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“Aposto 20 mil libras, contra quem quiser, que farei a viagem à volta do mundo em 80 dias ou menos, ou, por outras palavras, em mil novecentas e vinte horas ou cento e quinze mil e duzentos minutos.”
Se reconhece a frase é porque já a terá lido pela boca de Phileas Fogg, no livro de Júlio Verne. Num dia de outubro, durante um jogo de cartas, o inglês apostou que daria a volta ao mundo em pouco mais de dois meses e meio — uma aventura que o levaria a cruzar-se com muitas pessoas. Não terá sido preciso muito mais tempo para que o vírus que atingiu o mercado de Wuhan, no final de 2019, se espalhasse pelos cinco continentes e infetasse cerca de 11 milhões de pessoas — e isto falando só dos números oficiais.
Em Portugal foi detetado no primeiro dia de março, mas já era esperado à medida que ia atingindo os restantes países europeus e, sobretudo, Itália, Espanha e França. Centrados nos dois primeiros casos detetados no norte do país, e nos contactos que tinham feito, as autoridades de saúde tentaram por tudo conter estas cadeias de transmissão e tudo indica que conseguiram. O que não dava para ver na altura é que o vírus entrou em Portugal não duas, mas várias vezes. Não tardou a que também isso ficasse claro: no espaço de 15 dias tínhamos casos do norte ao sul e nas ilhas.
Em todo o mundo, incluindo em Portugal, há várias equipas a trabalhar para sequenciar o genoma dos vírus que vão sendo detetados nas pessoas infetadas, isto é, decifrar a informação genética que define todas as características dos vírus encontrados em cada doente — se estivéssemos a falar de cães, esse código genético podia dizer-nos, por exemplo, a cor do pelo, o tamanho da cauda ou o formato do focinho. Com as sequências genéticas prontas, agrupam-se os vários genomas por semelhanças, para se conseguir encontrar um padrão e fazer comparações.
[Como o SARS-CoV-2 se espalhou pelo mundo, com a Europa destacada a cores. Os círculos representam os infetados ao longo do tempo e as linhas representam uma possível associação entre dois casos (e não o movimento de pessoas). Esta representação hipotética é baseada na semelhança genética e temporal e nos dados geográficos (dados de 22 de junho) — Nextstrain]
O problema é que separar dois vírus geneticamente diferentes não é como apontar as diferenças genéticas entre um tigre e um leão. Os cientistas vão encontrando formas diferentes de os classificar e agrupar, mas tudo depende dos objetivos que tenham. Se forem muito detalhados só juntam vírus mesmo muito próximos entre si — como se num almoço de casamento só juntássemos à mesma mesa os pais e os respetivos filhos. Mas a classificação atualmente adotada pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (Insa), e por outras instituições a nível internacional, é menos discriminativa — junta os ‘primos’ todos à mesma mesa — e, por isso, permite identificar “grandes grupos genéticos em diferentes regiões geográficas”, explica ao Observador Vítor Borges, investigador no Departamento de Doenças Infeciosas do Insa.
“A classificação dos vírus é algo muito dinâmico. É normal que altere e volte a alterar, até se estabilizar numa nomenclatura que seja aceite e reconhecida pela comunidade científica”, diz o investigador que, atualmente, se dedica em pleno ao estudo da diversidade genética do SAR-CoV-2. Mais do que ser reconhecida, a classificação precisa de ser útil. Só assim se consegue perceber que o vírus detetado em Évora terá vindo de Espanha, que Ovar tem uma mutação única no país e que o foco no distrito de Viseu está relacionado com o de Ovar.
O vírus entrou em Portugal várias vezes
Não se sabe quando é que o SARS-CoV-2 saltou dos animais para os humanos ou quando conseguiu atravessar as fronteiras chinesas e se espalhar pelo mundo, mas sabe-se que no dia 13 de janeiro, apenas um dia depois de a China ter finalmente divulgado o genoma desta nova ameaça, foi confirmado o primeiro caso fora do país, na Tailândia. Enquanto as autoridades chinesas e a Organização Mundial de Saúde decidiam se o vírus se podia transmitir de pessoa para pessoa e se os outros países estariam em risco, o vírus foi-se espalhando silenciosamente, dentro e fora do país.
A declaração de pandemia chegou no dia 11 de março, já com mais de 124 mil casos e 4.500 mortes. O principal foco de infeção estava, na altura, na Europa — e assim ficou até ao início de abril, quando grande parte dos europeus já estava fechada em casa e se assistia a um crescimento gradual do número de casos diários no continente americano. Mais tarde, foi possível perceber que os tipos de genomas espalhados nos vários países europeus eram idênticos e que já tinham viajado até à parte oriental dos Estados Unidos, antes da administração Trump acabar com as ligações para a Europa (a 13 de março).
Em Portugal, enquanto os cidadãos estavam de olhos postos nos ecrãs a ver o que estava a acontecer em países tão próximos como Itália e Espanha, o Governo declarava o estado de alerta e preparava uma série de medidas, incluindo o apoio à proteção social dos trabalhadores e das suas famílias. As escolas fecharam, os estabelecimentos públicos passaram a funcionar com limitações, as visitas aos lares foram suspensas e muitos trabalhadores foram colocados em teletrabalho. Antes mesmo da declaração do estado de emergência, a 18 de março, os portugueses já tinham colocado as trancas na porta. Mas o que se passou nas duas semanas anteriores acabaria por determinar muito do que se aconteceu no mês e meio seguinte: o vírus tinha entrado em Portugal — várias vezes — e circulava livremente até que a primeira morte (no dia 16) nos assustou o suficiente para deixarmos as ruas desertas sem grandes hesitações.
Da Holanda ao Irão, de onde chegaram os vírus que entraram em Portugal
Os primeiros casos positivos para o SARS-CoV-2 foram detetados em Portugal a 1 de março e ambos tiveram origem numa infeção fora do país: um deles, um homem de 33 anos, estava a trabalhar em Espanha; o outro, um médico de 60 anos, regressara de umas férias em Itália. Não é possível afirmar com certeza que o vírus não estivesse já a circular em Portugal, mas até ao momento o Insa ainda não encontrou nenhum caso anterior a estes, diz Vítor Borges. Tanto quanto é possível saber, pelos dados já existentes e devido ao seguimento próximo dos dois casos e dos seus contactos pelas autoridades de saúde, “estes casos em particular levaram a cadeias de transmissão muito limitadas”, diz o investigador. Que é como quem diz, foram totalmente controlados.
Os dois homens que viajavam de regiões diferentes traziam consigo vírus geneticamente distintos — que cabiam, respetivamente, nos grupos 20A e 20B, da classificação agora usada pelo Insa. Os casos foram detetados no Norte do país, a região mais afetada durante o início da pandemia em Portugal, mas ao fim da primeira semana já havia casos registados noutros pontos também, de Coimbra a Portimão, e vários no distrito de Santarém.
[A evolução do vírus em Portugal continental e nas ilhas. Na parte de baixo é possível ver a linha do tempo (dados de 22 de junho) — INSA/Núcleo Bioinformática (Microreact)]
Nessa semana, como nos dois primeiros casos, os grupos de genomas (clados) representados são o 20A e o 20B e os históricos de viagem internacional limitam-se ainda a Espanha e Itália. Mas à data da declaração do estado de emergência, a 18 de março, já todos os grupos de genomas conhecidos (cinco, segundo esta classificação) tinham sido detetados no país e, entre os históricos de viagem conhecidos há viajantes de França, Holanda, Reino Unido, Egito e Irão — que, na altura, era um dos países mais afetados com o novo coronavírus. À medida que se forem introduzindo mais dados sobre as viagens dos doentes, mais relações se podem estabelecer.
Olhando para as 758 amostras recolhidas (e já sequenciadas) entre 1 de março e 1 de abril (14 dias depois da declaração do estado de emergência) é possível perceber que o vírus entrou várias vezes em Portugal, vindo de vários sítios, o que torna impossível determinar o caso zero. A árvore filogenética do vírus deixa claro que os clados (ramos) mais frequentes (com mais bolinhas) são o 20A, 20B e 20C, à semelhança do que acontece no resto da Europa, à exceção de Espanha, onde o clado mais frequente é 19B.
A mutação de Ovar — que também aparece na Nova Zelândia e pode ter vindo de Itália
Ovar foi o primeiro município português a ser classificado como local de transmissão comunitária ativa do novo coronavírus, o que levou à criação de uma cerca sanitária no dia 18 de março, já com 51 casos confirmados. As entradas e saídas foram proibidas e os estabelecimentos comerciais, com exceção dos essenciais, foram encerrados. A previsão era que o cordão sanitário durasse até dia 2 de abril, mas acabou por só ser levantado quinze dias depois disso.
Mãe e filha, estudante em Santa Maria da Feira, foram os primeiros casos registados em Ovar. A escola fechou por precaução e a Unidade de Saúde Familiar em S.Vicente Pereira, onde tinham ido sem se saberem infetadas, também. Sete de 11 profissionais de saúde da unidade foram contagiados, o que obrigou também ao encerramento da Unidade de Saúde Familiar de S. João de Ovar. Mas estes profissionais já tinham contactado com dezenas de doentes, o que poderá ter contribuído para a grande cadeia de transmissão que se verificou no concelho.
Ovar. “A cidade está toda parada, parece que nos desligaram as máquinas”
Os dados ainda estão a ser analisados, mas tudo aponta, neste momento, que se trate de uma cadeia de transmissão única e relacionada com o foco de Felgueiras, escreve o Insa no relatório de 19 de maio. Vítor Borges é mais cauteloso, mas não descarta essa possibilidade. “Certamente terão havido algumas introduções no concelho de Ovar, mas uma delas terá sido responsável pela grande maioria dos casos. É isso que nos aponta o nosso estudo da análise do genoma até agora.”
Se houve uma única introdução que levou a muitos casos ou se um grupo de pessoas esteve em contacto com vírus com o mesmo perfil genético e depois o espalhou pelo concelho ainda não se sabe, mas é que pretende descobrir a equipa do Insa em conjunto com as autoridades de saúde e com a informação que têm sobre os doentes (informação epidemiológica) — é que só pelos genomas o Insa não sabe quem são os doentes, que viagens fizeram ou que contactos tiveram.
O grupo de genomas de Ovar (dito de forma genérica) é único, não só pela mancha distinta que se consegue identificar na árvore filogenética, mas, sobretudo, porque a grande maioria dos genomas identificados neste grupo apresentam uma mutação diferente na proteína “spike” (S), a proteína responsável pela entrada do SARS-CoV-2 nas células humanas. Ainda não se sabe se esta mutação (D839Y) alterou alguma função no vírus, mas por enquanto serve de sinalizador para este tipo de genomas.
E o sinal é claro. A mutação aparece em Felgueiras, que pode estar relacionada com a origem da cadeia de Ovar, e em Vila Nova de Gaia, onde também se começa a perceber que existe uma associação. Além disso, a transmissão comunitária em Ovar — antes ou depois da cerca sanitária, ainda não se sabe — deu origem a outra no distrito de Viseu, com casos em Mangualde, Tondela e no próprio concelho de Viseu.
Dos 16 casos sequenciados de Mangualde, 14 tinham mais de 70 anos, oito mais de 80. Pelo genoma não é possível saber quem são estas pessoas, mas sabe-se que Mangualde teve, a certo momento em abril, 68 casos confirmados. Destes, 58 eram do Lar de São José em Santiago de Cassurrães (43 utentes e 15 colaboradores). As sete mortes registadas até 23 de abril aconteceram neste lar.
Os dados mais recentes (publicados a 20 de junho) mostram que Vila Nova de Foz Côa apresenta a mesma mutação, relação essa que os investigadores ainda estão a investigar — precisam de sequenciar mais genomas desta fase inicial do surto em Portugal. “O enigma ainda não está resolvido”, diz Vítor Borges. Certo é que, a 20 de abril, Foz Côa era o concelho mais afetado pela doença no país: 82 casos entre os pouco mais de seis mil habitantes. A essa data, Ovar tinha 511 casos e Castro Daire (no distrito de Viseu) tinha 101.
Mas não ficam por aqui os segredos por desvendar da mutação de Ovar. A mutação D839Y foi encontrada pela primeira vez no genoma de um doente da região de Lombardia, sugerindo que a introdução em Portugal tenha vindo de Itália — só não se sabe ainda quando nem como —, refere o relatório do Insa de 24 de junho. Esta mutação é pontualmente encontrada noutros países, como Polónia, Geórgia e do outro lado do mundo, na Nova Zelândia. Mas em nenhum outro país é tão frequente como em Portugal.
O vírus da Austrália que veio passear a Ponta Delgada
A base da árvore filogenética, representada pelo clado 19A, parece um grande grupo que deu origem a todos os outros. Mas na verdade é uma classificação em discussão, como explica o investigador do Insa. Este clado agrega uma série de perfis genéticos mais pela dificuldade em arranjar-lhes um grupo do que por serem semelhantes. Certo é que neste grupo estão presentes os perfis dos primeiros doentes com Covid-19 e por isso está tão disseminado na Ásia.
É precisamente neste clado que se encontra o primeiro genoma sequenciado na China — recolhido no dia 26 de dezembro e divulgado no dia 12 de janeiro. Este genoma serve de termo de comparação aos restantes perfis e de base às árvores filogenéticas criadas pelo Nextstrain, tanto a nível global, como em Portugal (aquela usada pelo Insa). O Nextstrain é um projeto de código aberto que funciona como uma ferramenta de análise dos dados genéticos para apoiar a avaliação da evolução do vírus e da pandemia e melhorar a resposta ao surto.
Ainda com ligação ao clado 19A, mas com características que o permitem formar um clado próprio, surge o clado 19B. Este grupo de genomas pode ser encontrado nos cinco continentes, sobretudo na Ásia, mas também na América do Norte. Também aparece na Europa (e em Portugal), ainda que de forma pouco pronunciada. A exceção é Espanha. Ainda não se sabe porquê, mas o país vizinho tem uma frequência elevada deste perfil genético, conta Vítor Borges.
Em Portugal, este perfil oferece-nos uma história curiosa. Bem, na verdade duas, relacionadas com a origem do vírus. Um dos ramos deste grupo de vírus representa casos circunscritos ao concelho de Évora, o que leva os investigadores a pensar que o vírus terá vindo da vizinha Espanha — onde o genoma é tão comum — atravessando a fronteira ali tão perto. As fronteiras terrestres foram fechadas a 16 de março, permitindo a circulação de mercadorias e viagens de trabalho, mas os contágios podem ter acontecido antes disso, visto as amostras terem sido recolhidas entre 20 e 25 desse mês (dando ao vírus o devido tempo de incubação).
A hipótese é reforçada à medida que se vão analisando mais genomas recolhidos junto à fronteira, como Arcos de Valdevez, Bragança ou Miranda do Douro. Vítor Borges lembra que os quase mil genomas sequenciados são uma amostragem e que a informação de que dispõe está em constante atualização.
[As entradas de SARS-CoV-2 em Portugal. Os círculos representam os infetados ao longo do tempo e as linhas representam uma possível associação entre dois casos (e não o movimento de pessoas). Esta representação hipotética é baseada na semelhança genética e temporal e nos dados geográficos (dados de 22 de junho). — INSA/Núcleo Bioinformática (Nextstrain)]
Ao contrário de Évora, com casos muito localizados, o outro ramo do grupo 19B está mais disperso pelo país, com casos de Oeiras a Bragança. Mas o que torna este grupo tão interessante são os dois casos de Ponta Delgada: duas mulheres de 65 anos que disseram ter vindo da Austrália e, na verdade, o perfil dos seus genomas é idêntico a um perfil frequente na Oceânia. A genética e o historial de viagem parecem não deixar muitas dúvidas sobre onde as duas mulheres terão sido infetadas.
Madeira: o caso de Câmara de Lobos, onde os infetados eram jovens, e a nova mutação do Funchal
O primeiro caso na Madeira foi confirmado no dia 17 de março: uma turista holandesa, de 61 anos, que tinha chegado à ilha do Funchal no dia 12. Neste caso, o vírus pertencia ao clado mais antigo, o 19A. No relatório do Insa, de 19 de maio, e ainda com outro tipo de classificação do vírus, refere-se que um perfil genético frequente nos Países Baixos tinha sido detetado exclusivamente na ilha da Madeira.
Perante o primeiro caso de Covid-19 na região, o presidente do Governo Regional, Miguel Albuquerque, declarou ainda o fim de todas as atividades de animação e recreação turista, pediu às embaixadas que repatriassem os seus concidadãos turistas e exigiu ao Governo nacional o encerramento dos aeroportos da região. A declaração do estado de emergência aconteceu no dia seguinte, mas os aeroportos não foram encerrados.
Mas a situação não ficaria por aí. Como é possível ver na árvore filogenética, os casos estão dispersos, o que indica que houve várias introduções diferentes, algumas com cadeias de transmissão muito claras. Câmara de Lobos, por exemplo, com a maioria dos casos detetados em meados de abril — que levou à criação de um cordão sanitário —, forma um grupo bem definido dentro do clado 20B: duas pessoas que regressaram do continente causaram pelo menos 10 casos.
Mas ao contrário do cenário que se vê na maior parte das regiões do país, neste município os infetados são jovens: seis crianças com menos de 15 anos, 10 jovens ou jovens adultos (entre os 18 e os 25 anos) e apenas quatro pessoas com mais de 50 anos.
“Estamos a trabalhar com as autoridades de saúde [da Madeira] para fazermos um cenário completo das introduções que houve, daquelas que permaneceram e levaram a algumas cadeias de transmissão na comunidade e de outras que chegaram, foram logo detetadas, foram confinadas e que não levaram a mais casos a não ser aqueles que foram detetados à chegada”, conta Vítor Borges, acrescentando que é o que se pretende fazer com as outras regiões do país à medida que a recolha dos perfis genéticos for sendo concluída.
Ainda antes de se fecharem as contas na ilha, o Funchal trouxe mais uma surpresa, revelada pelo Insa no último relatório (24 de junho): uma mutação que ainda não foi reportada em mais nenhum país do mundo. Um único genoma recolhido na cidade madeirense a 13 de abril apresenta “uma mutação (P491S) na região de ligação da proteína spike (S) ao seu recetor (ACE2) das células humanas”, revela o instituto. Apesar de a mutação estar localizada na proteína (e no ponto) responsável por permitir a entrada do vírus nas células do hospedeiro, ainda não se sabe se tem algum impacto na forma como o SARS-CoV-2 infeta o organismo e leva ao desenvolvimento dos sintomas.
As mutações e as relações entre os genes
Identificar as introduções do vírus em Portugal (as antigas e as novas), conhecer os padrões de disseminação e perceber o impacto das medidas de contenção, são alguns dos objetivos da equipa do Departamento de Doenças Infecciosas e Núcleo de Bioinformática do Insa. Mas os investigadores também querem conhecer melhor as mutações do vírus, perceber se podem ser alvos dos testes de diagnóstico ou dos tratamentos e se influenciam a evolução do doença.
Os vírus, mesmo sem serem organismos vivos, têm uma “vida” muito dinâmica. À medida que se replicam no interior das células que infetam, os vírus sofrem mutações, como quem copia um texto e introduz erros ortográficos nas palavras copiadas — no caso do SARS-CoV-2 acontece a um ritmo médio de duas mutações por mês. Estes pequenos erros podem não ter qualquer impacto para o vírus — assim como um texto com erros pode continuar a ser lido —, mas permitem aos cientistas perceber por onde andaram, que pessoas poderão ter sido infetadas numa mesma cadeia de transmissão ou como é que o vírus evoluiu no organismo de cada doente.
Em Portugal, nos primeiros 781 perfis sequenciados, foram identificadas 600 (e, neste momento, já há 976 os genomas sequenciados). Apesar de todas as mutações (em Portugal e no mundo), o SARS-CoV-2 continua a ser um único vírus, sem estirpes nem variantes, afirma Vítor Borges. Mesmo no caso dos clados 20A, 20B e 20C, que se distinguem dos 19A e 19B por terem uma mutação na proteína S (D614G), não se pode falar de estirpe ou variante nova. Na verdade, ainda nem sequer se sabe se aquela mutação tem algum impacto no vírus ou na função da proteína, que é usada para invadir as células humanas.
O investigador pede cautela também na interpretação das linhas que parecem unir os casos. “Este é um trabalho em curso que resulta de uma amostragem. Apenas uma pequena percentagem dos casos é analisada”, lembra Vítor Borges. E o caso de Sintra é um bom exemplo disso: dos 28 genomas sequenciados, 15 parecem pertencer a um grupo próximo, como se de uma cadeia de transmissão se tratasse, mas os dados não permitem confirmá-lo. “É normal que num concelho como Sintra, que é enorme, e tendo em conta as amostras que temos [desse local], com certeza não se poderá dizer que em Sintra há só uma cadeia de transmissão ou que os genomas são mais próximos entre si.”
Além disso, a aparente proximidade entre casos na árvore filogenética pode não representar qualquer relação. “Com a taxa de mutação destes vírus, é possível que dois vírus sejam indistinguíveis em termos de genoma e não tenham qualquer relação epidemiológica conhecida.” Podem ser geneticamente semelhantes, mas as origens, os locais por onde passaram e como vieram dar origem a uma cadeia de transmissão serem totalmente diferentes.
Ao longo das próximas semanas, e à medida que os vários laboratórios no país enviam as amostras para o Insa, vão continuar a ser inseridas as sequências genéticas, os dados dos doentes e os históricos das viagens que fizeram antes de adoecerem. Nos próximos meses o coronavírus ainda terá muitas histórias e memórias para contar. E ao contrário de Phileas Fogg, que usou “todos os meios de transporte, paquetes, transportes ferroviários, carruagens, iates, navios mercantes, trenós e um elefante”, ao vírus basta-lhe usar um avião para em poucas horas ir de uma ponta à outra do globo.