Kamala Harris tem menos de 100 dias para fazer história se quiser tornar-se Presidente dos Estados Unidos — a primeira mulher e a primeira mulher negra e com ascendência sul-asiática a ocupar o cargo. Será uma das campanhas mais curtas da política norte-americana moderna e a provável candidata democrata à Casa Branca, que soma apoios de peso no partido, tem uma longa checklist pela frente. Ainda assim, goza de um momentum surpreendente para alguém que até há pouco tempo era apontada em algumas sondagens como uma das vice-presidentes mais impopulares dos EUA e que agora surge em algumas delas taco a taco com o principal adversário, Donald Trump.
Se apenas há duas semanas, e no rescaldo do atentado na Pensilvânia, a equipa de Trump estava tão efeverscente que alguns membros do Partido Republicano alertavam contra o excesso de confiança, a entrada em cena de Kamala Harris veio agitar as águas. O próprio candidato a vice-presidente de Trump o admitiu recentemente, descrevendo a substituição de Biden por Harris como um “murro no estômago”. “A má notícia é que a Kamala Harris não tem a mesma bagagem que Joe Biden, porque o que quer que tenhamos a dizer ela é obviamente muito mais jovem”, admitia num áudio divulgado pelo Washington Post gravado num encontro com financiadores republicanos.
Nesta fase, a campanha de Joe Biden “já parece uma memória distante”, afirma ao Observador Robert Speel, professor de ciência política na Universidade da Pensilvânia. “Muitos eleitores democratas estavam aborrecidos e desapontados com as eleições deste ano até Kamala Harris substituir Biden. Agora há um entusiasmo contínuo”, descreve, acrescentando que a vice-presidente surgiu como um “lufada de ar fresco para milhões de eleitores americanos que temiam uma repetição de Biden vs. Trump”. Traci Parker, da Universidade de Califórnia Davis, corrobora: “A candidatura gerou um otimismo considerável, ecoando o entusiasmo em torno da campanha de Barack Obama [2008].”
Ainda que a campanha de Harris tenha arrancado em força, a candidata ainda tem muito que provar e tem de se dar a conhecer aos eleitores norte-americanos. “Trump é um velho conhecido, independentemente das suas idiossincrasias, que são muitas. Kamala Harris é uma desconhecida”, nota Diana Soller, do Instituto Português de Relações Internacionais. “Nós ainda não sabemos quais são as suas ideias políticas, de que forma é que ela vai desenvolver a sua própria agenda, não sabemos quem é a sua persona política“, acrescenta.
A campanha, a postura e os ataques
Quando no final da manhã de domingo o Presidente Joe Biden informou a sua número dois de que ia desistir de concorrer a um segundo mandato na Casa Branca, a vice-presidente foi rápida a agir. Convocou um pequeno grupo de conselheiros e aliados próximos para que, no exato momento em que os norte-americanos ouviam Biden dizer que era do interesse do país e do seu partido que se afastasse, todos estavam a postos para agir.
A própria vice-presidente, de ténis e sweatshirt, pegaria numa extensa lista com os contactos dos democratas mais importantes, preparada com antecedência, e começaria a marcar número atrás de número. “Não ia deixar que este dia passasse sem que tivessem notícias minhas”, diria repetidamente durante várias horas, segundo revelaram ao New York Times vários democratas que receberam chamadas de Harris e outros que tiveram conhecimento delas. Terá feito mais de 100 chamadas em cerca de dez horas, quando o próprio Biden, nos primeiros dez dias após o debate contra Trump que deixou dúvidas sobre a sua candidatura não fez mais do que 20 telefonemas para os democratas do Congresso.
A energia das primeiras horas após a renúncia de Biden tem marcado o ritmo da campanha de Harris desde então. Só na primeira semana foram angariados 200 milhões de dólares (cerca de 185 milhões de euros) — o quádruplo do valor conseguido por Biden no mês de abril — e inscreveram-se 170.000 voluntários. Basta olhar para os números de sábado, quando Harris participou numa angariação de fundos em Massachusetts, organizada quando o Presidente estava na corrida. Esperava-se alcançar 400.000 dólares, chegou-se aos 1.4 milhões, segundo a sua campanha. “O ímpeto e a energia da vice-presidente Harris são reais”, sublinhava Michael Tyler, diretor de comunicações da campanha, num memorando. Mas o que justifica este fenómeno Kamala?
Ao Observador Traci Parker, da Universidade de Califórnia Davis, começa por dizer que por trás deste “momentum” há uma parte “estratégica”: “Como vice-presidente em exercício, Harris tirou partido do seu papel de alto perfil para consolidar apoio, capitalizando a sua ampla experiência política e alinhamento com prioridades progressistas.” A especialista em relações internacionais Diana Soller aponta no mesmo sentido. “Até agora ela tem adotado uma espécie de postura de Estado, que fica bem e que pode render votos”, diz, lembrando como ainda esta quinta-feira esteve ao lado de Biden para receber os prisioneiros libertados no âmbito de uma troca com a Rússia.
A esta componente de estado Traci Parker acrescenta uma outra, mais “simbólica”. “A candidatura de Harris está imbuída de significado histórico, porque a sua identidade como a primeira vice-presidente negra e de origem sul-asiática incorpora uma mudança fundamental na representação política americana”, descreve. “Esse aspeto galvanizou diversos segmentos de eleitores, refletindo o compromisso do partido com a inclusão e a mudança”, considera a especialista em história afro-americana.
Serviu também de arma de arremesso nas mãos de Donald Trump, que questionou a identidade racial de Kamala Harris, filha de pai jamaicano e mãe indiana. “Não sabia que ela era negra até há alguns anos, ela tornou-se negra e quer ser conhecida como negra. É uma coisa ou outra? Eu respeito ambos, mas ela obviamente não respeita isso”, disse numa entrevista tensa durante a convenção da Associação Nacional de Jornalistas Negros (NABJ), comentários rapidamente desmentidos pela imprensa norte-americana, que lembrou que Harris sempre se identificou como negra na vida pública, muito antes de entrar no cenário nacional.
Os comentários pareceram não surpreender Kamala Harris, que em resposta disse que Trump voltou “à divisão e ao desrespeito”, nem a sua equipa, que já se preparava para ataques raciais e de género. O círculo interno já foi “testado em batalha de uma forma que será útil” nos próximos meses, disse à agência Reuters o estratega democrata Anthony Coley. “Será rápido, será furioso, será profundo. E é preciso ter pessoas que saibam como responder rápida e inteligentemente a este tipos de ataques”, apontou.
Do coqueiro ao “Brat”: a mobilização nas redes sociais
Enquanto se prepara para o maior desafio do seu percurso político, a vice-presidente rodeou-se de um grupo de conselheiros experientes, onde se incluem muitas mulheres negras que estão envolvidas na política democrata há décadas, escrevia a Reuters esta sexta-feira. O grupo que juntou é extremamente leal e apaixonado pela sua carreira, com muitas pessoas que chegaram a orientá-la quando se estreava no Senado (2017), disseram àquela agência norte-americana fontes com conhecimento do seu círculo próximo.
“Há um trabalho de bastidores muito bem feito”, destaca a esse propósito Diana Soller, acrescentando que nesta fase inicial se gerou um “fenómeno de popularidade mais mediática do que política”. Do mesmo modo, Traci Parker nota que a campanha tem sido “hábil” na mobilização popular, mas acrescenta que também tem tido alguns resultados no envolvimento gerado nas redes sociais. A tarefa parece ter sido em parte facilitada pelos apoiantes. Um bom indicador disso são os memes e vídeos da candidata com que muitos internautas se têm divertido e que têm explodido no TikTok.
“Por causa do TikTok ela passou de cringe a alguém fixe em 24 horas”, resumiu o comentador político da CNN, Van Jones, no início da semana. “Todas as coisas com que costumavam gozar com ela foram usadas pelos mais novos em remixs e conteúdos”, apontava, antecipando que o TikTok será para Kamala o que o Twitter foi para o Trump nas eleições de 2016.
A campanha de Harris já tirou partido disso e criou no final do mês passado uma conta de TikTok para a candidata. Duas horas depois de ser criada já tinha 200.000 seguidores, que se converteram em 1,6 milhões só nas primeiras 16 horas. Eram esta sexta-feira 3,9 milhões. Foi na recém criada conta que Harris partilhou, por exemplo, o vídeo do telefonema do casal Obama a declarar-lhe apoio e clipes de conversas com celebridades, como a atriz America Ferrera, recentemente nomeada a um Óscar com o filme Barbie, que a questionou sobre a sua posição em relação aos direitos reprodutivos, que tem sido uma das suas bandeiras nesta campanha.
@kamalaharris It means so much to have the endorsement of the Obamas. Let’s get to work.
♬ original sound - Kamala Harris
@kamalaharris I will continue to fight for access to abortion and reproductive freedom.
♬ original sound - Kamala Harris
Vídeos de deslizes verbais de Harris ou de entrevistas com momentos caricatos que nas mãos dos republicanos têm sido há muito usados como armas, com alguns apoiantes nas redes sociais têm sido agora usados para a descrever como uma candidata cativante, identificável e sincera. Basta pensar no clip do coqueiro, que se tornou um símbolo associado a Harris, com os seus apoiantes a usarem emojis desta árvore em seu apoio.
Tudo começou com um discurso de maio de 2023 na Casa Branca que voltou a circular em força este ano. A vice-presidente falava sobre os imigrantes e o facto de fazerem parte de uma história mais longa que define quem eles são. “[A minha mãe] dizia-nos: Não sei o que é que se passa convosco, jovens. Achas que caíste de um coqueiro?”, contou, na altura, Harris, soltando uma risada sonora e acrescentado: “Tu existes no contexto no qual vives e do que veio antes de ti”. Nas 24 horas desde a desistência de Biden, as pesquisas no Google por “coqueiro” aumentaram drasticamente.
what we need up there right now is a professional yapper, someone tap her in pic.twitter.com/BwJAamwTj0
— reid ???????? (@thereidfeed) June 28, 2024
The Age of Malarkey is over. The Coconut Era has begun. pic.twitter.com/0N4ckjZAdA
— Christopher Ingraham???? (@_cingraham) July 21, 2024
Não é preciso ir muito longe para pensar noutros exemplos, como o vídeo de Kamala Harris a cantar desafinadamente a música Wheels on the Bus, a declarar o seu amor por diagramas de Venn ou o momento “Kamala IS brat”. A expressão foi usada pela cantora britânica Charli XCX, cuja presença online tem estado ao rubro desde o lançamento do álbum Brat. Refere-se a mulheres que “podem escolher o seu próprio caminho e definir sua própria agenda”, segundo explicou à BBC Katherine Haenschen, professora da Northeastern University que investiga o efeito das comunicações digitais na participação eleitoral.
A publicação da artista, que tem 54,1 milhões de visualizações, levou também a uma explosão de memes sobre a vice-presidente. “Vai alcançar mais jovens do que um anúncio de TV por cabo de um milhão de dólares”, disse à mesma emissora, Annie Wu Henry, uma estratega em política digital que trabalhou em várias campanhas democratas. Ainda assim não é claro se este entusiasmo vai ajudar a vice-presidente a envolver os eleitores mais jovens, um grupo-chave para os democratas em novembro, e se o ímpeto político continuará.
Harris encurta distância nas sondagens
A vice-presidente ainda não foi formalizada como candidata do Partido Democrata, mas desde o anúncio da sua candidatura tem vindo a encurtar a vantagem que separava Donald Trump de Joe Biden na semana antes do seu afastamento. A vice-presidente está à frente do antigo governante em pelo menos cinco sondagens publicadas desde a saída de Biden. Trump segue à frente em pelo menos oito outras sondagens, que ainda assim mostram Harris a ganhar terreno.
A sondagem Economist/YouGov, publicada na quarta-feira e que olhou para as preferências dos eleitores face a cinco candidatos (Harris, Trump, Robert F. Kennedy Jr., Jill Stein e Cornel West) mostrava a vice-presidente em vantagem por dois pontos percentuais, alcançando 46% das intenções de voto e Trump 44%. Harris também está à frente de Trump, ainda que pela curta margem de um ponto percentual, numa sondagem da Reuters/Ipsos de terça-feira. Surge com 43% das intenções, uma diminuição da vantagem de dois pontos face ao estudo anterior.
Já Trump surge à frente de Harris por três pontos percentuais numa sondagem Harvard CAPS-Harris feita entre 26 e 28 de julho. Ainda assim regista-se uma queda de quatro pontos face à distância de sete pontos que tinha face a Biden. Já a sondagem online HarrisX/Forbes, com base num grupo de 3.000 eleitores, punha a candidata democrata a dois pontos do ex-Presidente Trump, com 45%-47%.
Nada está decidido e muito pode mudar até novembro, mas as sondagens parecem mostrar uma mudança significativa sobre Harris. No final de julho do ano passado uma sondagem da NBC News apontava que 49% dos eleitores tinham uma visão negativa da vice-presidente contra 32% com uma visão positiva. Já outra do POLITICO/Morning consult, em julho de 2024, quando o Presidente Biden ainda estava na corrida, mas já se somavam dúvidas sobre a sua capacidade para continuar, apontava que apenas um terço dos eleitores via como provável que Harris vencesse a eleição caso se tornasse a candidata democrata.
Dos homens brancos às “senhoras com gatos” por Kamala
Primeiro foi o movimento “Win with black women” [em português, “Vencer com as mulheres negras], um grupo de mulheres influentes que se reúne semanalmente por Zoom e que passou as cinco horas após a desistência de Biden a lançar convites para uma reunião virtual para apoiar a campanha de Harris e angariar fundos. O resultado: 44.000 mulheres na chamada Zoom, outras 50.000 a acompanhar por outras plataformas quando o limite de participantes foi atingido e uma angariação de 1,5 milhões de dólares para a campanha.
Seguiu-se o “vencer com homens negros”, “homens latinos por Kamala”, “homens sul-asiáticos por Harris” e outros grupos a organizar as próprias chamadas para apoio e angariações. O mais recente foi o “homens brancos por Kamala”, que se reuniu numa chamada Zoom na segunda-feira e juntou várias celebridades, como os atores Mark Hamill, Mark Ruffalo e o comediante Paul Scheer. Também não faltou a chamada “senhoras com gatos por Kamala”, planeada em resposta aos comentários de JD Vance numa entrevista antiga. Nela, o vice de Trump dizia que os EUA eram governados por “um bando de solteironas sem filhos e amantes de gatos, que têm vidas amargas e tomaram decisões miseráveis” e referia-se especificamente a Harris.
I’m loving the vibes of the Cat Ladies and Dog Ladies for Kamala call! So fun! #DogLadiesForKamala #CatLadiesForKamala #PetLoversForKamala #KamalaHarris2024 pic.twitter.com/g1nDKvu2Tl
— ????????????Meg???????????? (@bluebirdmeg99) July 31, 2024
Ainda que o apelo seja a vários setores a resposta não tem sido a mesma. “Kamala tem dirigido os seus esforços para vários grupos de eleitores chave, incluindo os jovens, as mulheres e as minorias, os resultados são mistos”, considera Traci Parker. A professora da Universidade de Califórnia Davis nota que a sua mensagem está a ressoar “notavelmente” junto de progressistas e grupos focados em justiça social, mas que “enfrenta desafios significativos”.
Traci Parker refere que Harris tem não só de recuperar a confiança de eleitores como os jovens, negros e hispânicos — que tradicionalmente têm sido apoiantes do Partido Democrata, mas têm dado sinais de descontentamento com Biden –, mas também ganhar espaço com eleitores mais velhos e brancos, particularmente aqueles sem formação superior. “Neste clima político complexo, a tarefa da vice-presidente Harris é reconstruir uma coligação Democrata unificada”, refere, acrescentando que a sua capacidade de balançar os diferentes interesses dos eleitores será “essencial”.
Perante tudo isto, permanece uma questão: o momentum vai durar? O lado republicano vai sublinhando que é apenas uma fase — nas palavras do governador Chris Sununu um período de “lua de mel” –, enquanto os democratas vão aproveitando a onda de energia. Ao Observador Robert Speel admite que esta poderá estar para durar e pode mesmo aguentar-se até às eleições de novembro. “Depende em parte da sua escolha para vice-presidente”, defende numa altura em que se especula sobre vários nomes. Diana Soller tem mais dúvidas, afirmando que as eleições “são sempre renhidas independentemente de quem é o candidato”. “Trump tem uma personalidade intensa e sabe aproveitar a sua presença nos media. Kamala Harris tem muito pouco tempo e portanto tem que ser capaz de aproveitar esse mediatismo”, remata.