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Israel tem um certificado de vacinação (para quem já cumpriu as duas doses da vacina) e um livrete verde (que inclui também as pessoas que recuperaram da infeção)

AFP via Getty Images

Israel tem um certificado de vacinação (para quem já cumpriu as duas doses da vacina) e um livrete verde (que inclui também as pessoas que recuperaram da infeção)

AFP via Getty Images

Certificado de vacinação. Que problemas científicos e éticos enfrenta?

Se Portugal já tivesse o certificado de vacinação, 2,5% da população poderia viajar — um quinto com mais de 80 anos. Bioeticistas denunciam injustiça e questionam a validade científica do certificado.

A Alemanha foi um dos primeiros países (se não mesmo o primeiro) a falar de certificados de imunidade ainda no início de abril de 2020. Agora, Angela Merkel continua a ser uma das principais defensoras do passaporte de vacinação, que permitiria aos europeus menos restrições na mobilidade transfronteiriça. Mas as dúvidas que existiam há um ano não são muito diferentes das que existem hoje em dia, agravadas pela injustiça que os certificados baseados nas vacinas contra a Covid-19 poderiam gerar, diz ao Observador Ana Sofia Carvalho, professora no Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa.

Na altura, em 2020, a ideia dos certificados de imunidade, baseava-se nos testes serológicos (usados para detetar anticorpos) e na ideia de que quem tivesse estado exposto ao vírus (e criado anticorpos) estaria protegido de uma nova infeção. As dúvidas sobre se os anticorpos conferiam imunidade, durante quanto tempo e que quantidade era preciso para que isso acontecesse, ou até se preveniam a transmissão, fizeram com que o “passaporte imunológico” não saísse do campo das ideias. Em relação às vacinas, diz Ana Sofia Carvalho, a situação não é muito diferente: continuamos sem saber quanto tempo dura a proteção conferida pelas vacinas ou se uma pessoa vacinada deixa de transmitir o vírus.

A necessidade de reabrir as fronteiras, fortalecer a economia e ressuscitar o turismo — com os fortes apelos da Grécia e Espanha — fez com que a União Europeia começasse a ponderar a ideia de ter um documento que permitisse a circulação, pelo menos no espaço europeu, sem necessidade de testes ou quarentena. E o sistema é para estar implementado até ao verão, avisou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Ana Sofia Carvalho considera que com a escassez de dados disponíveis é muito precoce pensar nisso. Mais, grande parte da população — sobretudo aqueles que mais viajam — ainda não vai estar vacinada nessa altura, o que vai “criar situações de injustiça gritantes”, disse à rádio Observador Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética.

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Passaporte de vacinas levanta “dúvidas éticas” e pode dar “falsa sensação de segurança”

Comprovativo de imunidade, passaporte de vacinação ou certificado verde. A discussão sobre o nome e a sua função

António Costa, no âmbito da Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, defende que se crie um “documento que permita às autoridades identificarem quem já foi vacinado, no momento de entrada no país”, e que seja uma medida “comum a toda a União Europeia”, usada como “objeto de reconhecimento mútuo”. O objetivo é que “qualquer um possa entrar em Portugal [ou noutro Estado-membro] sem se sujeitar a quarentena”, ainda que o primeiro-ministro diga que não gosta da expressão “passaporte sanitário”.

“Embora não tornemos a vacinação obrigatória ou um pré-requisito para a viagem, as pessoas que foram vacinadas devem ter liberdade para viajar”, sem ter de cumprir quarentena, defendeu o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis. A medida seria “um incentivo positivo” à vacinação.

O documento digital, que visa “permitir uma maior capacidade de circulação”, deverá ter registado se a pessoa está vacinada contra a Covid-19, se já esteve infetada com o SARS-CoV-2 ou se, por outro lado, tem um teste de despiste à infeção, feito recentemente, e que tenha dado negativo, esclareceu o primeiro-ministro depois da reunião do Conselho Europeu.

Como é que pode ser usado e que informação deve conter extatamente é um assunto que ainda está a ser discutido, e nem o nome é, para já, consensual. Ao Observador, o gabinete do primeiro-ministro respondeu que “passaporte é para viagens e certificado é para registo/comprovativo”. Ora, um certificado teria como finalidade razões clínicas, mas os países que já adotaram estes documentos — como Dinamarca, Estónia ou Suécia — pretendem que se retome as atividades que foram suspensas, nomeadamente permitindo a mobilidade no espaço europeu.

Covid-19. Merkel admite passaporte de vacinação europeu “até ao verão”

Foi exatamente com o objetivo de viajar, em particular com fins turísticos, que a comissão de Turismo do Parlamento Europeu defendeu, esta quinta-feira, a criação de um certificado comum de vacinação. O projeto de resolução aprovado prevê que a criação deste certificado “poderia tornar-se uma alternativa aos testes PCR e aos requisitos de quarentena, assim que houver provas suficientes de que as pessoas vacinadas não transmitem o vírus ou o reconhecimento mútuo dos procedimentos de vacinação”. É na falta de “provas suficientes” que poderá estar o problema.

Os dados científicos suportam a criação de um documento deste tipo?

Israel é um dos países que já dispõe de um certificado de vacinação — e um livrete verde, que também inclui as pessoas que recuperaram da infeção. O certificado de vacinação tem efeito a partir do sétimo dia após a segunda dose, sem contar o dia da vacinação, e é válido por um período de seis meses, lê-se no site do Ministério da Saúde israelita. Mais do que não precisarem de cumprir quarentena depois de regressarem de países com um elevado nível de risco de contágio, os israelitas que já tomaram as duas vacinas não terão de ficar isolados se entrarem em contacto com uma pessoa infetada.

Este é um dos problemas científicos que se colocam: os ensaios clínicos das vacinas permitiram perceber que eram eficazes na prevenção da doença grave, mas ainda não existem dados suficientemente sólidos que indiquem que uma pessoa vacinada não possa ser infetada, ter sintomas ligeiros ou até transmitir o vírus a outras pessoas. O próprio Ministério da Saúde israelita reconhece isso, quando mantém as restrições nos ajuntamentos, distância mínima de dois metros e uso de máscaras nos espaços públicos, mesmo para as pessoas vacinadas — mas ao mesmo tempo livra os vacinados do isolamento.

Um exemplo de um certificado de vacinação atribuído pelo Ministério da Saúde de Israel

A possibilidade de as pessoas poderem transmitir o vírus mesmo depois de vacinadas foi uma das questões que a presidente da Comissão Europeia diz estar ainda em aberto. Ainda assim, Ursula von der Leyen considera que se queremos ter um sistema deste tipo a funcionar no verão é preciso começar a trabalhar nele já. Esta proposta requer “pelo menos três meses de desenvolvimento técnico” para conseguir um sistema que funcione em toda a União Europeia.

Miguel Oliveira da Silva, médico e ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, disse ao Público que “não tem sentido as pessoas vacinadas terem mais liberdade para o que quer que seja”. “A vacina é contra a Covid, não é contra a infeção assintomática”, explicou no final de janeiro.

Além disso, não se sabe quanto tempo pode durar a proteção contra a doença conferida pela vacina, que impacto na eficácia pode ter o adiamento da segunda dose, adotado em alguns países como o Reino Unido, ou como é que as vacinas presentemente no mercado se vão comportar contra as novas variantes do vírus.

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“Neste momento, pedimos que não se introduzam requisitos de prova de vacinação ou imunidade para as viagens internacionais como uma condição de entrada, uma vez que existem ainda incógnitas significativas sobre a eficácia da vacinação para reduzir a transmissão e uma disponibilidade limitada de vacinas”, disse o Comité de Emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS), a 16 de janeiro. Para a OMS, o certificado não resolve os problemas do turismo, nem confere a liberdade que os viajantes tanto desejam. Isso só se conseguirá quando for atingida a imunidade de grupo a nível mundial, o que pode ainda levar muitos anos.

Que problemas éticos surgem com a criação de um “passaporte de vacinação”?

A criação de um certificado de imunização tem um “relevantíssimo interesse público”, diz Rui Nunes à rádio Observador. No entanto, o presidente da Associação Portuguesa de Bioética lembra que “não podemos, por esta via, estar a abrir a porta a desigualdades e a injustiças que manifestamente não foram ultrapassadas”. Estas injustiças vão da falta de acesso à vacinação por escassez de vacinas nos países europeus à total ausência de vacinação em vários países africanos.

Em Israel, o país com a campanha de vacinação mais avançada em todo o mundo, 53,7% da população já tinha tomado pelo menos uma dose da vacina e 37,8% já tinham completado o esquema de duas doses, até 25 de fevereiro, segundo os dados da Our World in Data. Em Portugal, como na média da União Europeia, menos de 5% da população recebeu pelo menos uma dose e só 2,5% recebeu as duas doses. No Reino Unido, com uma estratégia diferente, há 27,5% das pessoas que já tomaram uma dose, mas apenas 1,0% que tomou as duas doses.

A atual taxa de vacinação em Portugal significa que, se o passaporte entrasse em vigor neste momento, apenas 2,5% da população poderia viajar, sobretudo profissionais de saúde e idosos com mais de 80 anos (um quinto dos que já tomaram as duas doses). Para os especialistas em bioética isto constitui uma dupla injustiça. Por um lado, por causa de uma escolha que depende do Governo e não do cidadão, há grupos de pessoas vacinados e outros que, mesmo querendo, não podem ainda tomar a vacina. Por outro, os mesmos grupos que têm a vantagem de já estarem vacinados, também têm o benefício de poderem viajar.

Rui Nunes destaca que os grupos de risco foram criados para podermos proteger os mais vulneráveis, os idosos, e os profissionais de saúde que garantem a resposta durante o período da pandemia, “não para estes grupos poderem viajar mais à vontade”. Ana Sofia Carvalho concorda com a falta de equidade desta medida. “Aqueles que foram menos afetados pela pandemia em termos de doença, acabam por ser prejudicados” em termos de mobilidade e perspetivas de futuro, diz.

Perante a injustiça, a falta de equidade e as dúvidas que subsistem sobre a eficácia das vacinas na transmissão, o professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto defende que “teremos de encontrar outros caminhos”, que permitam às “pessoas que não tenham sido vacinadas possam usar e usufruir do direito à mobilidade, nomeadamente na União Europeia”.

“Durante a primeira e a segunda fase da vacinação, o impacto na recuperação do turismo não vai ser muito significativo”, diz ao Observador Ana Sofia Carvalho. “As pessoas que mais se deslocam só vão ser vacinadas na terceira e quarta fases.” O que, se continuarmos a assistir aos atrasos na entrega das vacinas, pode acontecer só depois do verão.

O comissário europeu da Economia, Paolo Gentiloni, disse, a 15 de fevereiro, que o certificado de vacinação deve servir sobretudo como “prova de que se foi vacinado” e não como passaporte de viagem. Não se pode “dar direitos especiais a uns enquanto a vacina não estiver disponível para todos”, algo que dificilmente será alcançado antes do final do ano.

“Temos de analisar muito bem se o certificado não vai significar o estigma de determinados grupos populacionais, nomeadamente aqueles que não reúnem as características fisiológicas para serem vacinados.”
Ana Sofia carvalho, Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa.

Pior ainda pensar que o certificado de vacinação possa ser usado para limitar o acesso das pessoas a determinados bens ou serviços. Mas foi isso que propôs a Saga, uma empresa britânica de cruzeiros, aos seus passageiros (a segunda dose tomada há pelo menos 14 dias); a Quantas, companhia aérea australiana, também abriu a possibilidade de só aceitar clientes vacinados; ou a CTS Eventim, empresa internacional com sede na Alemanha, ligada à produção de eventos e venda de bilhetes para espetáculos, que quer limitar o acesso só a quem provar estar imune, como noticiou o jornal Público.

A privacidade e confidencialidade dos dados, em especial dos dados médicos, são outra das questões. Qual é a informação mínima que deve conter o passaporte de vacinação? A empresa de biométrica iProof estava a testar, no Reino Unido, um protótipo que regista e apresenta o resultado do teste PCR ou o estado de vacinação, associado a uma fotografia, mas sem revelar a identidade da pessoa, noticiou o Público. Dependendo da quantidade de informação disponibilizada, pode continuar a expor informação pessoal ou omitir informação que outras entidades consideram essenciais, como a vacina usada, o lote e o local de vacinação.

Caso o objetivo seja ter um certificado de vacinação com fins médicos, estes são dados muito limitados. Neste caso, a Comissão Europeia defende que se incluam não só a data de cada uma das doses, como os efeitos secundários, para que seja possível monitorizar o estado de saúde da pessoa, mas também evitar que seja vacinada mais vezes do que necessário. “O uso a ser feito deste certificado tem de ser muito bem ponderado”, defende Ursula von der Leyen.

Até porque não será adequado que uma companhia aérea, um organizador de espetáculos ou um empregador tenha acesso a estes dados se a pessoa não o desejar. Especificamente sobre exigir certificado de vacinação dentro de um país (num serviço ou no emprego), Ana Sofia Carvalho diz que não tem sentido enquanto não se der oportunidade a todas as pessoas de serem vacinadas. E, depois disso, “quando houver imunidade de grupo, já não há justificação científica para se pedir o certificado dentro do país”.

A professora do Instituto de Bioética lembra ainda outro problema relacionado com esta necessidade de estar vacinado ou ter um comprovativo para viajar: as falsificações. Podem aumentar os casos de corrupção para ter acesso às vacinas, podem agravar-se os casos de vacinas falsificadas ou até a falsificação dos certificados, como vimos acontecer com as declarações que permitem sair de casa durante o estado de emergência.

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