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O médico Gustavo Carona é o 16.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental
"Eu queria, e queria, e queria, e queria, e comecei a sentir que estava num ponto em que pareciam areias movediças"
"Quando mais lutava, mais me enterrava; quanto mais queria, mais frustrado ficava"
"O momento de viragem é quando percebo claramente que estou a fazer mal a mim próprio"
"Disse-lhe: 'Olhe, eu sou intensivista, estamos no meio de uma pandemia, preciso mesmo de ajuda'"
"Não posso dizer que tenha dores horríveis e insuportáveis. O que me dói é o que eu não consigo fazer"
"Nunca fiz a pergunta 'porquê eu?'. Nunca. Agora: aquilo que sinto e que me entristece é que a minha personalidade está diferente"
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O médico Gustavo Carona é o 16.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O médico Gustavo Carona é o 16.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Gustavo Carona e os efeitos da dor crónica. “Os médicos têm a cultura de durões, dar parte fraca não é muito aceite”

Os primeiros sinais surgiram no final de 2020, em plena pandemia. Médico intensivista, de serviço no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, chorava “demasiadas vezes” e, quando saía do hospital, não conseguia repor as energias. Em parte, a culpa era do cansaço extremo que afetou muitos médicos envolvidos no combate à Covid-19; em parte, a culpa era de uma dor, que surgiu na mesma altura, e que o impedia de sair para correr, estar com amigos ou fazer tudo o que, habitualmente, o ajudava a “descarregar” a pressão. Com todas as tristezas que vivia a trabalhar, diz, “faltavam alegrias” como forma de compensação.

Nesta entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental”, uma iniciativa do Observador e da FLAD, gravada no Pestana Palácio do Freixo, no Porto, Gustavo Carona conta que foi forçado a parar, no início da segunda vaga de Covid-19, pensando que tinha um burnout. Ainda voltou ao serviço, um mês depois, mas a dor crónica obrigou-o a afastar-se outra vez. Não é porque tenha “dores insuportáveis”, mas não pode estar muito tempo sentado ou de pé — aliás, quando ainda trabalhava, chegava a deitar-se no chão para ler, por exemplo, as suas notas, na esperança de conseguir resistir.

Continua à procura da origem do problema, e só essa incerteza já é emocionalmente difícil de gerir. Prefere não ser ele a fazer diagnósticos, mas sabe que não poder exercer medicina é a sua maior dor e um desafio para a sua saúde mental. O médico conta que está a tentar habituar-se a uma nova realidade, mas admite que continua a ter dias maus. Alguns vai partilhando com os seguidores nas redes sociais: “Ajuda-me que não achem que sou aquele pseudo-herói das missões ou da pandemia. Não sou nenhum herói, não quero passar uma imagem daquilo que não sou”.

[Veja aqui a entrevista completa a Gustavo Carona]

O que é que chegou primeiro, o cansaço extremo ou a dor?
Acho que foi o cansaço extremo, porque, coincidência ou não, foi contemporâneo com algumas das fases mais complicadas da pandemia. Só aquela primeira vaga, que foi de março a maio de 2020, já foi de uma exigência física e emocional enormíssima. Nessa altura ainda não tinha dores e já estava bastante cansado, sobretudo emocionalmente.

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E, mesmo assim, ainda passam mais uns meses. Quando percebe que, de facto, há um problema já está quase no final desse primeiro ano de pandemia.
Sim, ali na transição setembro/outubro. Nós fazemos a cronologia com as vagas, não é? É no início da segunda vaga, nos finais de 2020, que começo a sentir que tenho dores com coisas tão simples como estar sentado. E isso começa a limitar-me bastante o dia a dia.

Foi também nessa altura que percebeu que os tempos livres eram quase tão maus quanto os tempos em que estava a trabalhar? Estava a trabalhar e, quando parava de trabalhar, não conseguia descansar?
Exatamente. Não podia fazer desporto, se tivesse um jantar ou uma oportunidade de socializar com amigos ou família, mesmo com regras Covid, estava condicionado pela minha própria doença, portanto faltavam-me alegrias. E principalmente numa altura em que estava a viver muitas tristezas no hospital, deveria conseguir compensar com algumas coisas que nos fazem bem à alma, e estavam a faltar-me esses sinais +.

"Quando mais lutava, mais me enterrava; quanto mais queria, mais frustrado ficava. Acho que o momento de viragem é quando percebo claramente que estou a fazer mal a mim próprio."

Nunca relaxava?
Talvez relaxasse, não estava era particularmente alegre ou feliz. Sempre consegui desligar-me do trabalho, por mais difícil que fosse o momento, mas não tinha alegrias. Aquela alegria, por exemplo, para mim, de sair a correr para ao Parque da Cidade e sentir a adrenalina no corpo a descarregar, são escapes, mecanismos de coping, que para mim são super importantes para compensar momentos difíceis, e que deixaram de existir. A balança ficou muito desequilibrada.

O que é que a sua cabeça de médico pensava dessa dor?
Normalmente, os médicos não são muito bons doentes, não é? Acham que percebem qualquer coisinha sobre o seu assunto. Eu tinha uma espécie de dor ciática e achava que, provavelmente, com fisioterapia conseguiria ir compensando, mas realmente demorei muito tempo a fazer aquilo que todas as pessoas devem fazer: ir ao médico. Porquê? Porque estava numa altura em que não me permitia falhar, não me imaginava a interromper o meu foco, que era ser médico e ensinar os mais novos que tinham de reforçar as nossas equipas para nos ajudarem nos períodos mais difíceis da pandemia. E depois a parte da comunicação, que acabou por ocupar muito espaço na minha vida e que me pareceu de extrema importância. Nos três pontos de ataque — o exercício clínico, o ensino dos mais novos e a comunicação médica — queria muito estar à altura dos acontecimentos. Portanto, tentava sempre esconder debaixo do tapete o facto de estar a sofrer uma dor física em crescendo e bastante limitadora.

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Quais foram os primeiros sinais de que estava a entrar num estado de exaustão que o obrigaria, mais à frente, a parar?
Acima de tudo, era uma tristeza extrema, era a sensação de que, emocionalmente, eram demasiados combates que eu estava a combater ao mesmo tempo. Se calhar há características que são inatas da personalidade de cada um e outras que também aparecem com o nosso percurso profissional. Os médicos, nomeadamente aqueles que trabalham em especialidades fisicamente exigentes, como é o meu caso nos cuidados intensivos, têm um bocadinho a cultura de durões. Médicos e médicas. E realmente há pessoas que têm uma resistência física absolutamente extraordinária. Portanto, dar a parte fraca não é algo que seja muito aceite, digamos assim, naquilo que é a nossa cultura. Eu queria, e queria, e queria, e queria, e comecei a sentir que estava num ponto em que pareciam areias movediças: quando mais lutava, mais me enterrava; quanto mais queria, mais frustrado ficava. Acho que o momento de viragem é quando percebo claramente que estou a fazer mal a mim próprio.

Como é que percebeu isso?
Primeiro porque, a nível emocional, demasiadas vezes chorava, demasiadas vezes encontrava tristeza profunda. E também, infelizmente ou felizmente, percebo algumas coisas de dor crónica, até porque a minha formação base é anestesiologia, que é uma das áreas que mais se dedicam ao estudo da dor crónica. E a dor crónica ganha uma vida própria. A partir de dada altura, podemos estar a agredir os nervos de uma forma irreversível. Portanto, já não é tanto aquela coisa de “será que aguento ou não aguento a dor”. É: “Eu estou a contribuir para um malefício que pode ficar para a vida”. A construção deste pensamento, claro, não foi de um dia para o outro, mas comecei a perceber que não conseguia ajudar ninguém se não me ajudasse a mim próprio primeiro.

Então o momento em que decide parar, em parte por causa dessa exaustão física e emocional, é também o momento em que percebe que tem de tirar a dor crónica de debaixo do tapete e tem de lidar com ela?
Sim, é o momento em que, digamos, vou ao médico, em que começo a fazer exames. Claro que, até então, já tinha tido uma ou outra opinião, mas começo a dedicar o meu tempo por completo a tentar tratar o meu problema de saúde. Ou, por outra, primeiro a tentar compreendê-lo: fazer vários exames, bater à porta de vários médicos, de várias especialidades. Dediquei o meu tempo essencialmente a isso.

"Questionava-me muitas vezes sobre isso: já vi tantas guerras, já vi muito mais sofrimento, porque é que não estou a conseguir gerir emocionalmente este momento?"

Sobretudo após o seu regresso, pouco depois, falou publicamente em burnout. Hoje, quando olha para trás, acha que não era exatamente isso?
Gostava deixar os diagnósticos da área de saúde mental para quem foi formado para tal — e não são diagnósticos que podem ser comprovados por um exame clínico, em que se pode dizer “há aqui um marcador que diz que tem ou não tem”, por isso acredito que seja um bocadinho subjetivo e interpretativo. Acho que sim, estava em burnout. Tinha uma causa externa — ou, neste caso, interna — que era tentar trabalhar com dores e quanto mais trabalhava mais dores tinha. Olhando para trás, parece-me que o problema físico era e é aquilo que condiciona a minha vida, mas sem dúvida que aquele é um momento de exaustão e de dificuldade de gestão da minha própria vida, tendo em conta a forma como me encontrava, num tornado, num turbilhão de emoções do qual me parecia difícil sair se não tivesse parado.

Nessa altura já tinha falado com alguém, colegas, médicos, além das opiniões clínicas que foi pedindo? Falou com alguém sobre essa sensação de exaustão?
Os meus companheiros de trabalho perceberam que as minhas limitações físicas estavam em crescendo, porque eu tinha de mudar de posição, tinha de me sentar, levantar, tinha de me mexer. Portanto, foram percebendo que eu estava a passar sérias dificuldades. Tenho também um chefe que é uma pessoa, do ponto de vista humano, muito completa e inteligente emocionalmente, com quem partilhei que aquilo estava a acontecer. E ele disse-me: “Apesar de haver muito poucos intensivistas experientes, tens de tomar conta de ti próprio”. Eu quis fazer mais uma tentativa e, passado dois ou três dias, disse-lhe que não conseguia. Havia muitas coisas que as pessoas não sabiam — e não tinham de saber —, como por exemplo o facto de os meus pais se terem separado no princípio da pandemia. Pessoalmente, a minha vida estava completamente desestruturada, e as palavras do meu chefe foram resumidamente: “Tu estás mesmo triste, não estás?”. “Estou.” E claro que isto foi banhado em lágrimas. Isto é um cliché, mas, para mim foi perceber que não conseguimos ajudar ninguém se não tivermos a capacidade de nos ajudar a nós próprios. E esse momento serviu para eu ter essa consciência, e aprender. Vivemos uma vida que não tem livros de instruções, os obstáculos que nos põem à frente não vêm com soluções ao lado, e começa aí um processo grande de aprendizagem, de viver com isto.

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Nessa altura, procura também ajuda a nível psicológico?
Sim, é exatamente nessa altura, quase contemporâneo, em meados de novembro. Não era a primeira vez, já tinha tido uma curta experiência com uma psicóloga cerca de 10 anos antes e tinha ficado muito bem impressionado com os benefícios que tive.

Então não tinha preconceito em relação a ir a um psicólogo ou psiquiatra.
Nenhum. Só tinha sempre aquela sensação de “eu consigo sozinho, eu sou forte, já vi pior”. E a verdade é que já tinha visto. Questionava-me muitas vezes sobre isso: já vi tantas guerras, já vi muito mais sofrimento, porque é que não estou a conseguir gerir emocionalmente este momento? A reação não é nunca negligenciar a importância dos profissionais de saúde mental, é mais pensar que sou forte e consigo. E a partir de determinada altura, tornou-se óbvio — e acho que as pessoas como eu, não sei se é verdade ou não, ficam muito tempo a dizer que acham que não precisam de ajuda, até que chega o momento em que dizem “por favor, já, ontem, agora”.

Foi assim consigo?
Foi. Não conhecia a psicóloga, foi através de uma amiga psicóloga que não poderia ser a minha psicóloga porque eu a conhecia. Mandei-lhe uma mensagem e ela disse-me: “Se calhar, na próxima semana tenho aqui uma aberta…” E eu disse-lhe: “Olhe, eu sou intensivista, nós estamos no meio de uma pandemia, preciso mesmo de ajuda. Não querendo dizer que o meu trabalho é mais importante do que o dos outros, neste momento é capaz de ser uma das funções mais importantes da sociedade perante o desafio que estamos a viver”. E ela percebeu que era urgente, disse “se calhar amanhã já consigo falar consigo”, e assim foi.

  • A entrevista foi gravada no hotel Pestana Palácio do Freixo, no Porto
    JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
  • JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
  • JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
  • JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Nessa primeira consulta, sabia o que tinha para dizer ou ainda estava naquela fase em que não se sabe exatamente o que é que se passa?
É uma boa pergunta, porque eu acho que ir ao psicólogo é um bocado como ir ao mecânico, não é? Nós é que dizemos o que queremos arranjar. “Olhe, você tem aqui o para-choques todo estragado! Ah, mas eu só quero arranjar os farolins.” No fundo, eles são muito condicionados pelos problemas que nós apresentamos para resolver. E eu identifiquei, mal ou bem, não sei, como estando em burnout e, muito secundário, com uma dor física, expliquei a exigência emocional de estar nos cuidados intensivos, de ver a sociedade a chorar à minha volta a morte dos doentes, de ouvir os familiares a chorar ao telefone, de ter a minha família direta completamente desfeita e destroçada, de ter a exigência da comunicação social, que eu achava que era mais importante do que o meu exercício clínico, no sentido em que a comunicação poderia salvar muito mais vidas do que o meu trabalho propriamente dito. E, depois, as reações adversas, nefastas, o ódio, a toxicidade que vem da exposição pública, em particular numa área tão polémica como é a pandemia. “Olha, os meus problemas são estes.” E ela, se calhar, ficou com um baralho de cartas bastante grande, mas aos poucos fomos conversando e acho que tive a sorte de encontrar uma pessoa extremamente competente e extremamente humana. Não sei qual das duas características é mais importante, mas as duas juntas são mesmo muito eficazes naquilo de que eu precisava e ainda preciso.

Nessa altura fez só terapia ou fez também medicação?
Nunca fui medicado no sentido da saúde mental, se bem que eu tomo um medicamento para a dor crónica que é um antidepressivo. Os medicamentos para a dor crónica, resumindo aqui uma longa história, são medicamentos que diminuem a ação dos neurotransmissores a nível cerebral e podem aumentar outros. Portanto, são medicamentos, muitas vezes, da classe dos antipiléticos ou da classe dos antidepressivos. Embora a indicação seja a dor crónica.

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É para diminuir a nossa sensibilidade à dor?
Os tratamentos da dor aguda são muito diferentes dos tratamentos da dor crónica, os mecanismos, a fisiopatologia é diferente, e, como tal, os fármacos são muito diferentes. Comecei a tomar — e ainda tomo — um antidepressivo que está direcionado para a dor crónica. E a verdade é que já foi há um ano e tal que eu comecei, já não sei bem o que é não tomar, mas do ponto de vista anímico não senti grande diferença. Ainda assim, se um profissional de saúde, nomeadamente um psiquiatra, me dissesse que achava que eu tinha essa indicação, quando estou perante um médico sou apenas o doente, nesse aspeto tento ser sempre respeitador da orientação de quem sabe mais do que eu.

Nessa altura, quando tempo esteve parado?
Quatro semanas, se a memória não me falha.

Como é que foram essas quatro semanas?
Duras, muito duras.

"Ter uma doença que não compreendemos bem é um inimigo desconhecido, uma guerra de guerrilha, uma emboscada permanente. A indefinição, pelo menos para mim, é muito difícil de gerir."

A sentir-se em falta?
Sim. Não sei se se lembra, eu quase que tenho na cabeça os gráficos das curvas da pandemia: em finais de novembro, meados de dezembro, há um abrandamento, antes do Natal. E é mais ou menos aí que eu saio. Portanto, saio numa altura em que, apesar de tudo, a minha equipa sentia alguma sensação de respirar. E pensei que estava a fazer falta, mas não era na pior das alturas. Doeu-me horrores, quando saí do hospital parecia uma piscina de lágrimas, de frustração, de tudo. Com tempo, permiti-me falhar, permiti-me reconstruir-me, direcionar-me no sentido de encontrar uma terapia que me fosse útil. Claro que isso foi um caminho muito longo e que ainda nem sequer acabou. E permiti-me também perceber que aquilo que mais queria era voltar ao hospital, que estava com força de vontade de voltar para a minha equipa. Volto imediatamente antes do Natal, até à passagem de ano as coisas não foram muito complicadas, até passei a passagem de ano a trabalhar no hospital, e depois fomos os piores do mundo. A primeira e a segunda vagas são muito mais duras no Porto e no Norte, a terceira vaga é muito mais dura em Lisboa e Vale do Tejo, mas, como transferimos os doentes de uns lados para os outros, a terceira vaga acabou por ser sempre também muito intensa. Embora, neste caso, não tenha dúvidas de que foi pior para os meus colegas de Lisboa e arredores.

Nesse regresso, apesar dessa sensação de ser ali que tinha de estar, em algum momento pensou que tinha cedo demais?
Eu não sabia o que tinha, não é? Por isso tinha uma série de pontinhos de interrogação sobre qual era o processo e o que é que se estava a passar. Tentei que esta decisão fosse conversada não só com o meu chefe, mas também com a psicóloga, e foi, mas senti-me quase como um lutador de boxe que estão a segurar junto às cordas e depois o largam. A minha vontade era tanto de ir que, quando voltei, senti-me super bem e que era ali que queria estar, apesar de estar ainda com dores e dificuldades em trabalhar.

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Com dores que, na verdade, não passaram. E dá por si, depois disso, com uma dor que o limita e que não sabe exatamente o que é. O que é que isto faz à nossa cabeça?
Há dois tipos de conflitos, aqueles em que conhecemos o inimigo e aqueles em que somos atacados por emboscadas, aquela guerra de guerrilha. Ter uma doença que não compreendemos bem é este segundo grupo, é um inimigo desconhecido, uma guerra de guerrilha, uma emboscada permanente. É sentirmos que estamos presos dentro do nosso corpo sem perceber muito bem o que se está a passar. A indefinição é, pelo menos para mim, muito difícil de gerir. Não sou nada daqueles discursos de “é preciso ter esperança, acreditar muito”. O meu pensamento é demasiado científico para embarcar nesses — para mim — discursos ocos. É: o que é que é; como é que se trata; qual é o percurso — aceitando que a medicina tem muitas incertezas. Já compreendo muito mais peças do puzzle em relação à minha doença, algumas que se calhar, retrospetivamente, nunca serão certezas absolutas, mas, mesmo compreendendo melhor a doença, não quer dizer que a solução seja linear ou alcançável a curto prazo. Continuo banhado em incertezas.

No início, provavelmente, a coisa mais plausível para si era que seria um cancro, ou andava à procura de perceber se seria.
Foram tantas fases, tantas interpretações diferentes. O que aconteceu foi que testei positivo para uns anticorpos, o que aponta para um mecanismo imune, e estes anticorpos têm, sim, uma ação antineuronal, ou seja, atacam os neurónios — portanto, fazia sentido ter sintomas de neuropatia periférica. E estes anticorpos, normalmente, são produzidos por neoplasias, tumores malignos. Sabia que tinha os anticorpos, tinha de procurar o tumor. Fiz vários exames, ninguém soube disto.

"Mesmo enquanto estava no hospital, às vezes tentava ler os meus apontamentos deitado. Deitava-me no chão, a tentar trabalhar, para não agravar a dor."

Estava a trabalhar, nessa altura?
Não, já estava de baixa. Ninguém soube disto, a minha psicóloga sim, soube a determinada altura.

Porquê?
Porque estamos a fazer mal a nós próprios e depois fazemos mal às pessoas de quem gostamos. Apesar de tudo isto que me aconteceu, tenho a consciência de que tenho uma carapaça emocional muito fora de série. E isto não é dizer que sou melhor do que os outros. Tenho um percurso de vida que me permite interpretar determinadas circunstâncias com muito mais frieza. Pela minha profissão, pela minha forma de ser, pelas missões humanitárias que já fiz. E a minha mãe, a minha irmã, os meus amigos mais próximos, não me parece que tenham esta capacidade. Portanto, estranhamente, quando estava à procura de uma neoplasia — que não encontrei até agora e que parece, à medida que o tempo passa, que a probabilidade é cada vez menor —, quase que tinha vontade de encontrar alguma coisa. Se eu soubesse o que era: primeiro, compreendia — o que, para mim, era um alívio muito grande do ponto de vista emocional; segundo, podia ser algo tratável, e nisso encontrava um caminho de esperança. É nessa medida que aparece a possibilidade de ser uma neoplasia maligna, pelos anticorpos que vieram positivos, sendo que, provavelmente, vieram positivos associados a outra coisa qualquer.

Nesta busca por um diagnóstico, volta a estar em casa, parado. Tem de parar porque a sua dor não lhe permite trabalhar. Como na primeira pergunta: o que é que lhe dói mais? A dor crónica que tem ou essa limitação?
Essa pergunta, até agora, é a mais fácil: o que me dói é o que eu não consigo fazer. Não posso dizer que tenha dores horríveis e insuportáveis. Aquilo que tenho é uma dor que se agrava com determinadas posturas, nomeadamente a posição sentado, a posição de pé, durante muito tempo. E é por isso que não consigo trabalhar.

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Isso começou logo nessa altura, quando ficou de baixa?
Mesmo enquanto estava no hospital, às vezes tentava, por exemplo, ler os meus apontamentos deitado. Deitava-me no chão, a tentar trabalhar, para não agravar a dor. O que não consigo fazer é o que mais me dói. Não posso dizer que sofro de dores horríveis. Estou muito menos estoico no que diz respeito à tolerância à dor do que estava no início, porque percebi que sou mais feliz se viver menos no sentido social, mas conseguir ter patamares de dor menores. É melhor do que estar a tentar fazer mais coisas e depois ficar vários dias arrependido por estar a sofrer essa dor.

No início tinha essa tentação?
Claro. Achava que aguentava sempre mais um bocadinho. Só que a minha dor acumula e continua no dia a seguir. Portanto, as “asneiras” que eu fizer hoje em termos posturais que façam agravar a minha dor só descarregam ao longo dos dias seguintes — e se eu não acrescentar novos estímulos que me façam mal.

Gustavo Carona é médico intensivista. Quando a dor crónica o obrigou a parar de trabalhar fazia parte da equipa do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Isso significa que, nesta altura, como é que passa os seus dias?
Quase o dia todo deitado, com a cabeça um bocadinho levantada, computador nas pernas, e estou entretido com uma série de projetos que façam o meu coração bater com mais força e me deem sentido para a vida. Consigo andar a pé e ir ao ginásio, consigo fazer algumas coisas normais, não consigo é estar sentado muito tempo sem ter um agravamento da dor muito significativo. Por isso, trabalho — se é que se pode chamar trabalho, é tudo pro bono —, estou a tentar acabar o próximo livro, escrevo crónicas para o Público, agora estou a desenvolver um super-projeto que são uns prémios tipo Globos de Ouro da bondade. E pronto, entretenho-me assim. Sou muitas vezes convidado para falar das minhas missões humanitárias, em faculdades e não só, e tento deixar estas sementes das minhas paixões humanitárias principalmente nos mais novos, com a certeza de que vão fazer mais e melhor.

É a procura de um sentido de vida que sente que se perdeu?
Sim. Depositava demasiada energia na minha paixão de ser médico e na minha paixão de ser ativista humanitário. E perdi a capacidade de exercer medicina — para já, não sei se será para sempre — e a capacidade de exercer medicina além fronteiras, que era um sonho que ocupava muito espaço dentro de mim. Portanto, sim, perdi uma fatia muito grande. Além de que perdi a capacidade de socializar, de beber uma cerveja com os meus amigos, de ter, por exemplo agora, jantares de natal como as outras pessoas. E isso é francamente castrador.

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Tem a mesma sensação de tristeza profunda que tinha em novembro de 2020?
É diferente, isto já passou por tantas fases. Já estive pior. Passo muito tempo sozinho, mas isso, para mim, não é um desafio insuperável. Era quando passava muito tempo sozinho sem um estímulo, sem um propósito. Por exemplo, nas minhas missões, que às vezes incluíam viagens pelo meio, viajava muitas vezes sozinho. E aquela sensação de estar sozinho contra o mundo e tal, por mais que tivesse medo e receios, com a descoberta pelo meio, estimulava-me. Estar sozinho dentro de um quarto não é tão interessante, mas estou a tentar que se torne interessante com essas limitações. Custa-me muito estar muito tempo sozinho, muito tempo em casa, mas acho que estou mais resiliente a esta circunstância. Nós sofremos é pela perda de expectativas, sofremos por aquilo que perdemos. Se nunca tivesse tido aquilo que perdi, não estaria a sofrer com isso. É a velha história do copo meio cheio/meio vazio. Continuo a ter um copo meio cheio com coisas muito boas, mas o meio vazio dói-me tanto, sofro tanto por o copo não estar cheio…! Tenho de aprender a viver com o meio cheio. É esse o percurso que estou a fazer e, nessa medida, acho que neste momento tenho mais ânimo do que noutras fases em que já estive bastante mais triste.

"Há pessoas que encontram zonas de conforto vivendo numa cadeira de rodas, não há porque não encontrar uma zona de conforto com as limitações que tenho."

Esse percurso é também não só em relação à tristeza, mas também um percurso de luta contra alguma raiva, frustração, revolta? A doença física pode levar a isso?
Nunca fui daquelas pessoas que perguntam “porquê eu?”. Sou um homem da ciência e a ciência não se interessa por nós enquanto indivíduos, não está preocupada com o Gustavo, com a Sara, com ninguém. Isso não existe. Isso somos nós a acharmos que o universo se preocupa connosco. Essa visão do mundo é só estúpida, na minha humilde opinião. As doenças acontecem, são falhas da natureza. O que a medicina tenta fazer é combater essas falhas da natureza, e nunca será possível combatê-las a todas. Portanto, nunca fiz a pergunta “porquê eu?”. Agora: aquilo que sinto e que me entristece é que a minha personalidade está diferente. Estou mais irritadiço, mais triste, mais reativo, mais impaciente, agressivo — não no sentido de violento, mas há características que mudaram. Uma pessoa, quando está feliz, tem um poder de encaixe muito grande, todos nós reconhecemos este padrão. E se estivermos num dia irritado, basta alguém buzinar-nos no trânsito e já perdemos a cabeça. No fundo, é ter esse estado quase permanente. É viver permanentemente irritado com aquilo que a vida nos tirou e ter a consciência disso, de que estou uma pessoa menos bonita do que estava há dois ou três anos, antes de isto ter acontecido. E claro que isto me magoa, porque não sei o que fazer. Toda a gente sabe que o sofrimento é uma oportunidade de crescimento, e não é num clique. Portanto, tenho esperança de que esta oportunidade de crescimento venha a trazer-me coisas bonitas. Uma vez escrevi que acho que só conseguimos ser verdadeiramente felizes em relação aos obstáculos que nos puseram à frente quando chegarmos à fase em que agradecemos por eles terem acontecido. Ou seja, ninguém quer ter um cancro, mas há muitas histórias de superação de cancro em que as pessoas se sentem melhores do que eram antes. Claro que não desejo de forma alguma ter isto que tenho, mas há uma certa esperança em mim de que a oportunidade de crescimento dentro deste sofrimento faça brotar coisas que me tragam orgulho, autoestima e autocompaixão. Essa paz interior é tudo aquilo que devemos almejar.

Que papel tem a terapia nesse caminho? Continua  a fazer?
Sim. Gosto muito da minha psicóloga, às vezes saio de lá a pensar que se calhar já está tudo bem e, passado uma semana ou duas, percebo que nem pensar em parar. Faz-me muito bem conversar com ela, é dissecar por camadas o nosso pensamento, muitas vezes é fazer as perguntas certas e fazer com que digamos a nós próprios coisas que são óbvias, mas que ali, ao dizê-lo em voz alta, com compromisso, concentração e consciencialização profunda, têm um resultado diferente. Portanto, sim, continuo — e acho que continuarei durante algum tempo — a ser seguido pela minha psicóloga.

"Ajuda-me que não achem que o Gustavo é aquele pseudo-herói das missões ou da pandemia. Não sou nenhum herói, não quero passar uma imagem daquilo que não sou."

E acha que só vai melhorar quando o seu corpo melhorar também e a dor crónica desaparecer, ou é possível encontrar uma zona de conforto?
Acho mesmo que é possível encontrar uma zona de conforto algures. Não há por que não. Há pessoas que encontram zonas de conforto vivendo numa cadeira de rodas, não há porque não encontrar uma zona de conforto com as limitações que tenho. Não sei quanto tempo durará até chegar lá, mas acredito mesmo que sim, que é possível. Não há nada que dure para sempre e a perceção da normalidade é uma coisa altamente subjetiva. Poderia dar muitos exemplos, alguns até cruéis, mas tudo o que se torna repetido no tempo torna-se normal. Portanto, para mim, isso está a torna-se normal, alguém me convidar para jantar e eu dizer que não posso porque tenho uma doença. Isto no início causava-me imensa tristeza, agora menos.

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Ainda que quem o segue nas redes sociais às vezes note mais amargura nuns dias do que nos outros. Há dias em que não se consegue aceitar essa normalidade?
São palavras, gosto de jogar com palavras e dizer o que sinto. Sim, tenho muitos momentos de tristeza que partilho.

Isso ajuda-o?
Ajuda por dois motivos. Primeiro porque acho que devemos assumir aquilo que somos a todos os níveis, quase como aquele discurso que estamos habituados a ver nos filmes, dos alcoólicos anónimos: “Olá, eu sou o Gustavo e tenho uma doença”. Acho que isto é importante, as pessoas não andarem a tentar esconder o que têm e não têm, o que são e não são, se são mais novas ou mais velhas, mais gordas ou mais magras. Temos de aceitar que somos como somos e gostar daquilo que somos. Portanto, ajuda-me, sim, que não achem que o Gustavo é aquele pseudo-herói das missões ou da pandemia. Pareço um jogador de futebol a falar na terceira pessoa, mas o Gustavo é uma pessoa que, neste momento, tem limitações. Não sou nenhum herói, não quero passar uma imagem daquilo que não sou. Por isso, às vezes partilho alguns momentos de sofrimento que me fazem bem, que são, de alguma forma, catárticos. E acho que também ajuda algumas pessoas a sentir força dentro da sua dor. Não é que seja essa a minha missão, mas sentir que posso ter esse benefício para algumas pessoas dá-me muita alegria.

Agradecimentos: Pestana Hotel Group

“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças. Pode ler aqui as entrevistas anteriores:

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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