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O investigador Miguel Herdade é o 18.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental
"Escondi a depressão de mim próprio, tentei fugir daquilo, fingir que não a tinha. Porque não é fácil lidar com ela"
"Na altura, não só não se falava do tema, como eu não tinha abertura à minha volta sequer para ter alguém com quem falar sobre isto"
"De repente, o meu corpo deu-me um sinal de que se tinha partido. Perdi 10 quilos em dois ou três meses. Foi uma coisa muito violenta"
"A medicação foi das coisas mais importantes que aconteceram na minha vida"
"Lembro-me de, um dia, acordar e não estar triste. Só que a última vez que me tinha sentido assim tinha sido há tantos anos que uma pessoa esquece-se"
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O investigador Miguel Herdade é o 18.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O investigador Miguel Herdade é o 18.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Miguel Herdade e a depressão. "Um rapaz não manda uma mensagem a um amigo a dizer 'estou triste' ou 'não estou bem'"

Falar com os outros era tão difícil como aceitar o diagnóstico. O momento mais difícil para o investigador terá sido quando sentiu que algo nele se tinha partido. A ajuda médica fez toda a diferença.

O medo, a vergonha, a sorte. Miguel Herdade vive neste triângulo desde os 19 anos. Começou a perder peso sem perceber a razão. Os problemas de estômago, as tremuras nas mãos e até as crises de ansiedade foram sempre entendidos como problemas físicos. Sentiu medo ao ouvir da médica de família que, afinal, sofria de depressão, teve vergonha de revelar à família e aos amigos que tinha uma doença mental, mas diz que teve a sorte de ter nascido um privilegiado.

Atualmente diretor associado no Ambition Institute, no Reino Unido, e governador de uma escola primária em Londres, é também diretor e cofundador da Orquestra Sem Fronteiras, em Portugal e Espanha. Com 31 anos, é uma referência nos estudos sobre desigualdades no acesso à educação e integração social.

Até aqui, e enquanto a doença era uma realidade diária, poucos à sua volta perceberam ou souberam que Miguel Herdade passou cerca de nove anos da carreira académica e profissional a esconder os ataques de pânico cada vez mais intensos e angustiantes e a lutar contra uma doença que teve dificuldade em aceitar: “Ainda não consigo explicar que, de todas as coisas que fiz na minha vida, talvez nunca tenha havido nada tão difícil como, algumas vezes, sair da cama de manhã.”

Nesta entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental“, uma iniciativa do Observador e da FLAD, agora incluída no projeto Mental, Miguel Herdade garante que foi a sorte e o contexto familiar privilegiado que lhe permitiram conhecer o psiquiatra que o salvou. Mas assume que o estigma prevalece e, mais do que isso, que ninguém está preparado para ouvir dizer que teve uma doença mental.

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[Veja aqui a entrevista completa a Miguel Herdade]

Vamos começar naquela consulta de medicina familiar, aos 19 anos, em que a médica lhe diz que tem uma depressão. Como é que se chegou aí?
De facto, na altura, foi um acontecimento bizarro. Eu tinha uma série de sintomas que me levaram a uma consulta de medicina geral e que jamais adivinharia que iria dar um diagnóstico destes. Tinha perdido muito peso muito rapidamente. Tinha problemas a comer, tinhas imensas dores de estômago, tinha — claro — ansiedade muito alta, mas que não percebia o que era, na verdade.

Achava que estava relacionada com os sintomas físicos.
Sim. E dei por mim naquele consultório de uma médica de família, de medicina geral, em que ela me disse isso frontalmente e de uma maneira muito construtiva. Mas, de facto, é muito difícil para um rapaz de 19 anos encarar e ter a certeza sequer de que está a querer perceber o que a médica lhe está a dizer. Na altura, a médica explicou-me: “Tens aqui uma série de comprimidos que é importante tomares e vais ter de vir cá daqui a pouco tempo.” Por coincidência, aquilo aconteceu um bocadinho antes do verão. E claro que um jovem aos 19 anos, antes do verão, tem a cabeça noutro sítio, totalmente. E, se calhar, durante as semanas seguintes ia ter uma vida que não se compaginava nada com aquilo. Aquela realidade de “isto é o que tu tens” é uma realidade que, aos 19 anos, para um rapaz, é muito difícil de, sequer, compreender. Se calhar, pior: de querer compreender e de querer aceitar esse diagnóstico. Portanto, foi muito difícil. O resultado não foi brilhante.

Não foi brilhante porquê? Porque quase recusou o diagnóstico? Não cumpriu o que a médica lhe disse?
Sim, não cumpri no sentido em que eu próprio senti que tive dificuldade em aceitar e, se calhar, compreender. Tinha 19 anos, isso já foi há alguns anos. Acho que, na altura, não só não se falava do tema, como eu não tinha abertura à minha volta para ter alguém com quem falar sobre isto. E, por outro lado, para eu próprio conseguir encará-lo.

Mas pensou o quê? Pensou que era “maluquinho”, como tanta gente assume aqui nestas entrevistas, que sente que é assim que passa a ser visto?
Não, nunca achei que fosse “maluquinho”, mas lembro-me de ficar muito assustado. Lembro-me de, de repente, dar um nome à coisa e isso ser muito assustador, sobretudo sendo um nome tão pesado: depressão.  E isso causou-me ainda mais sofrimento e uma certa paranoia, mas eu não sei se, como uma forma de defesa natural, não quis mesmo aceitar aquilo. Tentei fugir daquilo. E houve um episódio muito estranho. Passado umas semanas, estava de férias com alguns amigos e havia uma médica na casa onde eu estava. Ainda hoje não sei explicar isto, mas ela chamou-me à atenção: “Ó Miguel, reparei que estás a tomar uns comprimidos, e não podes guiar quando tomas estes comprimidos.” Fiquei com uma vergonha tão grande. Estavam os meus amigos ali todos à minha volta e eu tentei esconder-me no buraco mais profundo que pude encontrar. Infelizmente, talvez esse buraco mais profundo fosse dentro de mim próprio e, portanto, não consegui resolver aquilo ali. Não tinha estrutura à minha volta com quem eu pudesse falar, que pudesse sequer olhar e perceber: “Eu tenho abertura com esta pessoa para lhe dizer ‘eu não consigo fazer isto hoje’.” Não tinha o vocabulário, não tinha a informação à minha volta. Acho que a reação natural de um jovem de 19 anos perante um desconhecido tão marcante como essa palavra que é a depressão foi a reação mais natural que eu podia ter tido, que foi tentar escondê-la de mim próprio. E isso, claro, foi um grande erro.

Lembro-me de, anos mais tarde, quando de facto consegui procurar ajuda e já tinha maturidade para perceber como é que podia ser ajudado, acordar um dia e não estar triste. Só que a última vez que me tinha sentido assim tinha sido há tantos anos que uma pessoa se esquece.

Uma grande vergonha, foi o que sentiu na altura. Ainda assim, foi tomando a medicação.
Fiz uma coisa muito parva, que foi ir tomando a medicação e guardei alguns dos medicamentos comigo, porque sabia que ia ter ataques de pânico no futuro e então deixei-os ali de parte. Para emergências mesmo. E lembro-me de que estes medicamentos, passado alguns anos, já estavam fora de prazo, mas dava-me uma segurança tê-los comigo. E eu só os tomaria em situações de emergência, que infelizmente se foram sucedendo a uma cadência cada vez maior e com mais regularidade. Mas lembro-me de que me dava uma segurança enorme. É absurdo, mas lembro-me de os ter, por exemplo, no tablier do carro, ou na minha mochila, ou na gaveta do trabalho, mais tarde, quando comecei a trabalhar. De certa forma, dava-me uma segurança saber que eles estavam ali, mas não estava a ser acompanhado por nada nem por ninguém.

Então tomou a medicação, não partilhou esse diagnóstico com ninguém, mas teve efeitos práticos essa medicação? Sentiu-se melhor? Sentiu-se diferente mesmo nessa fase inicial da vergonha e de tentar resolver isso consigo próprio?
Os medicamentos — e voltei a sentir isso mais tarde, quando voltei a ser medicado — têm de facto um efeito. Aquilo é forte!

O que é que fazem?
Tenho alguma dificuldade em descrever essa altura. Sei dizer, mais tarde, o que me fizeram. Mas a medicação, para mim, foi das coisas mais importantes que aconteceram na minha vida, nesse aspeto. Lembro-me de, anos mais tarde, quando de facto consegui procurar ajuda e já tinha maturidade para perceber como é que podia ser ajudado, acordar um dia e não estar triste. Só que a última vez que me tinha sentido assim tinha sido há tantos anos que uma pessoa se esquece. É aquele sentimento de profunda tristeza e de um mundo muito sombrio onde há sempre uma sombra sobre nós, onde há sempre quase que um peso que nos puxa muito para baixo e que não nos deixa sair da cama, não nos deixa ir trabalhar, não nos deixa, às vezes, partilhar a alegria com outras pessoas ou celebrar coisas boas. Mas lembro-me de a medicação ter esse efeito. E, se calhar, por isso é que sempre me agarrei aos comprimidos, mesmo quando eles já estavam fora do prazo, porque sabia que, numa emergência, havia um (eram vários tipos de comprimidos) em específico que me acalmava. Saber que ele estava lá dava-me uma certa segurança.

Mas quer dizer que o Miguel, aos 19 anos, com ou sem nome dado àquilo que sentia, já era uma pessoa triste?
Eu era, certamente, uma pessoa triste. E, claramente, houve um momento na vida em que, de repente, o meu corpo deu-me um sinal de que tinha partido. Perdi 10 quilos em dois ou três meses. Foi uma coisa muito violenta. Aí foi o momento em que talvez a coisa tenha partido. Tive uma úlcera no estômago, vomitava muitas vezes por mero stress, sofria imenso a seguir a saídas à noite. O álcool fazia-me — ainda hoje me faz, na verdade — um mal terrível. E, quando se tem aquela idade e se é rapaz, tem-se aquela masculinidade toda à volta: “Vamos beber copos, vais virar um copo, não sejas maricas, tens de beber isto!” Porque depois há toda essa linguagem entre os rapazes, e nós certamente não fazemos por mal, mas que é completamente inaceitável. Estamos ali num meio que é muito masculino, muito pouco aberto para falarmos uns com os outros, não é? Um rapaz não manda uma mensagem a um amigo a dizer “estou triste” ou “queres vir beber um café comigo porque eu não estou bem?”. Os rapazes não fazem isso. Ou, pelo menos, no meu tempo não faziam. Espero que hoje já façam.

Quer dizer que, com a tristeza e com esses incómodos físicos todos que tinha, era bom aluno, tinha amigos, tinha uma vida social a que podemos chamar normal. A depressão não lhe tirou isso?
Não, tive muita sorte. Sempre tive um grupo de amigos, curiosamente o mesmo desde muito pequenino, e isso, de facto, é uma âncora muito importante na minha vida. Outras pessoas terão outras âncoras que, se calhar, eu não tive, seja na família, seja no ambiente em que vivem, porque vivem num determinado sítio na cidade ou numa aldeia, ou por causa de uma religião, por exemplo. As pessoas têm as suas âncoras. Eu tive sempre essa dos meus amigos. Mas uma coisa muito difícil é que eu próprio tentei esconder a depressão de mim. Portanto, jamais poderia sequer considerar que eles iam ter a capacidade de perceber o que era isso. Se eu próprio não tinha — eu, que vivia isso, que estava a sofrer com isso —, quanto mais as pessoas à minha volta.

E acha que as pessoas à sua volta não perceberam que não estava bem?
Acho que nem sequer era uma expectativa justa que elas percebessem. Acho que elas podiam perceber e lembro-me de pessoas na família, lembro-me de uma avó muito querida, com quem cheguei a viver uma temporada. Claro que ela dizia aquelas coisas de “este faz tudo ao contrário, quando é para estar a dormir está acordado e quando é para estar acordado está a dormir!”, que é uma coisa que as pessoas que têm depressão fazem muito. As pessoas não dizem isso com maldade, é uma forma de mostrar preocupação. Digo eu, não sei. Acho que os amigos fazem a mesma coisa: “Anda lá! Vai ser giro! O futebol, não sei quê…” E fazem com a melhor das intenções. Portanto, não posso ter a expectativa de ser compreendido em relação aos outros se não tenho essa mesma expectativa em relação a mim próprio. Escondi a depressão de mim próprio. Tentei fugir daquilo. Tentei fingir que não a tinha. Porque não é fácil lidar com ela. E, portanto, não penso que seja uma expectativa justa que os outros à minha volta a tentem compreender, quando eu próprio não consigo.

Já disse que teve ataques de pânico. Lembra-se do primeiro? Lembra-se de algum mais marcante? Como é que eles foram aparecendo e como é que os identificava?
O primeiro foi especialmente patético, porque achei que estava morrer, porque é isso que se sente quando se tem um ataque de pânico. Então fui para o hospital sozinho.

Aí por volta dos 19 anos?
É possível. Fui para o hospital e eles estiveram lá, faziam coisas, não sabia o que se passava. Não sei precisar, penso que uma pessoa amiga veio ter comigo, preocupada, e eles mandaram-me sentar numa cadeira. Perceberam o que era. Explicaram-me o que era e lembro-me de ter ficado bastante indignado. “Vocês não estão a perceber: eu não consigo respirar, eu não consigo mexer o meu corpo.” E eles: “Não, nós percebemos o que tens e a cura é ficar aqui sentado.” E assim foi. Mas, lá está, é um episódio, vou para o hospital, mas não há nenhum tipo de acompanhamento, não há forma de ligar isso ou haver alguém que, passado uma semana, me liga e diz “olha, tiveste este episódio, agora se calhar vamos ter de controlar isto”. Isso não acontece. O sistema não está preparado para isso e, se calhar, mesmo os nossos laços familiares, os nossos laços de amizade ou mesmo nos locais de trabalho, nas escolas e tudo o mais, não estão. Na altura não estavam mesmo, de todo. Acho que se tem feito um grande caminho desde aí. Tenho 31 anos agora, portanto já passou algum tempo e acho que hoje em dia as pessoas são mais… Aliás, eu estou aqui, não é?

Estamos aqui.
Portanto, acho que hoje em dia se vai construindo um bocadinho esses caminhos.

Mas aí não havia sequer esse mecanismo, nem essa situação de achar que estava a morrer o fez tomar consciência de que era preciso levar mais a sério a depressão.
Sinceramente, eu levei aquilo a sério. Tinha muito medo, muito medo. Acho que uma pessoa tenta esconder isto de si próprio. Eu sabia — para além de me terem dito —, sentia aquilo todos os dias, mas é como lhe digo: chega um ponto em que passa um ano, uma pessoa tem N ataques de pânico, tem N dias em que sair da cama parece a tarefa mais difícil do mundo. Não consigo explicar que hoje, de todas as coisas que fiz na minha vida, que foram várias, talvez nunca tenha havido nada tão difícil como algumas vezes sair da cama de manhã, quando estive muito doente. Essa dificuldade é mesmo difícil de encarar, sobretudo quando estamos rodeados de imensa gente que gosta de nós, que se preocupa connosco e que olha por nós e que partilha o local de trabalho connosco ou os bancos da faculdade. Mas que eles próprios não têm essas ferramentas para lidar com isso. Da mesma maneira que eu não tinha as minhas próprias ferramentas para saber lidar.

A doença foi-se agravando, então. E os ataques de pânico foram aumentado? A frequência, a intensidade?
Isso é curioso. Sabe que eu acho — pelo menos, o que senti em relação a mim — que aquilo era o meu normal. Aquela profunda tristeza, aquela dificuldade em comer, sabia que havia determinadas situações em que o meu corpo ia reagir de uma determinada maneira. E acho que, ao fim de uns anos, esqueci-me, no sentido em que é o que eu sou. E, na verdade, vai sempre continuar a ser o que eu sou. Não sei se nós, que temos depressão, nos curamos. Digo que tive alta, e digo que esse foi um dos momentos mais felizes da minha vida. Mas sobre a depressão, acho que era o Winston Churchill que dizia (acho que é mentira, mas é uma daquelas histórias que é boa para contar): I have a black dog and he is always with me. Ou seja, eu tenho um cão preto e ele está sempre ali. Sinto ainda hoje que a depressão está sempre ali. E isto porque passa a ser, de facto, um bocadinho do que nós somos, da mesma maneira que alguns traumas que tenhamos tido quando éramos mais novos ou as situações que vivemos enquanto crescemos, as pessoas com quem nos damos, acabam por marcar aquilo que somos. Não sinto que seja uma pessoa errada ou não normal por ter tido ou ter uma depressão. Acho que as pessoas que têm uma depressão são pessoas normais. Aquilo é o que elas são. São pessoas normais, são pessoas que têm um problema que felizmente se pode resolver muitas vezes, como foi o meu caso. Aquilo fazia parte do que eu era, mas a verdade é que, como lhe estava a dizer, foi-se tornado normal. Às tantas, já sabia: eu se fizer isto, já sei o que vai acontecer a seguir.

Havia dias inteiros em que não conseguia fazer absolutamente nada. Não tenho a menor dúvida disso. E talvez tivesse de haver dias em que tinha de compensar esses dias que tinha de atraso.

O que é que era? O que é que lhe provocava ataques de pânico?
Havia circunstâncias parvas. Por exemplo: já sabia que se tivesse uma noitada e bebesse muito álcool, com uma grande probabilidade, no dia a seguir, ia dar-me um mal-estar que não é o normal de uma pessoa que tem uma ressaca. Não é esse o problema. É um mal-estar no sentido de uma profunda solidão e de uma depressão muito, muito mais profunda ainda. Não sei porque é que é. Se calhar, algum psiquiatra poderia explicar um dia, não sei se o álcool é um depressivo, não sei do que é. Isso eram coisas menores. Mas havia situações de muito stress à minha volta, que podia ser no trabalho, podiam ser familiares, podiam ser — como todas as crianças de 19 anos — desgostos amorosos ou talvez situações de instabilidade na faculdade, em casa, na família, que podiam dar essa dificuldade. É interessante estar a dizer isso dos sintomas irem piorando porque, por um lado, uma pessoa não tem essa noção. Tem um ataque de pânico, faz parte do que eu sou. Enfim, tenho um ataque de pânico, escondo-me. Lembro-me de estar na faculdade e ir para a casa de banho esconder-me, porque estava a ter um ataque de pânico e não queria que ninguém me visse. Porque é uma visão terrível. Na maioria dos meus ataques de pânico, não me conseguia mexer. Das poucas vezes que aconteceu estar alguém a ver aquilo a acontecer, penso que foi absolutamente traumático tanto para mim como para a outra pessoa.

O que é que lhe acontecia? Bloqueava, era isso? Ficava rígido?
Sim, era um peso morto. Sentia que estava a morrer, de certa forma. Mas lembro-me perfeitamente de, uma vez, estar a guiar um carro, ter um ataque de pânico e não conseguir mexer-me. Parei o carro no meio da Marginal e a pessoa pensa que não consegue respirar. Ou que está dentro de um aquário, debaixo de água. A não conseguir dali, a não conseguir respirar. Consigo ver o mundo à minha volta, mas não consigo reagir a ele. E essa sensação de angústia, de, por vezes, nem sequer conseguir falar ou berrar — e de querer berrar, porque ajuda, já que não me consigo mexer —, é uma situação em que queremos fugir das pessoas. Não quero que as pessoas vejam isso. Lembro-me de me esconder, de não querer que as pessoas assistissem a isso porque tinha vergonha.

É como se o Miguel tivesse incorporado a doença e passasse a fazer parte da sua própria identidade, quando, quer academicamente quer depois profissionalmente, se pode dizer que é uma pessoa bem sucedida. Ou seja, não teve impacto nos resultados, na produção académica e profissional.
Talvez tenha tido na produção académica, certamente. Talvez não na parte profissional, porque sinto que, se calhar, um dos mecanismos que usei para me entreter e para me esconder foi trabalhar muito. Sempre tive dois empregos, por exemplo. Dava aulas na faculdade enquanto tinha um emprego a tempo inteiro. Trabalhei alguns anos no Bairro do Zambujal, na Cova da Moura, como diretor executivo de uma ONG. Cheguei a ser advogado estagiário, tive uma data de coisas, e sempre esses dois empregos, que me mantinham entretido e me davam uma sensação de “eu consigo provar-me e consigo fazer com que as coisas aconteçam”.

E, nesses locais, sente que tinha menos ataques de pânico ou podia acontecer também?
Não, era horrível. Sentia que me entretinha, no sentido de “tens um objetivo, tens umas coisas para fazer”, mas muitas vezes não conseguia de todo fazê-las. Havia dias inteiros em que não conseguia fazer absolutamente nada. Não tenho a menor dúvida disso. E talvez tivesse de haver dias em que tinha de compensar esses dias que tinha de atraso. O que sentia era que, de facto, tinha esta necessidade de trabalhar muito para conseguir fazer as coisas que achava que eram importantes e que ainda hoje acho. Continuo a ter vários empregos ao mesmo tempo. Sinto que era um escape possível. Vou dar-lhe um exemplo: houve uma altura da minha vida em que dava aulas na faculdade, trabalhava no Bairro do Zambujal, que é na Amadora, um bairro extremamente pobre, fazia o mestrado à noite. Aliás, há fotografias minhas dessa altura, eu era um cadáver.

Muito magro?
Aquilo não era um ser humano funcional. Muito magro. Consegui fazer todas essas três coisas com muita competência, salvo a devida modéstia, todas correram muito bem. Tive ótimas notas no mestrado, de facto, mas aquilo saiu-me muito caro — o meu corpo e algumas coisas que acho que nunca mais recuperei. Às vezes ainda me olho ao espelho e penso: “Que olheiras são essas que tu tens e que cansaço é esse que levas contigo?” E acho que pode haver essa altura de uma pessoa partir, de certa forma. Mas sempre tive essa necessidade de explorar esse meu lado e de mostrar que era capaz de conseguir fazer coisas, apesar do que tinha. E, sim, acho que fui conseguindo fazê-las, mas a muito custo pessoal.

Há quanto tempo está a aguentar esta situação até ter um clique para pedir ajuda? Quantos anos passaram? Porque estamos a falar de uma doença que começa aos 19, mas que vai até aos 27 anos.
Foi muito tempo de sofrimento. Há coisas absurdas nesse percurso. Às tantas, a minha namorada, com quem me vou casar, apanhou o fim desse meu percurso: eu tinha tremores nas mãos de tal forma… Não eram tremores [ligeiros], eram tremores assim [gesto forte], de estar doente. E é extraordinário, porque tinha tremores nas mãos incontroláveis e nem nessa altura ponderei que esses tremores pudessem ser por causa da minha depressão. Estive num neuro não sei quê, numa data de médicos.

A mim calhou-me ter nascido num meio muito privilegiado, que me dá acesso a este tipo de pessoas que são médicos e que depois são amigos do psiquiatra. Calhou-me ter essas facilidades na vida que me deram acesso a, por exemplo, ir para a universidade. Deu-me oportunidade de ter empregos e de poder pagar contas de psiquiatra, que é uma coisa que não está ao acesso de todos.

Neurologista?
Fiz TACs, entrei naquelas máquinas, aliás tive um ataque de pânico dentro de uma delas porque aquilo é terrível e diziam-me: “Não, você está ótimo, não sei explicar esses tremores.” E, de facto, até procurar ajuda profissional, mais tarde, já aos 27 anos…

Ignorava, ou não associava.
Olhando agora para trás, sinto que só podia estar a fingir que não sabia. Porque, naturalmente, quando tive úlceras no estômago, curei as úlceras a muito custo (aliás, não sei se aquilo se cura, mas passei a sofrer menos com isso, com os medicamentos e com as coisas todas), mas para mim eram problemas isolados, porque queria mesmo esconder aquilo de mim. E isso é muito complicado. As coisas foram-se complicando, tinha estes tremores nas mãos, tinha ataques de pânico constantes, estava numa situação muito difícil e a forma como uma pessoa chega à cura pode ter vários caminhos. No meu caso, foi um caminho completamente aleatório. Lembro-me de que fui a casa da minha mãe, visitá-la. E havia lá um livro de um autor espanhol que nem sei o nome, mas cujo título é só “A Depressão”. É um livro com uma capa azul e tem assim o que eu penso ser um rapaz a espreitar por entre duas fissuras. Pensei: “Curioso, um livro sobre depressão”. E depois vi “tradução” e dizia o nome do tradutor, que é um amigo meu, tradutor, mais velho, que é médico. Pensei: “Vou mandar-lhe mensagem, vou dizer-lhe que não sabia que tinha traduzido este livro”, e folheei-o. Uma das coisas que dizia era precisamente aquilo que lhe estava a contar ao início, que é o erro, um dos erros mais comuns das pessoas à volta de quem tem depressão, que é precisamente dizer: “Não consegues sair da cama ? Mas porquê? Sai! Está um dia tão bonito! Não consegues trabalhar? Claro que consegues. Anda trabalhar. Não consegues ir jantar fora connosco? Mas anda!” O livro explicava isso e, de repente, abriu-se uma luz. E eu pensei: “É exatamente isto que eu tenho.” A minha sorte foi que o tradutor era meu amigo e foi ele que me disse: “Miguel, se tu sentes isso, eu ajudo-te!” Foi ele que me apresentou ao psiquiatra que mais tarde me veio a salvar. E com toda essa medicação. Acho que houve essa parte do acaso, houve essa parte também de uma angústia enorme que se ia agravando de maneiras diferentes e com coisas diferentes, mas houve uma sorte enorme que tive na vida (houve várias sortes que tive na vida), mas este acaso, que foi ter acesso a uma pessoa que era médica e que me pôde ajudar e que me pôde pôr em contacto com o psiquiatra que, no fundo, me salvou.

Ou seja, oito anos depois desse primeiro diagnóstico, dessa consulta quase de rotina no médico de família, começa a valorizar o diagnóstico da depressão. Marca consulta com esse médico, mais uma vez com a âncora de um amigo.
Exatamente. E aqui — tenho isto muito claro na minha cabeça — a nossa vida é marcada por imensos acasos. Ninguém escolhe o sítio onde nasce, ninguém escolhe a quantidade de dinheiro que tem, ninguém escolhe o seu género,  ninguém escolhe a cor de pele. Calhou. Calhou nascer em Portugal, podia ter nascido em Marrocos ou na Arábia Saudita. E a mim calhou-me ter nascido num meio muito privilegiado, que me dá acesso a este tipo de pessoas que são médicos e que depois são amigos do psiquiatra. Calhou-me ter essas facilidades na vida que me deram acesso a, por exemplo, ir para a universidade. Deu-me oportunidade de ter empregos e de poder pagar contas de psiquiatra. Que é uma coisa que não está ao acesso de todos. De todo. E, portanto, vou acumulando estas sortes que me permitem enfrentar isto. Mas a maioria das pessoas jamais teria essa capacidade. E é este contexto seja socioeconómico, seja de capital social, das pessoas que eu conheço, que me permite fazer isto.

Antes da conta do médico: como é que foi essa primeira consulta? Vai para lá com uma atitude completamente diferente, já de quem acredita que tem mesmo uma depressão, que tem um problema. Isso também terá facilitado esse primeiro contacto?
Penso que fui para lá com a angústia grande que levava e a ver os sintomas a piorarem. E com a validação do amigo que diz: “Não, não há problema, vamos marcar uma consulta psiquiátrica porque isto resolve-se.” E essa é, de repente, uma esperança que nos dão, é uma boia que nos lançam e que, de facto, nos permite ir à luta. Essa primeira consulta no psiquiatra foi fascinante. Porque ele era uma pessoa extraordinária. “Sintomas? Então agora explique-me.” E eu contei-lhe a história toda da minha vida. O que é que tinha corrido mal, que foram muitas coisas, por circunstâncias familiares, de saúde, por circunstâncias absolutamente aleatórias, muitas delas. Ele disse-me uma coisa que me deu imensa esperança: “E você não acha normal sentir-se assim depois de tudo o que me contou?” Essa validação, de contar a história da minha vida a um estranho e ele dizer-me “bolas, com isto tudo que me contaste, seria estranho se não estivesses assim nesse estado”. Essa validação de “espera, este sentimento que tenho é válido?” “Isto que estou a sentir é válido? E é verdadeiro?” É muito liberatório, não é? Sobretudo quando se chega ao fim da consulta e se diz: “OK, agora vamos fazer um plano para tratar isto, porque isto é tratável.” É uma sensação que uma pessoa nunca mais esquece. A comparação que podia fazer — e faço isto com o disclaimer de que sou ateu —, mas lembro-me de que, quando andava na escola e fiz a primeira comunhão, havia aquela coisa de se ir confessar a primeira vez. E nunca me hei-de esquecer da liberdade de espírito que isso dava. Lembro-me de estarmos todos a sair da comunhão aos saltos. Lembro-me de sair desse consultório e ter exatamente a mesma sensação e de pensar: “Que bom, vou conseguir curar-me.” Claro que a cura não foi imediata, a terapia demorou o seu tempo a fazer e foi muito difícil. A terapia é muito difícil. É muito duro. Exige muita força. Exige muita determinação, mas poder ter a esperança de que se pode ter um dia melhor e que aquilo que eu sinto é válido é único. E, pelo menos para mim, foi isso que me pôde levar à cura.

Miguel Herdade é diretor associado no Ambition Institute, no Reino Unido, e governador de uma escola primária em Londres

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Pode dizer-se, então, que foi ao fim dessa primeira consulta que perdeu finalmente a vergonha de enfrentar uma depressão?
Não, não.

Ainda manteve?
Sim.

Ainda não conseguiu contar nessa altura a ninguém ou a quase ninguém?
Acho que contei a muito pouca gente. Não é fácil falar sobre estas coisas, como sabe. E também sinto que não é fácil para as outras pessoas ouvirem-nos. Sinto que as pessoas têm medo, como acho que é natural. E lembro-me de, na primeira vez que tentei uma aproximação a “eu tive uma depressão e fiz isto”, as pessoas ficarem muito incomodadas no sentido de “eu não sei sequer o que dizer a este rapaz”. Porque nós não ensinamos as pessoas a lidarem com esses problemas. Podemos ensinar as pessoas a lidarem com alguns problemas de saúde, mas estes problemas ainda são muito difíceis de encarar. Portanto, é difícil encontrar essas pontes e essa frontalidade de dizer “eu tive isto”.

Quando conta ou quando tentou contar a alguém, o que é que esperava que fosse a resposta?
É muito interessante isso que está a perguntar porque acho que ainda hoje há circunstâncias em que tento esconder isto, apesar de já ter falado em público mais do que uma vez e de estar aqui. Porque uma pessoa pode sentir uma certa insegurança em relação ao estigma. Pode sentir isso profissionalmente, por exemplo.

Há um estigma, ainda? De dizer que se teve uma depressão?
Tenho medo de o dizer, muitas vezes. Tenho medo, por exemplo, que uma pessoa que trabalhe comigo possa achar “este tipo pode não ser fiável porque pode não aparecer, pode ser emocionalmente instável, etc.”. E, curiosamente, uma das coisas que aconteceram foi que, quando me curei — se é que uma pessoa se cura —, fui nesse mesmo ano viver para Inglaterra, e aí as pessoas falam muito abertamente sobre o assunto. E lembro-me de aquilo me causar um certo embaraço. De ter colegas que estão comigo e dizer “ah, tenho uma depressão e, portanto, vou tirar agora um dia, ou uma semana, ou um mês”. E eu ficava… Lembro-me de, mesmo nessa altura, ainda ter alguma vergonha de dizer “eu também passei por isso”. Mas a coisa vai-se construindo, e ter pessoas à nossa volta que validam isso e de ter organizações no trabalho que validam isso, ajuda muito e dá-nos um à vontade para conseguir.

Vamos então a essa primeira consulta. Sai a sentir que vai começar um ciclo novo na sua vida, mas que é muito duro. Houve medicação e já disse que isso foi fundamental. E mais? Qual foi o plano?
Acho que há duas coisas importantes. Uma que é que sinto que as pessoas podem desvalorizar a ideia do psiquiatra. Isso é problemático, na minha opinião. Não sendo especialista, a não ser no sentido da ótica do utilizador. Eu passei por isso. Não sei nada de psicologia nem de psiquiatria, mas aquilo é mesmo uma terapêutica. Ou seja, tenho uma data de comprimidos com uma dosagem. E ele explicou-me logo ali: “Agora a ideia é, durante estes meses, tomares estes dois” — que era o Zoloft e a Sertralina, que é o Xanax — “e depois vamos diminuir a dosagem deste e depois aumentar a do outro e depois diminuir a deste.” E a ideia é fazer um plano de cura, de já não sei quantos meses. E isso é muito bom, porque é uma coisa muito tangível. E quase que parece frio, mas essa frieza dá-nos imensa confiança. Porque da mesma forma que eu vou a um cardiologista e confio que ele sabe o que me está a dizer do meu coração, aquele approach tão objetivo — “agora vais fazer isto e esperemos que o resultado seja bom” — dá imensa confiança no processo. É muito interessante porque, de facto, uma pessoa começa a sentir que os comprimidos ajudam. Do que me lembro da minha medicação, há muitos altos e baixos. É mesmo muito duro. Aquilo puxa muito para baixo, puxa muito para cima. Há dias em que nos sentimos muito livres, mas há dias em que nos sentimos muito pesados e até pouco funcionais. E eu tinha de conjugar isso com escondê-lo no meu local de trabalho.

Esconder no local de trabalho?
Claro. Trabalhava numa ONG, era diretor executivo numa ONG na Amadora. Acho que as pessoas não estavam preparadas. Eu não estava preparado para dizer a quem quer que fosse. Não dizia “estou a tomar estes compridos” a pessoas que eu estivesse a gerir ou que estivessem a trabalhar comigo. Nem sequer aos meus amigos penso que disse na altura. Só mais tarde é que foi possível fazê-lo. Acho que tem de haver um momento de cura e de perceber o que se passou. Acho que isso demora algum tempo até estabilizar. Hoje falo disso com alguma clareza, no sentido em que tenho claro na minha cabeça o que passei, o que senti, mas sem nunca esquecer que não houve nada, nunca, tão duro que tenha passado na minha vida. E como todas as coisas duras que passamos, tentamos sempre escondê-las de certa forma. Foi o que eu fiz, não tenho a menor dúvida.

Tanto quanto o sofrimento é físico, também a cura é física. E não está aqui na minha cabeça. É um peso no estômago. É um peso aqui no centro de mim. É esse peso que nos amarra à cama, é um peso físico. Não é um peso mental. Parece que tenho alguma coisa sempre na minha garganta que me impede de ir mais longe, de falar, de pensar direito.

A terapêutica foi, sobretudo, a medicação?
Sem dúvida.

Teve de mudar alguma coisa no estilo de vida? Foi lhe recomendado, por exemplo, que fizesse exercício? É um recurso que muitas pessoas dizem que é importante.
É giro estar a dizer isso, porque o contrário também é verdade. Ou seja, aos 19 anos, quando perdi peso, deixei de fazer desporto, por exemplo. Deixei de fazer imensas coisas que gostava de fazer. Deixei mesmo, por completo. Deixei de ter gozo nesse tipo de hobbies que tinha. E isso acontece. Quando me estava a curar, quando estava nessa terapêutica, depois do que aconteceu — mas acho que isso foi meramente circunstancial, no meu caso — por acaso, porque tinha prometido, deixei de fumar. Fumava muito, fumava 20 cigarros. Aliás, é giro porque o meu período de fumador coincidiu mais ou menos com o meu período depressivo. Não sei explicar porquê, mas fumava muitos cigarros. Aliás, dava aulas na faculdade e os alunos sabiam que era provável encontrar-me com o computador num sítio público para poder fumar, na parte do bar. Porque fumava muitos cigarros. E deixei de fumar, mudei-me para Inglaterra, e esse quebrar com um passado, hoje, dá-me essa clareza de perceber o que passei e o que senti. Mas diria mesmo às pessoas para não subestimarem a terapêutica e os medicamentos. Da mesma forma que não subestimam quando têm outras doenças. Ouço muito as pessoas — não sei se por medo — a não quererem enfrentar a ideia de ir a um psiquiatra e não quererem tomar o Xanax e os comprimidos. A verdade é que ainda hoje em dia, quando amigos me dizem que estão a sentir isto e aquilo e eu, porque passei essa experiência, digo “olha, queres o número do meu psiquiatra? Ele a mim salvou-me!”, as pessoas dizem logo “não, não”. “Psiquiatra? Isso é demasiado, se calhar vou primeiro a um psicólogo.” E aí eu sou muito claro. A minha experiência foi muito clara: o psiquiatra foi o que me salvou. Eu estava doente e ele curou-me. Tal como o cardiologista me curaria se eu tivesse uma doença de coração. Era muito importante que esse trabalho fosse feito. Se calhar, é também um bocadinho por isso que estamos aqui hoje, para fazer esse trabalho de desconstruir.

Esses ataques de pânico, terríveis, que descreveu passaram logo quase a seguir ao início da medicação ou ainda teve de lidar com eles?
Não, não. Tinha de lidar muito. Até porque a medicação tinha muitos efeitos secundários com que, às vezes, é difícil lidar. Por exemplo, uma das coisas que o meu psiquiatra me deixou claro foi: “Você não pode beber enquanto está a tomar estes medicamentos.” Mas como é que uma pessoa, aos 27 anos, esconde isto? Como é que se vai, por exemplo, para um casamento ou uma festa ou um jantar? É difícil, não é?

Mas escondeu? Escondia?
Sim. E pagava a consequência!

A consequência era “o Miguel deixou de ser um camarada”?
Não, continuei a fazer a minha vida normal e isso custou-me caro. Combinava álcool com os medicamentos e isso não faz bem. O meu psiquiatra deixou isso bastante claro: “Você não pode fazer isso. Isso é um risco grande.” E foi. Sentia-se no meu corpo. É muito interessante, porque isto é físico. Tanto quanto o sofrimento é físico, também a cura é física. E não está aqui na minha cabeça. É um peso no estômago. É um peso aqui no centro de mim. É esse peso que nos amarra à cama, é um peso físico. Não é um peso mental. Parece que tenho alguma coisa sempre na minha garganta que me impede de ir mais longe, de falar, de pensar direito. A cura também é um bocadinho por aí. A pessoa vai sentido esses sintomas, essas cordas que nos prendem, a deslaçar um bocadinho. E, de facto, culminou num dia que não hei de esquecer, um dia em que acordei e não estava triste. Lembro-me perfeitamente de estar a acordar e dizer: “Eu não estou triste”. Aliás, lembro-me de me dizerem “mas estás tão bem disposto!”. Já não me lembro do que fizemos, mas tivemos um dia fantástico. Claro que houve dias a seguir que não foram assim, não é uma curva em que vamos sempre melhorando de dia para dia. Isso não acontece dessa forma, infelizmente. É uma luta dura, que precisa de muita vontade e de termos a capacidade — e à nossa volta, no contexto em que estamos — para fazer essa luta. Infelizmente, não tenho a certeza de que toda a gente tenha tido a sorte que eu tive.

Porque há consultas para pagar.
E são caras, muito caras. E não estão acessíveis às pessoas. É particularmente perverso, porque eu tive estas duas sortes. Um: tinha dois trabalhos bons. Lá está, porque tive a sorte de nascer num meio que me permitiu andar na universidade e, portanto, ter ordenados mais altos. Tão simples quanto isso: sou um privilegiado. Tive esse privilégio, também, de conhecer quem me apresentasse a um psiquiatra, que é uma coisa que as pessoas não têm. Conheci muitas pessoas que nunca tinham conhecido ninguém sequer licenciado, quanto mais um médico. Isso existe. Aliás, infelizmente, em Portugal existe demais. Portugal tem um problema muito grande de pobreza e também um problema muito grande de pobreza infantil. Portanto, essa sorte é mesmo uma sorte, não é uma coisa que esteja acessível a todos. A maioria das pessoas não tem dinheiro para pagar um psiquiatra, como é óbvio. E o mais perverso disto tudo é que nós sabemos que os problemas de saúde mental têm uma prevalência maior em famílias de rendimentos mais baixos. Não sei como é em Portugal — imagino que haja coisas semelhantes — mas sei que em Inglaterra, onde vivo, as pessoas que estão nos 20% mais pobres têm o dobro da probabilidade de desenvolver problemas de saúde mental, em relação às pessoas que estão nos rendimentos médios. E, portanto, têm essa coisa mais perversa: aqueles que têm maior probabilidade de desenvolver este problema de saúde mental são também aqueles que têm menor acesso aos cuidados.

E mais dificuldade em pagá-los.
Claro. E isso é inaceitável. Acho que temos o dever coletivo de reparar esse dano. Podermo-nos curar de uma doença dessas, tão horrível e tão profunda, não pode ser um privilégio. Tem de estar acessível a todos e não está.

Desde a data dessa consulta até àquele dia em que acorda feliz, quanto tempo passou? Tem ideia?
Por acaso, estive a ver os meus emails para ver as receitas do médico. Penso que a minha cura toda fez-se em menos de um ano. O que é extraordinário.

É um “bom tempo” para uma cura?
Acho que deve ser um bom tempo. Não sei, imagino que sim.

Falo disto abertamente porque sinto que é importante, mesmo que não seja fácil, porque não é. Mas, lá está, é complicado esperar que as pessoas consigam reagir a isto facilmente. Acho que não estamos ainda nesse ponto. Ainda não estamos num momento da sociedade onde isto seja acessível a todos, ter formas de lidar com isto.

Já estava em Inglaterra nessa altura?
Não. Fui para Inglaterra já curado, poucos meses depois de já ter tido alta. Isso foi uma coisa importante para mim. Foi uma coincidência, na verdade, não planeei. Mas é como lhe digo: digo “estou curado”, mas está sempre aqui comigo, não é? Sei é lidar com o problema. E acho que, desde o final dos 27, entrada para os 28 anos, tive muito poucos ataques de pânico. Muito menos de um por ano.

E sabe o que é que espoleta esses ataques? Consegue antecipá-los e perceber o que vai acontecer?
Acho que há temas que me puxam para isso. Não sei se por traumas que possa ter tido na minha vida pessoal, na minha infância, à medida que fui crescendo. Sei que há coisas com determinados efeitos. Há muitas questões de relações familiares, pessoas em determinados contextos. E não tem de ser comigo, mas, às vezes, determinados acontecimentos na sociedade espoletam isso. Ver pessoas a sofrer com isso também me custa muito. E às vezes tenho algumas circunstâncias em que sei que tenho de passar por isso. Vou-lhe dar um exemplo: às vezes, há coisas tão simples e estúpidas como determinado tipo de música ou determinado tipo de filmes que sei que posso não estar na circunstância certa para ver ou para ouvir. E, portanto, protejo-me disso. Pode acontecer que esteja a querer preparar-me para poder fazê-lo, para poder estar numa determinada circunstância ou ter uma determinada discussão que sei que vai espoletar isso. E preparo-me. Mas posso dar-lhe um exemplo muito estúpido do dia a dia, que aconteceu há poucos meses. Saiu um filme, o The Whale — em português imagino que se chame “A Baleia!, não tenho a certeza. Mas é um filme que ganhou o Oscar de melhor ator este ano, é sobre um homem que tinha obesidade e vários problemas. E eu fui ao cinema ver esse filme.

Desprotegido em relação à história.
Não, não, eu sabia para o que ia.

E sabia que isso podia acontecer?
Sabia perfeitamente o que é que aquilo poderia espoletar em mim. Estive algumas semanas a pensar “sei o que vai sair daqui, não tenho a menor dúvida”. E foi muito curioso, porque fomos em dois casais ao cinema, lá em Londres. O filme chegou ao fim e, não estou a exagerar, fiquei 15 a 20 minutos sentado no meu lugar, a chorar, compulsivamente. Compulsivamente. E não tive vergonha disso. Tinha ali a minha companheira e outro casal muito amigo, muito próximo. E não tive vergonha nenhuma de estar ali 20 minutos. Precisava daquele tempo para mim. Isto, para mim, é uma grande conquista. Essa liberdade de saber que aquilo está aqui comigo, mas eu é que mando, tanto quanto possível, é a maior liberdade que posso ter. Porque, como lhe digo, isto faz parte de mim. Sou uma pessoa normal. Tenho esta característica comigo, que faz parte do que eu sou. Faz parte da minha maneira de ver a vida hoje em dia, faz parte da minha maneira de lidar com os outros, e isso é importante. É importante assumir isso para mim próprio. Mas é um caminho que demora tempo a fazer, não é um caminho que se faça de um dia para o outro. Disso não tenho a menor dúvida.

E isso que dizer, Miguel, que os amigos já sabem? Já não há vergonha, pelo menos para os amigos mais próximos?
Eles sabem porque é público. Falo disto abertamente porque sinto que é importante, mesmo que não seja fácil, porque não é. Mas, lá está, é complicado esperar que as pessoas consigam reagir a isto facilmente. Acho que não estamos ainda nesse ponto. Ainda não estamos num momento da sociedade onde isto seja acessível a todos, ter formas de lidar com isto. Não é só nos amigos, acho que as empresas não estão preparadas para isto, as escolas não estão preparadas para isto. Não estou a atacar as escolas, nem os professores. Mas, quer dizer, os professores e os profissionais que estão nas escolas nasceram ou na minha geração ou numa geração anterior. Eles próprios também não têm essas ferramentas. E não podemos estar à espera que as pessoas compreendam uma coisa que não lhes foi dada a conhecer. Pelo contrário, se calhar: uma coisa, que durante muitos anos, foi escondida. Porque a depressão não é uma coisa nova, de todo. E esse estigma ainda existe e há muitas pessoas que ainda têm dificuldade em lidar com a conversa. Isso é natural. A expectativa não pode ser outra. Mas havemos de chegar a um ponto em que se fala disto como se fala de qualquer doença. Eu espero. Acho que isso era muito importante.

Haverá aí também, de quem passou pela doença, o papel não só de falar, mas de se aproximar das pessoas que podem estar também doentes e serem elas a abrir essa porta? Ou seja, o Miguel está mais sensível a detetar aquilo que outras pessoas podem não ter percebido, precisamente por já lá ter estado?
Isso é das coisas mais irónicas. É que eu, mesmo antes de me tratar e na altura em que, no fundo, estava a negar a minha própria depressão, conseguia perceber nas outras pessoas que elas também não estavam bem. Aliás, na faculdade, durante alguns anos, lembro-me de haver dois ou três casos de pessoas que tinham problemas de saúde mental. Algumas delas, hoje em dia, são minhas amigas, mas lembro-me de olhar para aquela pessoa e dizer: “Esta pessoa não está bem.” E fazer-me muita confusão, porque, de certa forma, sentia-me um bocadinho também naquilo. Estar ali, numa faculdade, com tanta gente à volta, mas ninguém olhar para mim e ninguém perceber o que eu tenho. Lembro-me de, por várias vezes, sinalizar isso e falar com eles o melhor que sabia e o melhor que conseguia, dentro de alguém que também sofria com isso, apesar de eu próprio negar. Isso é que é a ironia. Negava em mim aquilo que via nos outros. O que quero dizer com isto é que, de facto, acho que, se olharmos com olhos de ver, conseguimos mesmo perceber. E se tomarmos atenção às pessoas que estão à nossa volta, conseguimos perceber. Lembro-me de sinalizar esses alunos e, mais tarde, quase todos ficámos amigos e acompanhamo-nos mutuamente. Mas de nem sequer haver formas: não havia protocolos para sinalizar isto. Eu dava aulas numa universidade e não tinha um mecanismo para tentar ajudar aquele aluno. Não tinha um processo, um protocolo que me dissesse “ok, viste um aluno com um problema, portanto há aqui um gabinete que trata disto”. Isso não existia e, se calhar, ainda não existe em muitas faculdades ou locais de trabalho. E, certamente, não em famílias e grupos de amigos onde os protocolos são informais, são protocolos sociais. Vai ser preciso que isso apareça, que isso se vá fazendo. Numa escola, se identificar um aluno que tem um problema de outro tipo completamente diferente, de aprendizagem ou de bullying ou de violência, há mecanismos de reporte. E sinto que vamos ter de caminhar para um processo em que também há mecanismo de reporte de problemas de saúde mental. Mas, lá está, não podemos pedir às pessoas que controlem uma coisa que desconhecem e que de certa forma, por causa do estigma, cresceram a tentar escondê-la. Da mesma maneira que eu também escondi. Por isso, sim, é muito curiosa essa sua pergunta, porque eu conseguia identificar noutros aquilo que estava a tentar esconder de mim próprio. E isso é de uma ironia fina brutal.

“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento que agora faz parte do Mental, a secção do Observador dedicada a temas da Saúde Mental. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças. Pode ler aqui as entrevistas anteriores:

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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