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Como o caso das golas levou o Governo a devolver 844 mil euros a Bruxelas

Governo teve de devolver 844 mil euros para não ter problemas com Bruxelas. O caso envolve históricas rocambolescas, uma empresa de parque de campismo, dois irmãos e dirigentes e militantes do PS.

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“A sra. jornalista também tem aqui material inflamável. Vamos ser sérios e responsáveis”. Foi assim que o então ministro Eduardo Cabrita reagiu em 2019 às suspeitas de favorecimento do marido da presidente socialista da Junta de Freguesia de Longos no chamado caso das golas — as tais que deveriam proteger os cidadãos durante um incêndio, mas que tinham sido feitas com tecido inflamável.

Com a acusação do Ministério Público (MP) desta sexta-feira, revelada pelo Observador, a José Neves (ex-secretário de Estado de Eduardo Cabrita), ao general Mourato Nunes (ex-presidente da Autoridade Nacional da Proteção Civil), a quatro ex-membros de gabinete de José Neves e a três funcionários da Proteção Civil, o mínimo que se pode dizer é que foi Estado que saiu chamuscado — com muitos socialistas envolvidos.

Caso das Golas. Ministério Público acusa ex-secretário de Estado de Cabrita e ex-líder da Proteção Cívil

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Tanto que o Governo de António Costa decidiu devolver 844 mil euros de fundos europeus a Bruxelas, segundo a investigação de uma equipa de três procuradores (coordenados pela magistrada Ana Carla Almeida) e da Polícia Judiciária, a que o Observador teve acesso.

O MP apenas acusa os 14 acusados de terem prejudicado o Estado em cerca de 333 mil euros, mas o Governo decidiu jogar pelo seguro e devolver todos os fundos relativos aos contratos dos programas “Aldeia Segura” e “Pessoas Seguras” sob suspeita, para não ser alvo de futuras investigações da União Europeia.

O caso envolve históricas rocambolescas sobre golas que, afinal, só deviam proteger as “vias respiratórias”, uma empresa de parque de campismo, dois irmãos e vários dirigentes e militantes do PS.

O ‘cambão’, a consulta a dois irmãos e a vitória do parque de campismo

Tudo começa quando o Conselho de Ministros criou em outubro de 2017 os programas “Aldeia Segura” e “Pessoas Seguras”. Grosso modo, tratavam-se de ações de sensibilização para a prevenção de risco dos incêndios florestais que tinham um alvo simples: as populações do interior.

Dois meses depois, a secretaria de Estado da Proteção Civil liderada por José Neves já tinha identificado o que se pretendia adquirir: 2.835 kits de sinalética, 15.000 kits de autoproteção, 70.000 golas de autoproteção, 8.000 coletes, entre outros bens que seriam comprados pela Autoridade Nacional de Proteção Civil liderada pelo general Mourato Nunes.

José Neves (em primeiro plano) com o ministro Eduardo Cabrita e o primeiro-ministro António Costa no verão de 2019

Paulo Cunha/LUSA

Em julho de 2019, após várias negociações com a autoridade de gestão do Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR), ficaram garantidos cerca de 1,6 milhões de euros do Fundo de Coesão para financiar um investimento total de cerca de 2,1 milhões de euros.

E a partir daqui, começa o verdadeiro caso.

Desde logo porque foram decididas várias consultas ao mercado que, segundo a acusação, terão sido precedidos de alegada pré-combinação. Ou seja, terá ocorrido um ‘cambão’, uma combinação de preços com vista a que dois contratos no valor de mais de 330 mil euros fossem adjudicados à Foxtrot — Aventura, Unipessoal, Lda.

Por exemplo, as consultas ao mercado para a aquisição das 70.000 golas e dos 15.000 kits de autoproteção foram precedidas de contactos entre Ricardo Fernandes, sócio-gerente da Foxtrot (com sede em Fafe) e marido da presidente socialista da Junta de Freguesia de Longos (Guimarães), e o gabinete de José Neves. Segundo o Ministério Público, terá sido um adjunto de José Neves chamado Jorge Barbosa (oficial da GNR) que terá indicado a Foxtrot.

Comecemos pela consulta ao mercado para a aquisição das 70.000 golas. A Foxtrot, a MOSC e a Edstates foram as empresas consultadas pelo gabinete de José Neves.

Foram decididas várias consultas ao mercado que, segundo a acusação, terão sido precedidos de alegada pré-combinação. Ou seja, terá ocorrido uma combinação de preços com vista a que dois contratos no valor de mais de 330 mil euros fossem adjudicados à Foxtrot — Aventura, Unipessoal, Lda.

Primeiro pormenor relevante: os gerentes da Foxtrot (Ricardo Peixoto Fernandes) e da MOSC (Luís Peixoto Fernandes) são irmãos. Acresce que Jorge Barbosa, o adjunto do secretário de Estado que era amigo do sócio-gerente da Foxtrot, foi quem arranjou uma fatura pro-forma da Edstates que serviu de orçamento para fundamentar um convite formal para participar no procedimento.

Além disso, o prazo de resposta à consulta formal ao mercado era de apenas 72 horas — prazo censurado pelo MP e o qual apenas a Foxtrot cumpriu.

De acordo com a acusação, tudo isto terá sido combinado para promover o favorecimento da Foxtrot que acabou por ganhar o contrato de cerca de 125 mil euros, tendo cobrado este valor à Autoridade Nacional da Proteção Civil no dia 2 de julho de 2018.

Outro detalhe relevante: a Foxtrot tem como objeto social várias atividades económicas mas nenhuma delas era a produção têxtil, sendo que “restringia a sua ação à direta exploração de um parque de campismo e respetivo equipamento”, lê-se no despacho de acusação.

Golas “inaptas” e o email de Mourato Nunes sobre a “proteção das vias respiratórias”

O MP e a PJ acabaram por confirmar durante a sua investigação o que já tinha sido denunciado pelo Observador: as golas eram mesmo inflamáveis. Ou em termos técnicos, eram “inaptas para o fim a que se destinavam”: proteger os cidadãos durante um incêndio. “Um facto que era visível e notório para qualquer pessoa que as observasse”, lê-se no despacho de acusação.

E que foi atestado por perícias técnicas. “O malho das golas é classificada com o índice 1 de propagação de chama limitada”, sendo que tal tecido assim classificado “não deve ser usado em contacto com a pele (por exemplo, pescoço, cara, pulsos, etc.), pois tal vestuário não tem “funções adicionais de proteção contra o fogo”, atestaram os peritos consultados pelo MP.

O MP revela, aliás, um forte indício de que Mourato Nunes tinha consciência disso mesmo. Ao mesmo tempo que o ministro da Administração Interna respondia mal a jornalistas sobre o caso, também pressionava o presidente da Proteção Civil.

As golas destinam-se "à proteção das vias respiratórias" e não do "pescoço e da cara". "Face a tudo o que sabemos agora sobre a tramitação dos procedimentos (...) não devemos continuar a alimentar este assunto pois estamos cheios de fragilidades e, sobretudo, não devemos cair no ridículo"
Email do general Mourato Nunes, presidente da Autoridade Nacional da Proteção Civil

Ora, de acordo com um email de Mourato Nunes para uma sua adjunta, o Governo e a Proteção Civil deviam apenas divulgar ao público que as golas destinavam-se “à proteção das vias respiratórias” e não do “pescoço e da cara”.

Mais: aconselhava ainda que se deixasse cair a narrativa da “proteção do interesse público” face à urgência do procedimento contratual, “face a tudo o que sabemos agora sobre a tramitação dos procedimentos (…) não devemos continuar a alimentar este assunto pois estamos cheios de fragilidades e, sobretudo, não devemos cair no ridículo“, lê-se no email citado no despacho de acusação.

Daí que o MP diga que a “fraca qualidade destas golas resulta da vontade concretizada de obter o maior benefício possível por via desta contratação, reduzindo a sua qualidade.”

O irmão faz e a Foxtrot embala

Após a adjudicação à sua empresa Foxtrot, Ricardo Fernandes subcontratou a empresa do seu irmão Luís Peixoto Fernandes (a MOSC que tinha participado na consulta ao mercado) para fazer as posteriormente famosas golas anti-fumo.

Além de censurar as duas empresas de conluio na consulta ao mercado, o MP também acusa a Foxtrot de ter empolado a sua proposta que veio a ganhar. Isto porque o valor final cobrado pela Foxtrot corresponde a uma mais-valia de 58% face ao preço cobrado pela MOSC para fazer as golas.

Incêndios. Proteção Civil distribuiu 70 mil “golas” inflamáveis às populações

Isto é, as golas custaram cerca de 73 mil euros à Foxtrot, que as revendeu à Proteção Civil por 125 mil euros. Daí que o MP diga que houve uma ação “concertada” entre as duas empresas para “aumentar artificialmente o valor das golas” em cerca de 52 mil euros, sem que isso “corresponda uma verdadeira mais-valia económica”.

A “Foxtrot limitar-se-ia a rececionar as golas concluídas, virá-las, embalá-las e transportá-las até aos locais de entrega como acordado com a ANEPC”, acusam os três procuradores que subscreveram o despacho.

O telefonema da presidente da Junta, o papel do PS de Arouca e os 40 mil euros em notas

O segundo contrato ganho pela Foxtrot, o fornecimento de 15.000 kits de autoproteção, começou por ter um momento insólito.

Quando o procedimento de contratação pública ainda estava na fase preliminar, Isilda Gomes da Silva, a presidente de Junta de Freguesia de Longos (Guimarães) eleita pelo PS, contactou telefonicamente José Neves a 26 de abril de 2018.

Tratando o secretário de Estado da Proteção Civil por “tu” — “um trato social revelador de proximidade”, segundo o MP —, a autarca quis saber uma informação importante para si: “Quantos kits iriam ser distribuídos no município de Guimarães.”

Quando o procedimento de contratação pública ainda estava na fase preliminar, Isilda Gomes da Silva, a presidente de Junta de Freguesia de Longos (Guimarães) eleita pelo PS, contactou telefonicamente José Neves a 26 de abril de 2018 para saber "quantos kits iriam ser distribuídos no município de Guimarães." Isilda é mulher do empresário que ganhou esse contrato por adjudicação de José Neves.

Certo é que Ricardo Peixoto Fernandes, marido da presidente socialista da Junta de Freguesia de Longos, veio a ganhar o contrato de mais de 202 mil euros. Para tal, teve uma ajuda importante de uma empresa, a Brain One, Lda, então de Tiago Rodrigues, que concorreu com a Foxtrot.

Contexto importante. A Brain é uma empresa de Arouca — concelho que foi liderado por José Neves entre 2005 e 2017. Ora é Francisco Ferreira (líder do PS de Arouca e adjunto de Neves na secretaria de Estado da Proteção Civil) quem convida a Brain para participar nas diferentes consultas aos mercado dos programas “Aldeia Segura” e “Pessoas Seguras”. Francisco Ferreira foi constituído arguido mas viu o MP arquivar as suspeitas contra si de forma clara num despacho de arquivamento.

Já a Brain veio a ganhar um contrato no valor de 13 mil euros para fazer um “Guia Aldeias Seguras” (que nasceu de um ficheiro Word que lhe foi enviado por Francisco Ferreira com a ideia de o tornar “mais apelativo”).

E também participou, de forma censurada pelo MP, na consulta ao mercado para os 15.000 kits de autoproteção em alegada concorrência com a Foxtrot. Porquê? Porque depois de apresentar a proposta mais competitiva na fase preliminar (10,15 euros por unidade contra 22,15 euros da Foxtrot), aumentou a sua proposta na fase final para 11 euros, enquanto que a empresa de Ricardo Ferreira baixou para 9,75 euros.

Caso das golas antifumo já tem 18 arguidos. Investigação está em fase final

Resultado: a Foxtrot ganhou o contrato avaliado em cerca de 202 mil euros. Se a Brian tivesse mantido a sua proposta, tinha ganho o contrato e a Proteção Civil teria poupado cerca de 9 mil euros. Aliás, até teria poupado mais, porque a Foxtrot acabou por não entregar cerca de 800 kits, tendo a Proteção Civil sido prejudicada em cerca de 10 mil euros.

A Foxtrot voltou a utilizar a mesma estratégia do contrato das golas e subcontratou a elaboração do kit a outras empresas. Uma delas, a Carmen, acabou por ser paga com 40 mil euros em numerário, vulgo ‘dinheiro vivo’. Apesar de censurar as instituições de crédito (Caixa Geral de Depósitos e Montepio) que aceitaram que fossem feitos levantamentos e depósitos nessa ordem de grandeza (o que não é permitido pela lei contra o branqueamento de capitais sem uma justificação fundamentada), a investigação não conseguiu apurar com exatidão a origem dos fundos.

Autoridade de Proteção suspende e devolveu 844 mil euros

A diretora de informação da Rádio Renascença chegou a contar, no verão de 2019, altura em que o caso das golas estava na agenda, que o ministro Eduardo Cabrita apelidou os jornalistas de “cobras” por escrutinarem o caso das golas.

Certo é que foi o escrutínio jornalístico que levou a autoridade de gestão do Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR) a suspender os pagamentos de mais fundos europeus à Proteção Civil e a ordenar no verão de 2019 uma auditoria aos contratos adjudicados à Foxtrot.

Feita a constatação de que a “Foxtrot, enquanto fornecedor, não estava habilitado para a execução” dos dois contratos que lhe tinham sido adjudicados, a autoridade de gestão do POSEUR considerou as verbas totais pagas como “não elegíveis” para serem financiadas pelo Fundo de Coesão da União Europeia e concluiu que a Autoridade Nacional da Proteção Civil estava “devedora do montante de 314.757,00 euros”.

Patrícia Gaspar, a atual secretária de Estado da Proteção Civil que sucedeu a José Neves, acabou por ordenar a Mourato Nunes a 29 de setembro de 2020 que submetesse um “pedido de anulação ou desistência” de todos os contratos dos programas “Aldeia Segura” e “Pessoas Seguras” que tinham sido financiados por fundos europeus e que estavam a ser investigados pelo MP.

E a 15 de outubro de 2020 foram rescindidos os contratos de financiamento com o Fundo de Coesão, tendo-se procedido à “restituição voluntária” de cerca de 833 mil euros por contrapartida do orçamento da Proteção Civil. Isto é, verificou-se um prejuízo para o Estado de igual montante.

Daí que o MP avance com declarações de perda de vantagem e penas acessórias de proibição do exercício de funções públicas para os ex-políticos e ex-membros de gabinete para a maioria dos arguidos.

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