O primeiro corte da taxa de juro na zona euro, depois da forte escalada entre 2022 e 2023, deverá ser anunciado esta quinta-feira pelo Banco Central Europeu (BCE) – é um dado adquirido, dizem os analistas, e é algo que os mercados financeiros já anteciparam nas últimas semanas com uma ligeira descida das taxas Euribor. A confirmar-se a decisão, o consenso no BCE deverá optar por uma descida pequena – de 4% para 3,75% – mas a verdadeira “batalha” será travada em torno do que será feito a seguir: deve ou não haver um novo corte logo na reunião seguinte, em julho? Mário Centeno já deu a entender que estará entre as “pombas” do BCE que querem ver o banco central a baixar os juros novamente no próximo mês.
A descida dos juros – que deverá ser confirmada às 13h15 (hora de Lisboa) e explicada logo depois em conferência de imprensa de Lagarde (às 13h45) – será a primeira desde setembro de 2019. Pouco depois dessa última redução de juros pelo BCE, para o valor negativo de -0,5%, surgiu a pandemia de Covid-19, à qual o banco central respondeu não só com juros negativos mas, também, com potentes programas de estímulo monetário e injeção de liquidez. Depois, em julho de 2022, começou a inversão que levou a principal taxa de juro na zona euro (a chamada “taxa dos depósitos”) para os atuais 4%, nível considerado necessário para contrariar as pressões inflacionistas que se geraram nos últimos anos.
Mas nesta fase está iminente o início de outra inversão de rumo: o momento em que as taxas de juro começam a descer para níveis menos restritivos da atividade económica. E é neste contexto que está a agravar-se o fosso entre os chamados “falcões” e as “pombas” do BCE – os primeiros, liderados pela Alemanha, são aqueles mais avessos aos riscos de inflação; e a segunda designação descreve os governadores mais preocupados com o impacto das taxas de juro elevadas na atividade económica.
O português Mário Centeno tem-se afirmado como uma das principais “pombas” do BCE nos últimos meses, um dos primeiros a considerar o surto inflacionista controlado (algo que vários governadores ainda hoje se recusam a fazer). E foi, aliás, um dos “vários” governadores que, apurou o Observador, defenderam na reunião de 11 de abril que as taxas de juro deveriam ter tido uma primeira descida logo nesse dia. Não foi isso que acabou por ser decidido, o que não impediu Centeno (e outras “pombas”) de nas últimas semanas defenderem publicamente que as taxas de juro devem baixar de forma gradual, sim, mas com relativa rapidez.
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“Não podemos querer tudo de uma vez só, nem podemos ter isso”, reconheceu Mário Centeno na semana passada, na apresentação de um relatório do Banco de Portugal em Lisboa. O representante português no Conselho do BCE defendeu que a autoridade monetária deve analisar os dados económicos que vão chegando, “de reunião para reunião”, mas não escondeu o seu prognóstico sobre aquilo que esses dados vão mostrar: “estou certo de que, estando o processo de desinflação na área do euro bastante consolidado, esse processo de redução das taxas vai continuar“.
Novo corte das taxas em julho, aproveitando “mãos atadas” da Alemanha?
Chegar ao período de férias de verão com juros nos 3,75% ou 3,5% não é tão importante pelo nível da taxa de juro, per se. Mas será totalmente diferente, do ponto de vista da perceção dos mercados financeiros, chegar a agosto tendo sido feito apenas um pequeno corte de juros (em junho) ou, então, tendo sido decididos dois cortes da taxa de juro consecutivos.
No segundo cenário, seria previsível que as taxas Euribor baixassem de forma mais pronunciada nos próximos meses, já que estes são indexantes calculados a partir dos juros a que os bancos emprestam uns aos outros. As Euribor não são “decretadas” pelo BCE mas tendem a seguir de perto (e antecipar) as decisões anunciadas pela autoridade monetária. Um novo corte em julho não é o cenário mais provável, dizem os analistas, mas não se pode excluir que isso aconteça.
“Sem dúvida que existe a hipótese de que as ‘pombas’ do BCE, que são numericamente superiores dentro do Conselho, possam aproveitar a oportunidade e provocar um segundo corte da taxa de juro já em julho“, afirma Marco Wagner, analista do banco alemão Commerzbank, em nota de antecipação da reunião desta quinta-feira.
A reforçar a possibilidade de haver um segundo corte já em julho está o facto de que, devido à rotação normal de direitos de voto no Conselho do BCE, não irá poder votar na reunião de julho o governador do banco central alemão (Joachim Nagel), tipicamente um líder dos “falcões”. As decisões no BCE são sempre colegiais e solidárias (o que não acontece, por exemplo, no Banco de Inglaterra) mas, apesar disso, o facto de Nagel não votar é algo que aumenta a probabilidade de em julho ser anunciado um novo corte.
Mário Centeno sublinhou, na última semana, que a inflação na zona euro (2,6% em maio, segundo o Eurostat) está num nível inferior à taxa de juro, que é de 4%. Nem sempre foi assim: há um ano, por exemplo, a taxa de juro estava em 3,25% e a inflação em mais de 6%. Ou seja, do ponto de vista “real“, ou seja, descontando a inflação, a taxa de juro está num nível positivo (acima de zero), o que não acontecia há um ano, quando era negativa.
Isto significa, disse Centeno, que ainda se vive uma situação de “aperto financeiro” em relação à qual o BCE precisa de estar “alerta”. “Não podemos descurar o facto de a taxa de juro estar hoje mais alta, do ponto de vista real, do que esteve ao longo de todo o ciclo de aperto financeiro“, afirmou Mário Centeno, acrescentando que “as taxas de juro reais que estávamos a enfrentar foram, durante muito tempo, negativas e isso não acontece hoje”.
Sem ser demasiado explícito, o governador do Banco de Portugal deu a entender que irá continuar a defender, no Conselho do BCE, que as taxas de juro estarão num nível suficientemente restritivo mesmo que haja mais uma descida.
É isso que prevê Marco Wagner, analista do Commerzbank: em julho, “as ‘pombas’ podem argumentar que, apesar do primeiro corte feito em junho, as taxas de juro reais não deverão baixar”. Porquê? Porque havendo “uma tendência de descida da inflação”, mesmo que haja mais um corte em julho, para 3,5%, “a política monetária irá continuar restritiva” e, por isso, há margem para baixar mais 25 pontos-base no próximo mês.
Inflação baixa mas "BCE deve continuar vigilante"
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Após atingir o “pico” de 10,6%, em outubro de 2022, o índice anual de preços ao consumidor na zona euro ficou em 2,6% em maio de 2024. A mesma tendência de queda pode ser vista na inflação subjacente, aquela que exclui elementos mais voláteis como os preços da energia e dos alimentos frescos: após atingir o pico de 5,7% em março de 2023, caiu para 2,9% em maio.
Os analistas da Allianz Global Investors dizem que “embora a queda da inflação tenha sido notável no período recente, o BCE deve continuar vigilante sobre os potenciais efeitos de segunda ronda após o aumento dos salários (os salários negociados aumentaram 4,7% na zona euro no primeiro trimestre), bem como os desenvolvimentos em outros custos, como os do transporte marítimo, impactado pela crise no Mar Vermelho”.
O analista do Commerzbank assinala que alguns membros do BCE, como o estónio Madis Müller, já “rejeitaram explicitamente que possa haver um segundo corte logo em julho”. E até alguns membros vistos como pertencendo mais ao lado das ‘pombas’, como o espanhol Pablo Hernández de Cos, têm admitido que talvez o melhor seja ter uma posição cautelosa depois do corte de junho. É por estes comentários que, ainda assim, o mais provável aos olhos deste analista (e de todos, de um modo geral) é que em julho não haja um novo corte.
Mercados antecipam entre dois a três cortes dos juros em 2024
O economista-chefe do BCE, Philip Lane, indicou na semana passada que as taxas de juro têm de continuar em território “restritivo” pelo menos até final do ano. Na linguagem dos bancos centrais, as taxas de juro só podem estar numa de três situações: num nível “acomodatício“, ou seja, num valor baixo que estimula a atividade económica, num nível “restritivo“, em que os juros elevados constrangem o crescimento do crédito, ou num nível “neutral“.
O BCE nunca disse exatamente onde é que está esse nível “neutral” nas taxas de juro, embora se estime que esteja entre 2% e 2,5%. Ou seja, ao afirmar que as taxas têm de continuar num nível “restritivo” pelo menos até ao fim do ano, Philip Lane está a reforçar que pode haver mais cortes nos próximos meses mas não estará para breve que elas possam chegar a 2% (ou mesmo a 2,5%).
A expectativa dos mercados financeiros é que, depois do corte de junho, poderá haver novas descidas em setembro e dezembro. Ou seja, movimentos sempre acompanhados pela divulgação de novos dados económicos (trimestrais) que sustentem as decisões do BCE. Só em março de 2025 é que haverá uma quarta descida que irá levar a taxa de juro para o “número redondo” de 3% – é isto que se prevê, neste momento, nos sempre voláteis mercados de futuros de taxas de juro.
As taxas Euribor convergiram, nas últimas semanas, para níveis na casa dos 3,7%, em todos os principais prazos usados no crédito à habitação em Portugal (três, seis e 12 meses).
Neste mês de junho, a prestação da casa paga ao banco deverá recuar em todos os prazos, com a maior descida a ocorrer nos indexados à Euribor a seis meses, segundo a simulação da Deco/Dinheiro&Direitos. Segundo as simulações para a Lusa da Deco/Dinheiro&Direitos, um cliente com um empréstimo no valor de 150 mil euros, a 30 anos, indexado à Euribor a seis meses e com um spread (margem de lucro do banco) de 1%, vai pagar a partir de junho 785,82 euros, o que significa menos 25,38 euros do que pagava desde dezembro.
Já no que diz respeito aos empréstimos indexados à Euribor a três meses, a prestação da casa – para as mesmas condições – desce para 788,18 euros, ou seja, menos 10,01 euros do que a prestação paga desde a última renovação, em março. No caso dos contratos indexados à Euribor a 12 meses revistos em maio, a prestação baixa 16,48 euros, para 776,15 euros.