“Envolvo-me o menos possível em política” ou “preferia manter-me afastado da política.” As declarações são de Elon Musk e foram proferidas em 2015 e 2021, respetivamente. Em 2024, a posição do fundador da Tesla não podia estar mais distante. A política, seja dos EUA, do Reino Unido ou da Venezuela, tornou-se um dos seus temas prediletos.
As contradições já fazem parte do modus operandi do magnata sul-africano — ficaram bem visíveis no negócio do antigo Twitter. Chegou a desistir da compra, mas quando o caso chegou a tribunal mudou novamente de ideias. O negócio ficou fechado em outubro de 2022, após vários meses de polémica e litígio.
Elon Musk e Twitter. Os capítulos de uma aquisição com contornos de novela
Defensor da liberdade de expressão e de uma quantidade reduzida de moderação nas plataformas online, Musk tem usado a rede social de forma aguerrida. Em vários casos, para entrar em confrontos. Com uma personalidade marcada pela “atração pelo caos”, como foi caracterizado na biografia de 2023, o dono do X está agora cada vez mais interventivo nas questões políticas. Nos EUA, já assumiu publicamente o apoio a Donald Trump, que vai entrevistar na próxima segunda-feira. Ao mesmo tempo, usa o antigo Twitter para criticar a campanha democrata perante os seus 193 milhões de seguidores.
Também já entrou em confronto com Nícolas Maduro devido ao resultado das eleições na Venezuela. Não ficou sem resposta e até recebeu um convite para uma luta. Na Europa, tem criticado o primeiro-ministro britânico Keir Starmer devido aos motins ligados ao ataque a três crianças em Southport, alegando que são usados dois pesos e duas medidas em relação ao tratamento de diferentes comunidades — algo que o governo rejeita. “A guerra civil é inevitável”, declarou Musk sobre Inglaterra. Declarações que o porta-voz de Starmer diz “não terem justificação”.
A tensão aumentou ao ponto de alguns deputados ingleses quererem chamar o empresário ao parlamento britânico para responder sobre o papel que as plataformas sociais estão a desempenhar na escalada de violência nestes motins. A Ofcom, o regulador dos media no Reino Unido, pediu esta semana para que as empresas de redes sociais assumam a responsabilidade de proteger os utilizadores de conteúdos perigosos. À Reuters, Adam Leon Smith, do órgão da indústria BCS, pediu ainda mais iniciativa à Ofcom. “Temos de chegar a uma altura em que um multimilionário estrangeiro dono de uma plataforma tenha de ter alguma responsabilidade quanto está a gerir uma rede de bots tóxicos que se tornou uma das principais fontes de desinformação e notícias falsas no Reino Unido.”
Musk “tem um grande poder mediático”, explica ao Observador John Wihbey, professor associado de inovação nos media e tecnologia na College of Arts, Media and Design da Northeastern University, que também foi consultor de pesquisa no Twitter de 2019 a 2021. Ao mesmo tempo, o empresário “pode definir as regras naquela que é (ainda) uma das plataformas mais importantes do mundo.”
Musk “dá visibilidade a teorias da conspiração e desinformação e ataca visões contrárias à sua”, acrescenta Rita Figueiras, investigadora na área da Comunicação Política e professora da Universidade Católica Portuguesa. Sem moderação no antigo Twitter e também com um dono que se mostra cada vez menos moderado nos confrontos dentro e fora dos EUA, os especialistas temem que a polarização possa dar impulso a “eventos no mundo real alavancados por desinformação”.
“O que torna Musk invulgar é o seu tom e abordagem”
Embora tenha nascido na África do Sul, praticamente toda a vida empresarial de Musk é feita nos Estados Unidos. Durante anos, disse que preferia manter-se afastado da política, intervindo pontualmente em questões ligadas aos seus interesses de negócio, explicou num evento da Vanity Fair em 2015. Em entrevistas, descreveu-se como “moderado”: liberal no que toca a questões sociais e conservador em temas fiscais.
Desde 2000 que Musk tem feito donativos nas presidenciais dos EUA. Tem um registo ambivalente, canalizando milhares de dólares para os democratas (mais concretamente para a campanha de Barack Obama, em 2008) como para os republicanos.
“Se há algo que caracteriza Musk é que diz muita coisa diferente do que faz a seguir”, reconhece Rita Figueiras. A professora e investigadora de Comunicação Política considera que a “crescente intervenção política” do homem mais rico do mundo é um reflexo “da polarização da sociedade americana”. E, desde a compra do antigo Twitter, essa “tal intervenção tornou-se maior, mas também mais monitorizada”. “O facto de Musk ser contra qualquer espécie de regulação e moderação de conteúdo online afastou-o do partido democrata, que defende tais medidas, tornando-se cada vez mais vocal contra quaisquer tipos de restrições do espaço digital”, explica ao Observador.
A especialista lembra ainda “as manifestações contra políticas de identidade promovidas pelas visões mais liberais da sociedade norte-americana” que Musk tem assumido publicamente. O patrão do X tem tido posições contra a imigração e é frequente vê-lo a criticar a “agenda woke”, que considera ser algo que “reside principalmente no Partido Democrata”.
Agora, Musk apoia publicamente Donald Trump, o candidato republicano às presidenciais de novembro. “Apoio totalmente o Presidente Trump e espero que tenha uma rápida recuperação”, anunciou na rede social que comprou, pouco tempo depois do atentado contra o ex-presidente, num comício na Pensilvânia. Não se tratará só de apoio público: o Wall Street Journal avançou que Musk pretende doar 45 milhões de dólares por mês para um novo comité de ação política a favor de Trump. Musk usou o ex-Twitter para responder ao jornal com um meme que dizia “fake gnus”, um jogo de palavras com “fake news”.
I fully endorse President Trump and hope for his rapid recovery pic.twitter.com/ZdxkF63EqF
— Elon Musk (@elonmusk) July 13, 2024
Donald Trump. “Ouvi um zumbido, tiros e senti imediatamente uma bala a rasgar a pele”
O professor norte-americano John Wihbey explica que “neste ciclo eleitoral há muitos executivos da tecnologia dos EUA que estão a apoiar candidatos”. Enquanto Trump tem o apoio dos conhecidos investidores Marc Andreessen e Ben Horowitz, dos gémeos Winklevoss (processaram Zuckerberg após a fundação do Facebook) ou de David Sacks, amigo de longa data de Musk e antigo executivo da PayPal, a candidata democrata, Kamala Harris, recebeu o apoio de cem executivos da tecnologia na carta “VC for Kamala”. A lista conta com o “tubarão” Mark Cuban, o fundador do LinkedIn, Reid Hoffman, ou Vinod Khosla, o dono da capital de risco Khosla Ventures. Mark Zuckerberg, o dono do Facebook e Instagram, já disse que vai manter-se afastado e que não apoiará publicamente nenhum candidato.
“Em muitas outras eras de história dos media, os publishers e os donos de media têm feito por vezes o mesmo e muitos usaram os seus jornais, estações de TV e de rádio e sites para promover os seus candidatos favoritos”, reconhece o professor, realçando que “até há uma plataforma, a Truth Social, que é controlada por um candidato político”, referindo-se a Trump.
“O que torna Musk invulgar” nesta questão “é o tom e a abordagem — com frequência provocadora e pensada para impulsionar o ciclo noticioso”. Em relação a Trump, o académico considera “que não é meramente um apoio”, já que Musk “está a intervir em eventos de forma ativa e a criar os seus próprios ciclos noticiosos”. “É quase como um tipo de campanha paralela.” Na próxima segunda-feira à noite, 12 de agosto, Musk deverá entrevistar Trump. Na Truth Social, o candidato republicano falou numa “grande entrevista com Elon Musk”, prometendo mais detalhes.
Rita Figueiras acredita que “o problema não seja Musk apoiar um dos lados” mas sim “conduzir a rede [social] de acordo com a sua visão” e geri-la à “imagem dos seus interesses e opiniões, sem entender o X como uma entidade com responsabilidade social”. Dá como exemplos as partilhas de “teorias de conspiração e desinformação” e os ataques “a visões contrárias” que têm pautado as intervenções de Musk online. “Em momentos críticos, como aquele que a Inglaterra está a atravessar, escreve e partilha mensagens incendiárias, divisivas e instigadoras de ódio, o que também valida comportamentos pouco conciliatórios”, defende a professora.
Ausência de moderação no X alarma antes das eleições
Até à compra do Twitter, Musk acreditava que havia vozes mais censuradas do que outras. Por isso, quando chegou ao poder, abriu novamente a porta a vários nomes que foram suspensos da rede social, incluindo Trump ou o britânico Tommy Robinson, ex-líder da English Defence League. “Abriu espaço a que muitas contas de extrema-direita, e associadas à desinformação e teorias da conspiração, regressassem à rede e outras surgissem”, explica a professora de Comunicação Política, Rita Figueiras.
Fez várias mudanças desde a aquisição. Algumas de cosmética, como a mudança de nome para X, e outras para dar força à teoria de uma “praça pública de discurso”. Já outras, como a mudança das diretrizes da plataforma e a redução das equipas de moderação, tiveram efeitos práticos.
Durante anos, o Twitter atribuía os “selos de verificados” a algumas contas, para que os utilizadores pudessem comprovar que estavam a interagir com o perfil correto de um político, ativista ou artista. Musk mudou as regras do jogo e o selo azul passou a estar ao alcance de todas as pessoas que estivessem disponíveis a pagar por uma subscrição. Instalou-se a confusão, com contas que se faziam passar por políticos ou empresas. A decisão foi criticada e o X já foi acusado pela Comissão Europeia de infrações à Lei dos Serviços Digitais por essa mudança, que está a “enganar os utilizadores”.
A decisão de Musk, realça Hélder Prior, investigador na área da comunicação política, “adiciona uma camada de complexidade”, já que os “utilizadores podem questionar a autenticidade de informações provenientes de contas verificadas”. Acrescenta que o facto de se “comprar verificação pode facilitar a propagação de desinformação, já que contas mal-intencionadas podem parecer mais legítimas aos olhos dos utilizadores”. Dá-se legitimidade a contas “que não só escondem os seus fins propagandísticos e partidários, como ainda possuem um selo de confiança, conferindo, paradoxalmente, credibilidade a conteúdos falsos”.
“Desde que comprou o Twitter, Musk tem desinvestido na moderação de conteúdo e promovido um ambiente favorável às teorias da conspiração e desinformação — cuja criação e disseminação de fake news é potenciada pelo Grok, o chat de IA do X”, contextualiza Rita Figueiras. O dono da Tesla e do X “diz que o faz por ser um apoiante sem limites da liberdade de expressão, mas tal não é verdade, uma vez que faz várias retaliações contra quem o questiona ou discorda dele.”
A professora admite que os conteúdos prejudiciais aumentem sem moderação, mas que isso também possa ser uma oportunidade para Musk rentabilizar um negócio que custou 44 mil milhões de dólares e que está longe de valer metade desse valor. “Ou seja, a proliferação de conteúdos prejudiciais em contexto eleitoral é um misto de posição ideológica e oportunidade de negócio”, considera.
Hélder Prior, professor auxiliar na Universidade Autónoma de Lisboa, contextualiza que, nas redes sociais, “o valor dos conteúdos não é medido pela verdade, objetividade ou pela factualidade, mas antes pela atenção e envolvimento que geram. Conteúdos com alta capacidade para viralizar, mesmo que sejam falsos ou manipulados, são impulsionados pelos utilizadores e pelos algoritmos da rede”. Desta forma, as redes sociais “lucram com polarização ideológica, desinformação e discurso de ódio, porque são os conteúdos que geram mais envolvimento emocional nos utilizadores e esse envolvimento representa lucros em publicidade comercial”.
Nesse sentido, acredita também que “Musk pode estar mais motivado a envolver-se em debates políticos para aumentar o tráfego e a interação na plataforma”.
Mas mesmo sem moderação e com muitas críticas ao papel que a rede social está a ter na polarização política, o antigo Twitter mantém a relevância no discurso político. O maior exemplo é ter sido a rede social escolhida por Joe Biden para anunciar a saída da corrida à Casa Branca, abrindo o caminho a Kamala Harris.
Joe Biden desiste da corrida à Casa Branca e apoia Kamala Harris para candidata democrata
“A relevância do X mantém-se porque os americanos continuam a considerá-lo a rede mais importante para acompanhar a política, ainda que haja diferentes perceções entre eleitores democratas e republicanos”, nota Rita Figueiras. “Os últimos consideram que esta rede contribui para a democracia, enquanto os democratas a vêem como prejudicial e como uma rede enviesada.”
Musk restabelece conta de Donald Trump no Twitter após sondagem de 24 horas
E tem o próprio Musk relevância para poder desestabilizar de alguma forma o panorama político? “Musk é relevante, claro que sim”, diz Rita Figueiras. “Cada tweet ou retweet que faz chega a milhões de pessoas, para além da divulgação que os media fazem do que diz. Se somarmos o facto de ser o homem mais rico do mundo, tudo o que faz e diz produz consequências.”
O professor Hélder Prior também reconhece que Musk, “sendo uma figura altamente influente e dono de uma plataforma com alcance como o X, tem o potencial de influenciar a opinião pública”. “O X tem milhões de utilizadores ativos e a plataforma tem a capacidade e o alcance de amplificar mensagens políticas rapidamente, como irá acontecer com a entrevista que Elon Musk protagonizará com Donald Trump” na próxima segunda-feira. Ainda que “tais mensagens circulem, essencialmente, junto de públicos e bolhas de eleitores já convertidos ao trumpismo, podem ter a capacidade de influenciar eleitores indecisos, além de condicionar a agenda dos meios de comunicação tradicionais, que cada vez mais prestam atenção às mensagens que circulam no ecossistema digital”.
Não há só polémica na política: a guerra com os anunciantes e o regresso do processo contra Altman
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Praticamente desde que comprou o antigo Twitter que Musk tem estado em guerra com os anunciantes, críticos da ausência de moderação na rede social. Várias empresas, como a IBM, Walt Disney ou a Apple, decidiram suspender a publicidade no X, temendo que os seus anúncios surgissem ao lado de conteúdo perigoso ou falso.
Esta semana, o X passou à fase seguinte e avançou com um processo contra a World Federation of Advertisers, uma aliança publicitária global e contra várias empresas, como a Mars, Unilever ou a CVS Health, pelo tal boicote que terá levado à perda de “milhares de milhões de dólares em receita publicitária”. Na perspetiva da rede social, os anunciantes terão alegadamente conspirado para penalizar o X, de acordo com o processo que foi apresentado no tribunal do Texas.
Já em março, Musk apresentou um processo contra a dona do ChatGPT e os dois fundadores, Sam Altman e Greg Brockman. O patrão da Tesla e do X considera que foi um dos impulsionadores da empresa de inteligência artificial, mas sente-se traído porque o que começou como uma organização sem fins lucrativos é agora uma empresa avaliada em vários milhões.
Sem explicações, Musk retirou o processo em junho e foi assumido que a questão teria ficado resolvida. Até que, na terça-feira, o New York Times avançou que Musk apresentou um segundo processo no tribunal do Norte da Califórnia. Os contornos são os mesmos da queixa anterior: Musk sente-se “traído pelo senhor Altman e os seus cúmplices”. A OpenAI remeteu para a informação de resposta ao processo inicial. “Como dissemos sobre o processo inicial de Elon, que foi retirado, os emails dele falam por si”, respondeu um porta-voz da dona do ChatGPT.
Mas a política e os negócios são campos muito diferentes, destaca o norte-americano John Wihbey. “Certamente, no contexto da instabilidade no Reino Unido estamos a vê-lo fazer afirmações que poderiam dar gás a mais tumultos nas ruas. Mas é importante lembrar que ele não tem um movimento político organizado ou coerente a apoiá-lo”, frisa o professor de Media e Inovação. “É altamente idiossincrático e inconsistente em termos de participação política. Às vezes não é claro quem ou o que é que ele representa ideologicamente.”
“Pode fazer barulho e atirar dinheiro para uma campanha, mas a política bem sucedida requer disciplina, criar um movimento, uma organização. Elon tem tido sucesso nos negócios, mas a política é outro jogo”, considera o professor.
Mesmo com a inconsistência política, a polarização criada por Musk com cada tweet poderá gerar problemas. “Podemos ver um momento real de crise, em que há muitos eventos do mundo real que se movem muito depressa e que estão a ser impulsionados pelos danos da desinformação e por incentivos à violência”, nota John Wihbey. “Isto foi o que aconteceu a 6 de janeiro de 2021 [assalto ao Capitólio, na transição de poder entre Donald Trump e Joe Biden] em que havia moderadores no Twitter mas que falharam”, exemplifica.
“Agora podemos ver algo ainda mais perigoso”, antecipa o especialista. “Ao mesmo tempo, as autoridades e as instituições já viram o potencial e têm tempo para se preparar para os cenários. Temos de ter esperança de que estejam a tomar medidas e a preparar-se para o pior.”