conversa. Acho que as pessoas que me rodeavam sempre analisaram, que é aquilo que normalmente acontece, que eu era uma criança irrequieta. Era só isso, pronto. E o défice de  atenção, no fundo, tem características que acabam quase por ser inatas às crianças.

As pessoas viam-no assim. E o Fernando, também se via assim?
Sim, também me via também, nunca houve um problema.

Depois veio a adolescência e a juventude. Teve reflexos também na maneira como se relacionava com os outros, nas relações com os amigos, nas relações amorosas?
Gostava de dizer que sim, mas, na verdade, depois não sei se aquilo que me aconteceu foi normal, se é algo que acontece na vida das pessoas, de uma forma convencional ou não. A minha vida sempre foi muito agitada. De volta à imagem inicial: é ter sempre a memória de uma vida muito agitada, de uma vida mais agitada do que era comum. Isto pode parecer um dado adicional que não está ligado, mas o facto de eu ter mota faz com que possa ter uma vida também mais agitada do que o convencional. Chego mais rápido a todo o lado e, portanto, faço muito mais coisas numa manhã do que um ser humano normal, pelo facto de não perder tempo a estacionar, nem no trânsito. Repare, o que eu quero é fazer muitas coisas.

Fazer muitas coisas e levá-las até ao fim ou em algum momento percebeu que estava sempre a fazer coisas diferentes, mas começava uma tarefa, um projeto, e depois não terminava e seguia para o próximo?
É isso mesmo. Por exemplo: tenho de ler sempre vários livros ao mesmo tempo. É muito raro chegar ao final de um livro, embora compre cada vez mais livros, não sei como nem porquê, mas a verdade é que isso é uma característica. Falei com outras pessoas que têm o mesmo problema que eu e eles dizem exatamente o mesmo, que é muito difícil lermos um livro até ao final, ficamos ali o tempo todo. Estou sempre a fazer vários cursos e eles estão sempre a meio, salto de um para o outro. Pelo menos, é bom. Pelo menos, tento. Podia nem sequer tentar, mas a verdade é que estou sempre a fazer isso. E, se calhar, isso também se reflete até na forma como tenho os meus amigos, as minhas relações, acho que é assim sempre uma espécie de confusão generalizada. Atenção: eu não desgosto.

Muita gente a entrar e a sair?
Não diria isso, que eu até tenho os mesmos amigos, um núcleo duro bastante sólido, mas sinto que vivo num turbilhão. Estive doente nas últimas vinte e quatro horas, estive de cama, coisa que já não acontecia há muitos anos, mas a forma como a minha vida se alterou por causa destas vinte e quatro horas… Faltei a muitas coisas, tive de avisar as pessoas, porque não conseguia sair da cama. E pronto, a minha vida é isto.

  • A entrevista foi gravada na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, em Lisboa
    FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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Quando é que começou a ter consciência desse turbilhão? Via-se como uma criança irrequieta, fazia muitas coisas, mas a dada altura começa a ter a perceção de que isso também tem um lado menos agradável? Há algum momento em que esse turbilhão lhe aparece à frente e pensa que se calhar isto não é uma coisa muito boa?
Não, na verdade não há. Sempre pensei que era assim, pronto, que era a minha personalidade, que era o que era, o meu modo de vida. Há assim tantas pessoas, não é? E acho sempre usei esse meu modo de vida, de certa forma, para o humor, que é um domínio onde eu navego bastantes vezes, e, portanto, isso dá-me uma certa graça. Ninguém quer ver uma pessoa lenta, as pessoas lentas não têm grande graça. Nas pessoas que vivem num turbilhão de coisas, normalmente, a probabilidade de terem mais graça é superior. Não quer dizer que isso aconteça, mas sempre vi isso como uma vantagem e não como uma desvantagem. E, na verdade, continuo a dizer que não é totalmente uma desvantagem. Tem vantagens ser assim. Depois, as desvantagens são que eu gostava de acabar mais livros, gostava de acabar mais filmes, gostava de acabar mais cursos e, sim, gostava de ter esse foco. Na verdade, o que me aconteceu é que, há cerca de um ano, recebi um email por parte de um autor, que é o Gustavo Jesus. Ele ia lançar um livro, que se chama 300 Mil Anos de Ansiedade, e perguntou se eu queria apresentar o livro.

Um psiquiatra.
Sim, exatamente. Eu disse que sim, que queria ler.

Já se conheciam?
Não nos conhecíamos de lado nenhum. Há ali uma série de coincidências interessantes, porque o Gustavo Jesus foi candidato a apresentador do Curto Circuito [da SIC Radical] durante o tempo em que eu estava lá, não deixa de ser curioso. E ele convidou-me apenas porque gostava de mim e do meu trabalho, e achava que eu era a pessoa certa para apresentar o livro dele, não foi porque visse em mim qualquer sintoma de défice de atenção. Aquilo foi na Cinemateca, correu muito bem, ficámos amigos e, depois de ler o livro dele, disse-lhe: “Mas está aqui tudo, estão aqui todos os sinais, de ansiedade, não é? Muito daquilo que eu sou está refletido neste livro que escreveste.” E ele disse: “Ansiedade deves ter, agora défice de atenção tens de certeza, porque eu sou quase especialista nisso e é notório.” E é verdade, já tinha tido um outro amigo, também psiquiatra, que me tinha dito exatamente o mesmo.

Não ligou?
Dessa vez não liguei.

Porquê?
Não sei, não me pareceu demasiado académico, esse meu amigo. [risos]

Mas houve aí alguma coisa de “não é nada disso, não tenho problema nenhum”?
Não, porque eu sou hipocondríaco, portanto não deixo nunca que uma informação dessas passe assim, de ânimo leve. Portanto, fiquei ali a pensar. Esse meu amigo, que é psiquiatra, de cada vez que estava comigo dizia “não tenho a menor dúvida, tu tens isto”. E falava com uma amiga, até brincavam muito com isso, diziam: “O melhor exemplo de défice de atenção é o Alvim, a apresentar programas e não sei o quê, está ali tudo, estão lá os sinais todos.” Mas eu não vi, não é? Nunca pensei nisso. Então, o Gustavo Jesus abriu-me essa porta. A porta de eu conhecer algo que podia mudar a minha vida — e acho que tem mudado.

"As pessoas não se importam de tomar um comprimido para asma, mas depois importam-se de tomar um comprimido para o défice de atenção. Em tudo o que tem a ver com questões mentais, parece que há um um estigma, há uma desconfiança."

Depois disso, o que é que fez? Marcou uma consulta?
Sim, marquei uma consulta. Eu e o Gustavo temos uma coisa curiosa, de dois em dois meses fazemos um almoço para falar sobre o mundo. É uma espécie de consulta-almoço e, logo aí, ele pergunta-me como é que eu estou, de que é que eupreciso. E, basicamente, é isso que eu faço, não tenho feito muito mais. Tenho sentido melhoras grandes. Confesso que estava a tomar a medicação para este défice de atenção, mas deixei de tomar há dois ou três meses.

Porquê?
Sei lá, com medo de estar viciado, para não me viciar naquilo, é sempre esse medo.

É medo ou é estigma?
As duas coisas. É aquela coisa de “não vou estar dependente disto a vida toda”, nós pensamos sempre nisso. E, na verdade, quando páras, sentes logo, ficas pior.

Mas o psiquiatra disse-lhe que aquilo era medicação para a vida toda?
Não, não. Disse um ano.

E quanto tempo fez?
Fiz quase um ano.

Que diferenças notou quando começou? Quando me contou que tinha défice de atenção, disse-me: “Agora estou a tomar Ritalina, como os miúdos.” Quando o psiquiatra lhe diz que ia tomar isso, foi esquisito para si?
Não, não foi nada esquisito. As pessoas não se importam de tomar um comprimido para asma, mas depois importam-se de tomar um comprimido para o défice de atenção. Em tudo o que tem a ver com questões mentais, parece que há um um estigma, há uma desconfiança. Aquilo que eu próprio disse, não é? Deixei de tomar para não me viciar, mas será que, se tivesse asma, deixava de tomar para não me viciar? Não, tomava na mesma. Se tenho asma, é para o resto da vida, é só isso. Aquilo que senti com os medicamentos, sobretudo, foi um foco muito maior, algo que nem sequer sabia que era possível.

Como assim?
Não sabia que era possível estar a ler um livro e conseguir acabá-lo. Não sabia que era possível estar com um foco muito maior nas coisas. Importante: mesmo que algumas pessoas notem que eu tenho défice de atenção, mesmo a nível profissional, a nível profissional consigo estar muito focado, porque é uma hora. Estou ali uma hora e depois volta tudo ao normal.

Na Prova Oral não lhe acontece, a dada altura, perceber que se distraiu com alguma coisa e já está a pensar noutra coisa?
Se calhar, isso às vezes acontece, mas acontece-me muito menos do que na vida real — como se a Prova Oral não fosse a vida real, não é? Mas acontece-me muito menos do que no contexto não laboral. Isto é, quando estou a trabalhar, acho que se aciona aqui um botão qualquer que me salva. Ainda bem, porque imagine-se que eu tinha assim um défice de atenção total da minha atividade. Ninguém me queria. Eram entrevistas divertidas, mas não sei se seria muito bom para a pessoa que estava a ser entrevistada. Eu tenho de estar ali num foco muito, muito grande quando faço uma entrevista. Até porque as entrevistas, mais do que da nossa preparação, dependem muito do nosso grau de atenção àquilo que a outra pessoa diz. Eu, pelo menos, penso muito desta forma.

"A perceção pública que as pessoas têm — a grande maioria, não é toda a gente — é que eu faço muita coisa. E faço, de facto, mas sofro muito com isso também."

Os efeitos que diz que sentiu quando começou a fazer o tratamento foram imediatos?
Não sei quantificar isso, mas, sei lá, um mês. No espaço de um mês, já sentia alterações.

Lembra-se do momento em que pensou “isto já é da medicação”?
Acho que foi a ler um livro. Acho que me lembro desse momento. Não me lembro de qual era o livro, mas lembro-me de pensar “isto é possível, conseguir ler este livro até o final”. E isso é muito curioso. Percebemos como isto pode mudar a nossa vida. A minha pergunta é: o que é que eu teria sido se isto se tivesse descoberto desde o início? Será que teria sido uma outra pessoa?

Faz essa pergunta muitas vezes para si?
Não faço muito, porque não vivo atormentado com essas questões. Até porque não posso mudar, já está no passado, não há nada que eu possa fazer. O que eu posso fazer é no futuro.

Mas já encontrou alguma resposta?
Acho que a minha vida teria sido um pouco melhor.

Em quê?
Na realização de determinadas coisas que isto, de um certo modo, me impediu. Embora a perceção pública que as pessoas têm — a grande maioria, não é toda a gente — é que eu faço muita coisa. E faço, de facto, mas sofro muito com isso também. Se calhar, fazia menos e acabava mais coisas.

Quando diz que sofre com isso é porque está sempre a fazer essas coisas, mas tem a consciência de que muitas delas não acaba?
É isso, sim. Algumas delas não consegui acabar, é verdade. Estas coisas que eu não consigo acabar nunca são do âmbito profissional. Normalmente, as do âmbito profissional eu consigo. Ficam ali de fora, num departamento à parte. Não sei como é que consigo, é um dom sobrenatural que devo ter. Mas só a nível profissional. Tudo o resto, depois, é uma confusão total.

Essa conversa que tivemos sobre o défice de atenção foi antes de uma entrevista na Prova Oral, a propósito do livro do Labirinto. Quando o Fernando chegou, a primeira coisa que me disse foi: “Esqueci-me do telefone e esqueci-me do livro em casa. Tinha as anotações e agora não tenho nada.”
Isso é uma coisa muito curiosa. Eu esqueci-me desta entrevista também, começam a ser provas em demasia. [risos] Mas a verdade é que uma das coisas que mais me irritam, sobretudo pelo facto de viver num 3.º andar sem elevador, é a quantidade de vezes que me esqueço de algo que é fundamental levar. O telemóvel: hoje em dia, não é possível sairmos de casa sem telemóvel, porque é um instrumento de trabalho, de comunicação, não é? Não quero ser alarmista, mas, em 30% das vezes, esqueço-me do telemóvel lá em cima. O que me revolta, que eu já vou para novo, já me custa. É um castigo demasiado pesado. Se fosse no elevador, tudo bem, não é um castigo assim tão pesado no elevador. Agora, é um castigo pesado subir ali três lanços de escadas. Então, há uma espécie, quase, de revolta interior: “Isto não me aconteceu outra vez… Como é possível ter-me esquecido disto?”

Fernando Alvim é apresentador de televisão, locutor e humorista. Foi diagnosticado há cerca de um ano com perturbação de hiperatividade e défice de atenção

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

As chaves de casa?
Tenho airtags em todo o lado, óbvio, mas tenho também uma chave automática, de forma a que, se eu fechar a chave lá dentro, abro-a com um código, porque isso já me aconteceu várias vezes, como devem calcular. E não tenho as chaves separadas, isso não existe. A chave da mota está com a chave de casa. Está tudo junto porque — e isso já me aconteceu — se as duas coisas estão separadas, vou esquecer-me de uma, claro.

Mas se perder uma, perde todas.
Pois perco e não quero perder. A minha vida não é fácil, sabem? [risos]

Isso significa que, ao longo dos anos, foi criando estratégias para contornar o défice de atenção?
Claro. Nós pensamos sempre que fazemos coisas que são únicas e que são especiais — e depois percebes que outras pessoas que têm exatamente os mesmos sintomas fazem o mesmo que tu. E, normalmente, as pessoas que têm défice de atenção têm quase todas o vício das listas de coisas. Eu tenho listas de tudo e mais alguma coisa: listas de objetivos, listas de coisas para comprar, listas de ideias. Para tudo o que possas imaginar, eu tenho listas. Tenho o Google Calendar e tento ali que nada falhe. Mas, muitas vezes, o que me acontece é que tenho estas listas de coisas, mas depois esqueço-me. E agora perdi-me. Nesta conversa, perdi-me. O que é que eu queria dizer?

As pessoas que o conheciam há mais anos, eventualmente até da infância, estranharam, ficaram surpreendidas com o diagnóstico?
Na verdade, só agora é que falo abertamente sobre isso. Já disse na rádio, mas não é uma conversa que tenho habitualmente com os meus amigos. Mas, sim, não faço qualquer tabu em relação a isso, até porque não é uma doença. Ter défice de atenção não é muito estigmatizante.

Mas o seu caso é muito particular: tem um diagnóstico tardio, que é uma coisa que começou a acontecer cada vez mais, vermos pessoas diagnosticadas com défice de atenção só na idade adulta. Aconteceu-lhe ter outras pessoas a dizer: “Olha, eu também tenho o mesmo”?
Sim. Tenho uma amiga, que é Carolina Torres, que sofre exatamente do mesmo, défice de atenção. Tem todos os sinais que eu tenho. E também é apresentadora. Acho que ela ainda consegue ser pior do que eu. Nós damo-nos muito bem, mesmo, e quando estamos juntos rimos bastante das coisas que sofremos, porque é tudo igual. Estava a falar com ela desta última vez e estávamos a falar da história dos livros, ela também anda com muita dificuldade em acabar um livro. Há muitos sinais, muitos sinais. Ah! Já sei o que ia dizer há pouco. É que, muitas vezes, lembro-me de apontar uma tarefa, acho que estou a apontar a tarefa no Google Calendar e não estou.

Na sua cabeça, está a apontar, mas depois já está a fazer outra coisa qualquer?
No outro dia entrevistava o José González e ele contava — e isto já me aconteceu — , que teve um sonho que era uma ideia muito, muito boa. E ele apontou a ideia, para não a perder. O problema é que, quando acordou, percebeu que apontou a ideia no sonho.

"Um dos medos que eu tinha nesta coisa dos medicamentos que se tomam para coisas da esfera do domínio mental era: 'Será que agora vou ficar um tontinho, lentinho? Será que todo este meu ritmo vai acabar?' E claro que não aconteceu."

Deixou de tomar a ritalina agora, fez uma pausa para testar.
Mas vou voltar.

Quando parou de tomar, sentiu diferença?
Senti, senti. E também deixei de tomar porque fui à farmácia, para aí há um mês, e estava esgotadíssimo. Não sei o que se está a passar em Portugal, mas este tipo de medicamentos está a ser sucesso.

Mas diz que vai voltar porque sente que faz diferença para si?
Faz toda a diferença para mim e, sobretudo, para as pessoas me rodeiam. Eu quero tornar o espaço onde habito saudável. [risos] Agora sem qualquer lado jocoso: acho que a minha vida melhora quando tenho medicamentos que me podem ajudar, nomeadamente ao meu foco e à forma como quero ter uma organização maior na minha vida.

Já agora, a propósito disso: quem é que nota mais a diferença? O Fernando ou as pessoas à sua volta?
Acho que sou eu, claramente. Um dos medos que eu tinha nesta coisa dos medicamentos que se tomam para coisas da esfera do domínio mental era: “Será que agora vou ficar um tontinho, lentinho? Será que todo este meu ritmo vai acabar?

E não aconteceu.
Não, claro que não aconteceu. E esse é sempre o medo das pessoas. “Ai, não, não sei o quê, o meu filho se toma isso, não quero…” Há muitos pais que não admitem sequer essa possibilidade. E eu respeito, obviamente, as opiniões de todos, mas acho que alguns pais, se calhar, nunca pensaram que podiam estar a prejudicar os seus filhos ao não o fazerem. Bem, eu não vou culpar os meus pais, porque nunca os ouvi falar de tamanha coisa, mas a verdade é que, quando houve um indício de, eu gostava de ter tido uma consulta quando tivesse cinco ou seis anos e houvesse logo um médico a dizer: “Ah! Sofre de défice de atenção, tem de tomar este medicamento.” E tenho a certeza de que a minha vida tinha ido para um rumo totalmente diferente. Não sei se melhor, atenção. Diferente seria. Não sei se melhor, mas acredito que sim, por acaso.

Acha que seria melhor?
Acho, acho. Acho que seria.

“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento que agora faz parte do Mental, a secção do Observador dedicada a temas da Saúde Mental. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças. Pode ler aqui as entrevistas anteriores:

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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Com a colaboração de:

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