Numa altura em que o Governo está a montar hospitais de campanha em Lisboa — e não só — para fazer face ao crescente número de casos do novo coronavírus, os Serviços de Assistência Médico-Social (SAMS), que são geridos pelo Sindicato dos Bancários Sul Ilhas (SBSI) — atual Mais Sindicato —, têm todas as suas unidades de saúde fechadas, nomeadamente o hospital localizado nos Olivais, que não tem data prevista de reabertura. Quem mandou fechar o hospital e porquê, numa altura tão complexa para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), em que está a ser feita uma articulação com o setor privado, para garantir o cuidado de um número cada vez maior de doentes?
Contactada pelo Observador, a Direção-Geral de Saúde (DGS) garante que a autoridade de saúde local apenas determinou o “a suspensão provisória” da urgência e não de toda a unidade hospitalar: “A Autoridade de Saúde Local determinou a suspensão provisória de atividade do Serviço de Urgência do hospital, como medida cautelar, na sequência da deteção de casos confirmados de COVID-19 em profissionais de saúde neste serviço. O encerramento de toda a unidade dos SAMS nada tem a ver com esta determinação da Autoridade de Saúde Local”, refere a DGS.
Uma resposta que contradiz a afirmação do presidente da Comissão Executiva dos SAMS, que afirma que “o encerramento do hospital não foi uma decisão de gestão, foi uma decisão das autoridades de saúde”, dizendo que o fecho total foi uma consequência inevitável da suspensão da urgência: “Fecharam a urgência e a configuração do nosso hospital, a circulação dos nossos trabalhadores e, além do mais, o facto de terem aparecido muitos trabalhadores positivos — não é infetados, é positivos — fez com que tomássemos a decisão”, garante Rui Riso ao Observador.
O Observador enviou várias perguntas ao Ministério da Saúde relativamente a esta situação para perceber se iria decretar uma requisição civil aos profissionais e estabelecimentos dos SAMS — tal como pediu o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) no passado dia 26 de março —, admitindo que o hospital, bem como os seus profissionais de saúde e os equipamentos, poderiam estar ao serviço do SNS para dar resposta a esta pandemia e se há uma data para a reabertura daqueles serviços. Até ao momento, contudo, o Observador não recebeu qualquer resposta do ministério tutelado por Marta Temido.
De acordo com o secretário-geral do SIM, o Governo não só não responde ao pedido de requisição civil, como, segundo o presidente dos SAMS, não questionou o hospital relativamente à cedência de profissionais. “O Estado sabe que, se quiser requisitar os profissionais, requisita de uma forma geral. Alguns dos nossos profissionais já trabalham noutros locais”, afirmou Rui Riso ao Observador, este sábado por telefone, ainda que admita que a resposta pode não ser um simples ‘sim’. “Se o Estado disser ‘precisamos de 10 médicos’, se calhar perguntaremos: ‘mas quando tivermos em condições de abrir, devolvem-nos?’ É preciso também saber o que se anda aqui a fazer, senão também vão ter de me arranjar médicos.”
As mesmas reticências aplicam-se relativamente aos materiais: “Os equipamentos não podem andar de hospital em hospital. Uma das coisas que é fundamental nós fazermos também — e vai ser feita — é higienizar os ventiladores. Nós só estaremos em condições de fazer seja o que for com o SNS depois de ter concluído o projeto de higienização, que provavelmente ficará terminado no final desta semana, porque é a isto que os protocolos obrigam.”
Isso significa que, depois desse processo — que só começou mais de uma semana depois da ordem de suspensão provisória da urgência pelas autoridades de saúde —, o hospital dos SAMS será reaberto? Rui Riso não soube dizer: “Não sei. Quando este processo todo de higienização acabar e eventualmente depois de alguma fiscalização que seja feita. Isto é um processo muito complexo.”
Higienização e urgência no edifício hospitalar: as justificações para o encerramento
A higienização foi, aliás, um dos motivos apontados pelo presidente da Comissão Executiva do SAMS para o encerramento da unidade hospitalar. “O hospital foi todo encerrado porque nós entendemos — e de acordo com a DGS — que o hospital precisava de ser higienizado. A urgência não está num edifício à parte e, ao fazer parte do edifício do hospital, há uma série de coisas que têm em comum, nomeadamente circulações de ar.”
Para dar início a este processo, indica o responsável, os 26 doentes que estavam internados no hospital foram colocados pela autoridade de saúde noutras unidades hospitalares. A higienização começou este sábado — mais de uma semana depois da determinação da autoridade local de saúde, que ocorreu a 20 de março, segundo Riso: “A higienização começou hoje [sábado] relativamente aos ares condicionados e vai-se prolongar na semana toda. Não somos nós que fazemos, é uma empresa. As empresas não estão ali atrás da porta quando nós precisamos, não vêm logo no dia seguinte, vêm também quando têm funcionários disponíveis e é isso que vai acontecer.”
O facto de a urgência estar integrada no edifício do hospital foi outro dos argumentos utilizados pelo presidente da Comissão Executiva do SAMS para justificar o encerramento de todo o hospital. É que, apesar de a determinação da autoridade local de saúde visar apenas a urgência, Riso defende que, uma vez que este serviço está localizado no edifício do hospital, não fazia sentido manter o resto da unidade a funcionar, até porque a urgência era a única porta de entrada para o hospital: “O hospital e a urgência é um edifício só. Tem uma parte efetivamente da urgência, mas as pessoas circulam por todo o hospital”, diz Rui Riso. “Sendo que, naquele momento, todos os doentes que entrariam para o internamento do hospital — não havendo atividade programada — entrariam pela urgência e a urgência está fechada, entendemos que o hospital tem de fechar, porque não temos outra forma de admitir doentes.”
Fechar para higienizar é “desculpa de mau pagador”
Para o secretário-geral do SIM, esta situação não passa de “uma desculpa de mau pagador”: “Se assim fosse, tinham fechado logo quando foi identificado o primeiro caso de infeção e [o hospital] esteve uma semana a laboral, pondo em risco os profissionais.”
De acordo com o sindicalista, por não terem sido tomadas “medidas drásticas” necessárias quando foi identificado um doente infetado com o novo coronavírus no hospital, vários profissionais de saúde ficaram infetados. “Ao invés de tomarem as medidas drásticas a que uma situação destas obrigava — e com a conivência do responsável regional da saúde, Mário Durval —, mantiveram o hospital aberto durante cerca de uma semana. Acontece que oito médicos ficaram contaminados, 12 enfermeiros e mais dois técnicos. Três destes médicos passaram pelos cuidados intensivos e estão a recuperar, mas um deles ainda está bastante debilitado.”
Só nessa altura, “e aproveitando a declaração do Estado de Emergência”, é que se procedeu ao encerramento do hospital. “E, ao mesmo tempo, fecham todas as outras instituições que, ao longo do ano, têm prestado bons e altamente qualificados serviços de saúde”.
“O meu centro de saúde está aberto. O hospital Santa Maria está aberto. O hospital São João está aberto. Se há um piso contaminado, fecha-se esse piso e desinfeta-se, e por aí fora. Nada disso aconteceu”, continua Jorge Roque da Cunha. “Havia a possibilidade de identificar os problemas, higienizar aquilo que haveria para higienizar, criar circuitos alternativos de entrada para se evitar [zonas contaminadas]. O hospital São João tem doentes internados, o Santa Maria também e continuam a funcionar, a fazer cirurgias, dando segurança aos profissionais”.
E é o próprio presidente dos SAMS a admitir que uma situação semelhante à do hospital, mas no serviço de oncologia do Centro Clínico — teve um caso positivo de novo coronavírus —, não levou ao encerramento total do serviço. Pelo contrário: apesar do encerramento do centro clínico, a oncologia é dos poucos serviços que continua em funcionamento.
“Mantivémos aberta a oncologia naquilo que podíamos manter aberto. Também tínhamos um médico que foi positivo na oncologia, portanto a parte onde ele atuava ficou de quarentena — vai reabrir na segunda-feira ou na terça-feira. De todas as pessoas, mais nenhuma deu positivo. A unidade de oncologia não fechou, fechou foi aquela área. Mantivemos aberta também a radiologia. Estamos a fazer muita radiologia para o hospital Santa Maria, para o IPO, para o hospital do Barreiro e para os nossos doentes, obviamente. Essa parte manteve-se aberta, porque aquilo tem de alguma maneira uma divisão física e a área da quimioterapia ficou suspensa naquilo que devia ficar suspensa”, explica Rui Riso.
Além dos SAMS, não há notícia de qualquer outro hospital com casos de infeção pelo novo coronavírus ter fechado por completo para fazer uma higienização durante esta pandemia. Isso mesmo diz ao Observador fonte de Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo: em alguns casos, foram apenas fechadas unidades de saúde específicas, de forma temporária — ou para desinfeção ou porque a necessidade de pôr vários profissionais de quarentena fez com que não houvesse pessoas suficientes para funcionar; ou foram encerradas algumas áreas, mantendo outras em funcionamento — como, aliás, foi feito em relação ao próprio Centro Clínico dos SAMS, no serviço de oncologia.
“Não esperávamos receber ninguém” com coronavírus
As notícias do encerramento do hospital dos SAMS surgiram no início da semana passada. O secretário-geral do SIM explica ao Observador que os sindicatos foram chamados pelos SAMS no dia 20 de março “para tomar conhecimento de que iriam iniciar o processo de lay-off”: “Na segunda-feira [23 de março] foi comunicado a 120 médicos, 200 enfermeiros e mais técnicos de fisioterapia, análises e administrativos.”
Foi precisamente no dia 20, explica Rui Riso, que a autoridade de saúde decidiu encerrar o serviço de urgência, sendo que foi o próprio hospital a chamar a entidade, após várias pessoas terem ido à urgência com sintomatologia associada ao novo coronavírus. Nessa altura, acrescenta o presidente da Comissão Executiva do SAMS, o hospital já tinha suspendido a atividade programada, porque estava a preparar “a entrada na rede de apoio ao SNS” e tinha 26 doentes internados.
“Nós não esperávamos receber ninguém que tivesse aquela sintomatologia, porque as pessoas têm de ligar para a Saúde24 e a Saúde24 nunca encaminharia ninguém para lá. É a lógica do sistema”, afirma o responsável pelo hospital, referindo que esta situação criou uma “conflitualidade pesada”: o hospital não atendia pessoas infetadas, mas os utentes exigiam ser vistos por serem beneficiárias dos SAMS.
“Chamámos a Direção-Geral de Saúde, não para pôr ordem nisto, mas para apreciar a situação”, indicou Riso, acrescentando que recorreram a esta entidade porque “nem sequer” estavam a conseguir colocar os utentes suspeitos de infeção noutros hospitais.
Na altura, explica ainda, nenhuma unidade hospitalar “que não fizesse parte dos hospitais de primeira ou de segunda linha” podia ficar com estes utentes. “Perante isto e perante o número de trabalhadores que nós tínhamos infetados ou positivos, o senhor delegado de saúde mandou encerrar.”
Segundo Rui Riso, o novo coronavírus entrou pelo hospital através dos profissionais de saúde: “Primeiro apareceram médicos com a doença e só depois é que apareceram doentes positivos, o que faz supor que isso apareceu no nosso hospital por via dos profissionais e não por via dos doentes”, explicou ainda o responsável pelos SAMS. Admite que pode ter sido um médico a contagiar alguns doentes, mas desvaloriza: “Houve um médico que estaria positivo e que depois acabou por adoecer e terá contaminado cinco doentes em 26, portanto também não é uma hecatombe”. Casos de infeção que obrigaram a que vários trabalhadores ficassem de quarentena.
Centro clínico e outras clínicas já estavam fechadas
Mas antes do encerramento da unidade hospitalar, já o Conselho de Gerência e a Comissão Executiva dos SAMS tinham decidido fechar o centro clínico de Lisboa — situado na Rua Fialho de Almeida, perto do El Corte Inglês —, mantendo apenas algumas atividades abertas. Esta unidade, segundo Rui Riso, chega a ter duas mil consultas por dia e a receber cerca de cinco mil pessoas, entre profissionais, doentes e acompanhantes.
Esta decisão, refere o responsável pelos SAMS, prendeu-se com o facto de o país ter passado do estado de alerta para o estado de emergência, com a necessidade de “reforçar a capacidade do hospital”, uma vez que havia vários profissionais de quarentena, porque estiveram em contacto com pessoas infetadas, fosse no próprio SAMS, fosse noutros hospitais onde exerciam atividade — “essa foi pedra-de-toque fundamental” —, e com o facto de o edifício, pela forma como está estruturado e pela sua organização, “poder criar uma potencial cadeia de contágio”.
“A decisão foi tomada no dia 19, tem a ver com o termos passado do estado de alerta para estado de emergência. As recomendações eram para as pessoas não saírem de casa, portanto não fazia sentido termos um centro clínico aberto para as pessoas irem a consultas de rotina que podem ser adiadas e foi aí que tomámos uma decisão. Aproveitámos os recursos, fechámos e quebrámos uma potencial cadeia de contágio, uma vez que tínhamos alguns profissionais positivos e que circulam, porque a atividade deles reparte-se entre o hospital e o centro clínico”, explica Rui Riso.
Além de fechar o centro clínico, foi também decidido fechar as clínicas periféricas: “Fechando o centro clínico porque precisamos dos profissionais e porque os profissionais passam do centro clínico para o hospital e para as clínicas periféricas, decidimos também encerrar as clínicas periféricas, sob penas de as pessoas deixarem de ir ao centro clínico e irem sobrecarregar as periféricas, que não têm condições para tantos fluxos de doentes.”
Todos os serviços clínicos, que inclui o centro clínico de Lisboa e as clínicas periféricas e regionais,fecharam a partir de 20 de março — dia da determinação da suspensão temporária da urgência do SAMS —, como se pode ler numa nota publicada no site do SBSI e que data de dia 19 de março.
“Temos ali um hospital excelente, de mão cheia, um centro clínico espetacular e está tudo fechado”, lamenta o secretário-geral do SIM, considerando que o centro podia estar em funcionamento para atender os seus utentes.
“É uma lamentável falsidade de quem objetivamente e oportunisticamente pretende aproveitar o momento de desgraça do país para ir buscar dinheiro à Segurança Social, em vez de contribuir ativamente, como era sua obrigação, para ajudar a mitigar o problema, numa situação de retaguarda ou mesmo de primeira linha”, afirmou Roque da Cunha, considerando também lamentável o facto de os beneficiários do SAMS — cerca de 90 mil pessoas — continuarem a descontar e o sindicato dos bancários continuar a receber as suas comparticipações.
Sindicato Independente dos Médicos apela ao Sindicato dos Bancários para não encerrar SAMS
O presidente da Comissão Executiva do SAMS indicou ainda ao Observador que quando o centro clínico fechou, havia cinco casos positivos do novo coronavírus no hospital. Contudo, à TSF, no dia 23 de março — três dias depois do encerramento —, adiantou que além de cinco doentes que deram positivo para o novo coronavírus, havia 18 profissionais infetados: 13 dos quais já tinham conhecimento e cinco deram positivo nesse dia.
Declarações que contrariam aquilo que se lê num esclarecimento de Rui Riso, publicado a 27 de março: “À data [da suspensão dos serviços clínicos do SAMS] não tínhamos qualquer caso de COVID-19 no nosso universo de profissionais nem de doentes – sendo que todos são rastreados no momento do internamento. A suspensão da atividade no Hospital dos Olivais não foi uma decisão de gestão, mas uma determinação da DGS perante o número de casos positivos detetados, maioritariamente entre profissionais.”
A verdade é que as primeiras notícias de casos de infeção no SAMS remontam a 16 de março, como se pode ler no Diário de Notícias. Segundo Rui Riso, “dos 710 ou 715 testes que foram feitos, 70 deram positivos dos vários grupos profissionais, sendo que apenas três estão doentes”.
Apesar das várias críticas — além dos sindicatos dos médicos, o deputado do Bloco de Esquerda Moisés Ferreira, num artigo de opinião no jornal Público, acusou a administração do hospital de sobrecarregar o SNS quando este “se confronta com uma epidemia que levará ao limite a sua capacidade de resposta” —, o presidente da Comissão Executiva do SAMS não se arrepende das decisões tomadas.
“Se há medidas impopulares, a medida impopular não foi fechar o hospital, porque a decisão não foi nossa. A decisão impopular foi fechar o centro clínico: pôs as pessoas todas em brasa a dizer que tínhamos virado as costas. Nós não virámos as costas, procurámos protegê-las a elas e aos trabalhadores e sobretudo fazer com que não saíssem de casa”, diz Riso. “Prefiro hoje estar aqui a explicar porque é que está fechado do que estar daqui a 15 dias a explicar porque é que há tantos infetados naquele universo.”