912kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Com os nova-iorquinos fechados em casa, as ruas da cidade estão desertas
i

Com os nova-iorquinos fechados em casa, as ruas da cidade estão desertas

Anadolu Agency via Getty Images

Com os nova-iorquinos fechados em casa, as ruas da cidade estão desertas

Anadolu Agency via Getty Images

Caos em Nova Iorque. Não há super-heróis que salvem Gotham desta vez

Da janela do seu apartamento em Nova Iorque, o escritor norte-americano Joshua Cohen observa uma cidade mergulhada no caos e na incerteza. Resta um apelo: se querem ser produtivos, têm de usar calças.

No momento em que escrevo, 8.141 pessoas já morreram de Covid-19, e milhares (espero que apenas milhares) vão continuar a morrer ao longo do próximo ano, antes de uma vacina ser desenvolvida e disponibilizada em larga escala. Estou sentado em casa, aqui na cidade de Nova Iorque, e vejo os números subir, em algo que se aproxima de “tempo real”, ou tão “real” quanto pode ser o tempo nestes dias: 8.142… 8.143… 8.144… Penso que é isso que é suposto eu fazer, sentar-me em casa e ver os números. Quero dizer, ninguém me ordenou que o fizesse; ninguém me deu, ou a ninguém, quaisquer instruções formais; os governos da cidade e do estado limitaram-se a fechar os bares e os restaurantes, os museus e as galerias e as salas de concerto e os teatros, etc., e esperaram que isso fosse suficiente para me manter, a mim e aos meus oito milhões de vizinhos, fora das ruas. É-nos agora dito que está iminente uma quarentena… vai começar na segunda-feira ou na terça-feira ou na quarta-feira, definitivamente na quarta-feira ao meio-dia, definitivamente na quarta-feira às cinco da tarde… é-nos dito que o Exército está a caminho para impor a quarentena, e/ou para desinfetar as zonas infetadas, e/ou para construir espaços para testes e hospitais de campanha, e/ou para entregar os nossos produtos orgânicos porta-a-porta, como os estafetas da Amazon e da Whole Foods, só que as bicicletas deles são tanques… Que mais? O metro e os autocarros nunca vão parar, porque os trabalhadores dos hospitais os usam… a utilização do metro e dos autocarros vai ser restringida aos trabalhadores dos hospitais… a utilização do metro e dos autocarros vai ser restringida aos pacientes que precisem de ir a uma zona de testes e/ou a um hospital, e quem sabe o que é que os trabalhadores dos hospitais vão fazer? Talvez passem simplesmente a viver nos hospitais, como os doentes em que inevitavelmente se vão transformar?

Estados Unidos podem ser o próximo foco, mas Trump não parece preocupado. Porquê?

Caso o parágrafo anterior não tenha sido suficientemente claro, deixem-me tentar de novo: não tem havido clareza em nada disto. Ninguém em Nova Iorque sabe quem ouvir; só sabemos quem não ouvir: Trump. Mas ainda não estamos totalmente seguros de que não ouvir Trump também signifique que não devíamos estar a ouvir os seus adjuntos, dos quais sobre os dois mais proeminentes por estes dias nas notícias ninguém tinha ouvido falar até há uma semana: o oleoso advogado Alex Azar, que aparentemente é o nosso Secretário da Saúde e dos Serviços Humanos, um antigo executivo e lobista da indústria farmacêutica; e o nosso Cirurgião-Geral [n.d.t.: cargo equivalente ao diretor-geral da Saúde], o vice-almirante Jerome Adams, aparentemente um antigo comissário da Saúde do estado do Indiana quando o Vice-Presidente Pence era o governador do Indiana, e um homem que aparece como um personal trainer barato num navio de cruzeiro a afundar-se. Os dois membros do elenco deste reality-show da vida real de que eu mais gosto são o Dr. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, que parece e soa como o Don DeLillo (“O pior cenário é ou não fazermos nada ou as nossas ações de mitigação e contenção não serem bem sucedidas.”), e o Dr. Robert Redfield, diretor do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, que surge como honesto por causa da barba ao estilo Abe Lincoln. Estas são as pessoas que me falam a partir dos meus ecrãs, e eu dou o meu melhor para não responder. Vivo sozinho e não tenho animais de estimação — nem mesmo um morcego, nem mesmo um pangolim —, por isso estas pessoas são a minha única companhia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Alex Azar, Robert Redfield, Jerome Adams e Mike Pence têm sido presença assídua nas conferências de imprensa sobre a pandemia ao lado de Donald Trump

Getty Images

Mas esqueçam a CNN — ou a CNN.com. Pensem nos vossos filmes, programas de TV ou o que quer que seja dos streamings favoritos que se passam em Nova Iorque — habitualmente são filmados em Toronto ou num estúdio em Hollywood, mas não interessa: pensem nos vossos favoritos. Agora pensem no quão separados eles são, quão paralelos e sem nunca se intersectarem: ninguém em Seinfield alguma vez sabe o que é que se está a passar em Friends; ninguém de um filme de Spike Lee alguma vez vagueou até à obra de (posso sequer mencioná-lo?) Woody Allen. Cada representação de Nova Iorque no ecrã é a sua própria e independente Nova Iorque e essa é atualmente a situação “no terreno”, com os governos federal, estatal e da cidade. Cada um está a fazer o seu próprio show nova-iorquino, sem comunicação, e o público já desistiu, para ser substituído por uma faixa de risos gravados que é, sobretudo, uma pieira.

Penso que a única Nova Iorque onde as personagens interagem é a Nova Iorque dos franchises promocionais cruzados de super-heróis, a cidade em perigo a clamar pelos seus X-Men, a fazer sinais de luz ao seu Batman. Mas não há nenhum esquadrão de mutantes patriotas de capa que salvem Gotham desta vez. O melhor que podemos fazer é encolher-nos num canto, com o nosso pijama do Batman enquanto racionamos o nosso papel higiénico do Batman e nos lembramos de que muito provavelmente uma experiência interespécies, ou um acidente interespécies, que nos meteu nesta confusão. Já tivemos a nossa quota de morcegos por agora.

"Não há nenhum esquadrão de mutantes patriotas de capa que salvem Gotham desta vez. O melhor que podemos fazer é encolher-nos num canto, com o nosso pijama do Batman enquanto racionamos o nosso papel higiénico do Batman"

Sem super-heróis confiáveis, sem políticos confiáveis, tudo o que nos resta é a ironia. Com isto quero dizer que, antes desta pandemia, a política americana estava atolada num conflito geracional, millennials vs. boomers, e agora parece que a mudança que não pôde ser mandatada pelos votos vai ser mandatada pela natureza. As vítimas desta pandemia parecem incluir-se, genericamente, em dois grupos: os doentes imunocomprometidos e os idosos. Os jovens — dos quais os mais saudáveis vão sair de tudo isto maioritariamente incólumes — vão chorar os primeiros, mas só vão fingir que choram os segundos. Não pretendo ser insensível: apenas franco. Os jovens americanos que não têm um emprego estável nem seguro de saúde têm todas as razões económicas mais intransigentes para não ficar em casa; têm todos os incentivos para sair e passar a infeção aos pais; afinal, os pais deles destruíram-lhes o planeta e roubaram-lhes o futuro. O facto de escolherem não exigir esta vingança é um sinal ou de cobardice ou de amor. Entretanto, com os negócios fechados, a ninharia que faziam com os trabalhos de freelancer evaporou-se; com os mercados afundados, as heranças — se é que esperavam alguma — foram reduzidas. E, quando as universidades cancelaram as aulas e os despejaram, deixaram a cidade e foram para casa — para a casa dos pais —, mas só depois de se assegurarem de que não tinham sintomas. Na minha opinião, se não iam para infetar as famílias, deviam ter ficado. Deviam ter-se barricado nos dormitórios e protestado. Pensava que era isso que os estudantes habitualmente faziam, mas talvez os millennials não o saibam — talvez nunca tenham chegado a esse capítulo no livro de história… perdão, no e-book de história.

Colocar as escolas online, a par do teletrabalho, tornou todo o nosso contacto virtual, e já é um lugar-comum pensarmos que, mesmo quando for seguro regressar à sala de aulas ou ao escritório, serão menos os que vão regressar do que os que abandonaram, e que mais e mais da nossa vida vai ser vivido remotamente, com câmara e microfone, mas sem calças.

Aqui fica um conselho de um escritor, que já estava sentado em casa muito antes de esta pandemia começar: se querem ser produtivos, têm de usar calças.

Uma imagem rara: a Times Square tem estado praticamente vazia nos últimos dias

Anadolu Agency via Getty Images

E mais algumas dicas de um escritor, sobre linguagem: desde o início desta pandemia, a nomenclatura tem sido contraproducente; a retórica lembrou-me da crise do VIH/sida, com as suas dicotomias alarmistas. Quem é positivo? Quem é negativo? Fizeste o teste? Usaste proteção? Esta escolha de palavras é desonesta e perigosa. O Covid-19 é um coronavírus, não um vírus do sangue, que é muito mais difícil de apanhar, e muito mais difícil de tratar, do que qualquer coisa respiratória. Não apanhamos Covid-19 por fazermos sexo sem proteção ou por partilharmos agulhas, mas por tocarmos em maçanetas de portas e por nos tossirem e espirrarem em cima. É por isso que quase todos nós o temos ou vamos ter em algum momento, algo que seríamos capazes de confirmar se tivéssemos testes suficientes, se os testes fossem uniformes e não tivessem um limite mínimo para dar positivo. Nos primeiros dias do surto no mundo anglófono, parecia que só os famosos é que apanhavam o vírus, mas veio a perceber-se, como a lógica já sugeria, que só os famosos é que estavam a ser testados: Tom Hanks, Rita Wilson, Idris Elba, a NBA. A dada altura, vamos ter a confirmação de que a relação entre número de famosos infetados e o número de não-famosos infetados reflete a proporção de famosos e não-famosos na população, embora nessa altura eu não esteja certo de que sejamos capazes de distinguir quem é famoso e quem não é famoso, porque um ano ou mais de comunicação exclusiva pela internet vai apagar essas fronteiras já ténues… e, depois, algum escritor, em pânico e solitário numa cave, vai tentar fazer a trivial e óbvia comparação entre a internet e uma pandemia, ambas impossíveis de serem contidas por fronteiras. A não ser, obviamente, na China.

Joshua Cohen (1980) é um escritor e crítico literário norte-americano, autor de livros como “Witz”, “Book of Numbers” e “Attention”. Trabalhou com Edward Snowden na escrita da autobiografia “Permanent Record”. Vive em Nova Iorque.

Este artigo faz parte da coleção “Janelas para o Mundo”, organizada pelo jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung. Vários escritores e filósofos de todo o mundo escrevem sobre o que veem das suas janelas durante o período de isolamento motivado pela pandemia da Covid-19. Como sinal de proximidade cultural em tempos de distância política e social, artigos desta coleção são publicados também noutros jornais internacionais, como o Corriere della Sera (Itália), o Politiken (Dinamarca), o Observador (Portugal) e o Die Presse (Áustria).

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.