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Era quase uma “obsessão”. Quem lidou de perto com José Sócrates descreve assim a sua relação com a imprensa. O ex-primeiro-ministro preocupava-se com as notícias que saíam sobre si e sobre o impacto que podiam ter na opinião pública. Por causa de pormenores, ligava, irado, a jornalistas. De tal forma que, segundo a acusação do Ministério Público, terá engendrado um plano para controlar os jornais através do Grupo Lena e do seu alegado testa de ferro, Carlos Santos Silva, começando pela aquisição de jornais regionais até à criação de um jornal nacional.
A relação de José Sócrates com a imprensa começou ainda nos tempos da Covilhã, ao mesmo tempo que dava os primeiros passos na política enquanto deputado do PS eleito por Castelo Branco. Corria o ano de 1988 quando se começou a desenhar o projeto que iria resultar no semanário Gazeta do Interior. E Sócrates tornar-se-ia um dos seus acionistas fundadores, ao lado do empresário Santos Silva e do amigo Afonso Camões, atual diretor do Jornal de Notícias, visado nas escutas da Operação Marquês e tido como um homem de confiança do ex-governante.
Na altura, e como recordou ao Observador uma jornalista que ali trabalhou, o projeto foi muito “acarinhado na região”. Nos conteúdos editoriais contavam com a colaboração de “muitos intelectuais”, como era o caso de António Guterres e Pedro Roseta. E, no conselho de administração, além de Sócrates — como confirmou o Observador junto do jornal — estavam o empresário Santos Silva, como ele próprio afirmou ao Ministério Público, o jornalista Afonso Camões e outros pequenos acionistas “representados de forma simbólica”. Camões, que deixara o jornal O Semanário, em Lisboa, onde trabalhara nos últimos quatro anos, para abraçar o projeto em Castelo Branco, foi administrador e também diretor do jornal. Até que, dois anos depois, chegou um convite para trabalhar em Macau. Partiu, deixando a Sócrates uma maior percentagem de ações naquela publicação.
Só em 1995, quando foi escolhido por António Guterres para encabeçar a secretaria de Estado do Ambiente, é que Sócrates deixou o jornal. Fernando Paulouro, que esteve anos à frente do Jornal do Fundão, recorda-se bem disso. Aliás, chegou a dar-lhe uma coluna de opinião no jornal que dirigia — onde também tinha um colunista do PSD. Fernando Paulouro garante contudo que nunca sofreu qualquer pressão. “Sócrates conhecia-me o suficiente para não o fazer”, afirma ao Observador. Garantia partilhada por uma jornalista da Gazeta do Interior, que acompanhou a publicação da notícia sobre o aterro da Cova da Beira e diz que o tema foi sempre tratado livremente.
Esta não é a visão dos procuradores do Ministério Público, que agora acusam o ex-governante de três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, dezasseis de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documento e três de fraude fiscal qualificada. Segundo a acusação, Sócrates e o amigo Carlos Santos Silva terão mesmo delineado uma estratégia para “controlar” a comunicação social, começando pelos jornais regionais, na altura em que se voltou a investigar o processo Cova da Beira, em 2002.
Em causa estava o alegado envolvimento de José Sócrates, então secretário de Estado do Ambiente, na adjudicação da construção do aterro local a um consórcio da HLC — que integrava a empresa de Santos Silva (a Conegil Empreiteiros SA, em sociedade com o também arguido António Barrocas Duarte). Nesta altura, estava também pendente um processo relacionado com a adjudicação de obras pelo GEPI — departamento governamental responsável pelas obras das forças de segurança — à Conegil. E tudo isto era matéria noticiosa.
O Grupo Lena e o negócio dos jornais
Desde 1998 que o Grupo Lena detinha uma empresa, a Sojormédia SGPS, com sede em Marrazes, Leiria, direcionada para a comunicação social. A Sojormédia detinha os semanários Região de Leiria, e O Eco, de Pombal (também no distrito de Leiria), a Rádio Antena Livre, em Abrantes, o semanário O Aveiro e a TV Beira Televisão SA. Afonso Camões, vindo de Macau, viria a trabalhar para a empresa como consultor de comunicação, entre 2000 e 2002 — ano em que Santos Silva entra como acionista. O empresário amigo de Sócrates, que já estava ligado ao Grupo Lena por via da construção civil, aproveitou um aumento de capital para entrar com 213.900 euros e deter 25% da empresa. Podia agora entrar no ramo da comunicação social. E o MP acredita que esta decisão não foi um acaso.
O MP refere que “a presença do arguido Carlos Santos Silva na área de comunicação do Grupo Lena visou a constituição de um grupo de comunicação social, inicialmente apenas a nível local, que pudesse ser controlado pelo arguido José Sócrates, servindo de base de apoio às suas ambições”, lê-se na acusação. Ao MP, Santos Silva chegou a dizer: “Eu tenho ligação aos media há mais de trinta anos, fui administrador do Jornal i, da Gazeta da Beira lnterior e ainda tentei comprar os direitos da Fórmula 1 para Portugal. É um produto que não é muito caro e que tem alguma difusão”, disse.
Depois da entrada de Santos Silva, a empresa do Grupo Lena foi adquirindo mais jornais, como O Ribatejo e o Jornal do Centro, do distrito de Viseu. “Assim, verificou-se a aquisição de órgãos de comunicação social regionais, pela sociedade Sojormedia, de modo a favorecer a divulgação de notícias favoráveis e a minimizar os eventuais impactos negativos, para o arguido José Sócrates, de notícias relativas a processos em curso“, acrescentam os procuradores.
José Sócrates conhecia a importância da comunicação social. A sua visibilidade enquanto comentador da RTP, quando Ferro Rodrigues se demitiu em 2004, terá sido útil para a vitória que se seguiu enquanto secretário-geral do PS. E, um ano depois, para a maioria absoluta do PS que lhe deu a liderança do Governo. Foi por esta altura que o amigo de longa data, Carlos Santos Silva, renunciou ao cargo como vogal da Sojormédia, mantendo no entanto a sua ligação à empresa até 2015.
No ano em que Sócrates chegou a primeiro-ministro começou a investigação ao caso Freeport. Em causa, mais uma vez, a aprovação ambiental do projeto de construção do centro comercial Freeport numa zona de proteção especial, em Alcochete. O projeto fora aprovado três anos antes, nos últimos dias de funções de José Sócrates enquanto ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território. Enquanto corria a investigação, a Sojormedia ia adquirindo mais jornais, como o Jornal da Bairrada, depois o Semanário do Algarve, As Beiras, a Rádio no Ar, em Viseu, e o semanário Grande Porto.
O então diretor do jornal As Beiras, António Abrantes, recordou ao Observador como aconteceu a venda. Foi cerca de “um ano de namoro” com o Grupo Lena até vender 50% do negócio — que, além do jornal, tinha uma gráfica que imprimia os jornais da região. “Não imaginava que havia qualquer ligação daquele género, conhecia apenas José Sócrates como político. A nível do Diário As Beiras procedíamos como qualquer jornal”, explicou, com as conversas “normais” com alguns políticos locais. Ainda assim, lembra-se que teve de integrar na redação um jornalista do Grupo Lena — que, ao que o Observador apurou, passou por todas as publicações do grupo, de Norte a Sul do país e até pelo jornal i. O Observador tentou falar com ele, sem sucesso.
António Abrantes ainda trabalhou com o Grupo Lena dois anos, mas, adivinhando “a crise que os jornais iam atravessar”, acabou por vender-lhe os restantes 50% e sair do jornal, onde também era diretor. O jornalista que vinha do Grupo Lena, Pedro Costa, foi o seu sucessor na direção. Até que o jornal acabou, mais tarde, vendido ao Grupo Fapricela.
Comprar um jornal nacional
Segundo a acusação do Ministério Público contra Sócrates, depois de um certo domínio dos jornais regionais, era altura de pensar mais alto. E Santos Silva terá dado indicações ao Grupo Lena para investir a nível nacional. Há muito que o jornal Público avançava com notícias pouco abonatórias para o primeiro-ministro, uma delas — publicada em 2007 — punha em causa a sua licenciatura. Então, acredita o MP, era necessário dominar aquele jornal. A abordagem aconteceu em 2008.
Descontente com as notícias veiculadas pelo jornal Público, o ex-governante perguntou ao filho de Belmiro de Azevedo, Paulo Azevedo, se não estaria interessado em vender o jornal. Disse-lhe, ainda, que em breve seria contactado por uma “pessoa de confiança” com uma proposta. O contacto veio pouco depois e foi feito pelo ex-administrador do BCP, Armando Vara, que tinha um potencial cliente: o Grupo Lena. Segundo o despacho de acusação da Operação Marquês a que o Observador teve acesso, Paulo Azevedo, presidente da Sonae, ouviu a proposta do então presidente do Millenium BCP mas recusou-lhe a venda. Considerou que o Grupo Lena “não reunia as condições de credibilidade na área jornalística, de práticas de boa gestão e de independência política que para si eram essenciais para que a Sonae considerasse a venda, ainda que parcial, do jornal Público”, lê-se na acusação.
José Manuel Fernandes, à altura diretor do Público e agora publisher do Observador, desconhece pormenores sobre este negócio, mas lembra-se de como o ex-governante era “obsessivo” com o que os jornais diziam e mostravam sobre ele. Recorda que, antes da notícia sobre a licenciatura, em 2007, havia já artigos do jornalista José António Cerejo que tinham melindrado Sócrates. Uma delas acabou mesmo em tribunal, mas num processo movido pelo próprio jornalista. José Manuel Fernandes recorda o dia em que Sócrates arrancou o telefone das mãos de Luís Bernardo, assessor de Sócrates, para falar diretamente com o jornalista Ricardo Dias Felner. Assunto: a sua licenciatura.
A queda de Sócrates começou aqui. As escutas do curso mal explicado
Não se ficou por aqui. Ao tentar travar a publicação da notícia, ainda ligou a José Manuel Fernandes. “Lembro-me que estivemos ao telefone mais de uma hora. E que depois combinamos um almoço para essa sexta-feira. Ele deve ter pensado que a notícia já não saía. Quando ligo, nessa sexta-feira, ao assessor Luís Bernardo para perguntar pelo almoço, ele diz-me: ‘Mas você acha que depois disto há almoço?'”. A notícia tinha saído nesse dia e só uma semana depois o Expresso pegaria nela. “Ninguém mais se atreveu a falar no assunto. Só a Renascença pegou num noticiário, mas depois não falou mais disso”, lembra o ex-diretor do Público.
José Manuel Fernandes recorda, ainda, o dia em que foi contactado por um jornalista do Libération. Tinha vindo a Portugal entrevistar José Sócrates para um perfil e ter-lhe-á perguntado quem era o líder da oposição. O ex-primeiro-ministro indicou-lhe o jornalista, que acabou entrevistado e citado naquele jornal.
Sem conseguir adquirir o jornal Público, o Grupo Lena tentou comprar os jornais económicos. E ofereceu 20 milhões de euros à sociedade Económica SGPS SA, responsável pela edição e venda dos jornais “Diário Económico” e “Semanário Económico”, descreve, ainda, a acusação do Ministério Público. Estes acabaram nas mãos da Ongoing Strategy Investiments por mais 7,5 milhões (num total de 27,5 milhões e euros). Ongoing que também aparece na Operação Marquês via o seu presidente, Nuno Vasconcelos.
A fundação do jornal i
O Grupo Lena decidiu, então, criar um jornal nacional com a denominação “Novo Diário”. Os jornais da altura davam conta de um investimento na ordem dos 10 milhões de euros. A apresentação formal e oficial ocorreu a 9 de março de 2009, no Taguspark, em Oeiras — ano de eleições legislativas. A primeira edição viria a ser publicada dois meses depois e o jornal surgiria com um novo nome “i”, de informação geral, dirigido por Martim Avillez Figueiredo. Avillez Figueiredo, que o Observador tentou contactar sem sucesso, saiu um ano depois, alegando sentir-se “defraudado” nas expectativas que lhe foram criadas. André Macedo, seu adjunto, assumiu a direção. Acabaria por sair depois para dirigir o Dinheiro Vivo, o jornal económico online do grupo Controlinveste de Joaquim Oliveira.
De acordo com a acusação do Ministério Público, “o lançamento do jornal ‘i’ aconteceu numa fase em que o arguido José Sócrates pretendia criar um grupo de comunicação social favorável, em momento próximo às eleições legislativas de 2009”, lê-se na acusação. O Observador apurou que, na altura, Afonso Camões, que já não era consultor do Grupo Lena e trabalhava na Controlinveste, ainda endereçou alguns convites de trabalho a jornalistas para irem para o jornal i. Pouco depois, Afonso Camões foi trabalhar para a Agência Lusa.
Manuel Queiroz, então diretor do semanário Grande Porto, assumiu a direção interina do jornal i logo após a saída de André Macedo. Mas garante que não foi por intermédio de Afonso Camões. Ao Observador, o ex-responsável pelo jornal garante não ter sofrido qualquer pressão. Afirma até que os contactos do assessor Luís Bernardo eram frequentes. “Mas dentro do que é normal entre um diretor de uma publicação e um assessor.” Queiroz recorda o dia em que conheceu, por acaso, Santos Silva. Estava num almoço de quadros no Casino Estoril quando alguém à mesa começou a dizer que era “um disparate” associar o jornal i ao PS. “Quem lá escreve são os jornalistas”, dizia para quem queria ouvi-lo. Perguntou a alguém quem era aquela pessoa. E disseram-lhe que era Santos Silva, um amigo de Sócrates.
Nesse ano, em que Sócrates ganhou as eleições, mas que perdeu a maioria absoluta, o Grupo Lena foi reestruturado e, segundo o MP, desinvestiu na comunicação social, começando a vender alguns dos seus jornais. No meio jornalístico, diz-se que este desinvestimento foi consequência da criação do jornal i. “O dinheiro esgotou-se ali”, disse uma fonte ao Observador. Atualmente, o Grupo Lena, depois de vender o i, possui apenas o jornal Região de Leiria, Jornal da Bairrada, Media On Lda e Mais um Século LDA. Santos Silva acabou igualmente por se afastar destes negócios. Mas também o MP considera ter sido um afastamento estratégico, voltando-se o empresário para “novos esquemas”, nomeadamente através da empresa XMI Management & Investiments SA — também arguida no processo por se suspeitar que, através de falsos contratos de prestações de serviços, recebia proventos do Grupo Lena.
A tentativa de compra da TVI
Depois de tentar comprar o Público e os jornais económicos, e antes de avançar com a criação do Jornal i, o Grupo Lena ainda tentou comprar a TVI, de acordo com a acusação do Ministério Público. A tentativa de aquisição da Media Capital e do Grupo Prisa (detentores da TVI) foi feita em conjunto com um consórcio com a Taguspark e investidores angolanos. “Na sequência de tal solicitação, no decurso do ano de 2008, decorreram algumas reuniões, que contaram com a presença de Catarina Guerra e Paulo Martins, do BESI, de Rui Pedro Soares e Américo Thomati, por parte da Taguspark, e de representantes do Grupo Lena e dos investidores angolanos”, explica o MP.
As conversas telefónicas tidas entre Sócrates, Vara e Rui Pedro Soares foram escutadas por inspetores da PJ que então investigavam crimes de corrupção, associação criminosa e enriquecimento ilícito no processo Face Oculta. Uma fonte da PJ contactada pelo Observador disse que nestas escutas era clara “a obsessão” de Sócrates pelo controlo da comunicação social. “Mais do que controlar os jornais que mais vendiam, o ex-primeiro ministro queria controlar os jornais em que a opinião era forte e que podia, depois, ser citada nos telejornais e em programas de informação”, disse.
A informação obtida através das escutas levou mesmo o procurador responsável pelo inquérito a pedir ao então procurador-geral da República, Pinto Monteiro, que abrisse um outro inquérito por “fortes indícios da existência de um plano (…) visando o afastamento de jornalistas incómodos e o controlo de meios de comunicação social”. Em causa, o crime de atentado ao Estado de Direito. Pinto Monteiro, por seu turno, considerou não haver indícios de qualquer crime e ordenou que as escutas onde estivesse envolvido José Sócrates fossem destruídas. Também o então presidente do Supremo, Noronha de Nascimento concordou com a destruição.
Das conversas que se mantiveram no processo e que têm como intervenientes o ex-consultor jurídico Paulo Penedos, o ex-responsável pelo BCP, Armando Vara, e o ex-administrador da PT Rui Pedro Soares, é, no entanto, possível perceber que falavam do negócio da TVI. Referem-se ainda ao “chefe máximo” — que a PJ acredita ser Sócrates.
A título de exemplo, em maio de 2009 há uma conversa entre Paulo Penedos e Américo Thomati. Além de vários assuntos da PT, Penedos diz a Thomati que estava curioso com o que ia dar a “merda” da TVI. E diz-lhe que Zeinal (também arguido na Operação Marquês) já tinha encontrado uma forma de “não dizendo que não” a Sócrates, “fazer a operação em termos que ele nunca aparece”. No dia seguinte, há uma conversa captada entre Penedos e Rui Pedro Soares. Este diz que “para o assunto que têm em mãos” encontrou uma solução: em vez de comprarem 30% da holding, compram os ativos em baixo, o que permite que a PT possa comprar diretamente a Internet e a produtora de novelas, e que outras entidades mais inócuas comprem 30% da televisão.
Martim Avillez, que abandonou a direção do jornal i, foi também escutado numa dessas conversas com Paulo Penedos a 22 de junho de 2009. Avillez disse-lhe que “desatinou” com Rui Pedro Soares. Que este lhe tinha feito umas perguntas sobre “aquilo” (que a PJ suspeita tratar-se do negócio da TVI) e que tinha, depois, telefonado ao administrador do Jornal i, Francisco Santos (do Grupo Lena), a reclamar das perguntas que o jornal lhe tinha feito. “O que o Rui Pedro fez chama-se pressão e isso não se faz”, disse.
O caso acabou por ser alvo de uma comissão parlamentar de inquérito para apurar se o Governo, direta ou indiretamente, interveio na operação conducente à compra da TVI e, se o fez, de que modo e com que objetivos. Sócrates negou sempre ter tido qualquer conhecimento do negócio. O relatório final da comissão viria a concluir o contrário.
Foi também quando decorriam estas negociações que o Jornal Nacional, noticiário de horário nobre da TVI liderado por Manuela Moura Guedes, foi suspenso depois das férias. Na altura falou-se em “silenciamento”. Contactada pelo Observador, a jornalista Manuela Moura Guedes recorda que nos últimos tempos já era obrigada a “esconder” as notícias para não ser censurada. “Nós já só conseguíamos reações do Governo quando apanhávamos os governantes em eventos públicos, caso contrário nunca nos respondiam. Uma vez o telefone da redação tocou, eu atendi e disseram-me que era do gabinete do primeiro-ministro e que queriam falar com um jornalista. Identifiquei-me. Percebi que a secretária foi perguntar se podia ser comigo e disseram-lhe que não. Ela desligou imediatamente o telefone”, recorda Moura Guedes, que diz que de nada vale a atual acusação falar da tentativa de compra da TVI, se Sócrates nem sequer está acusado do crime de “atentado contra o Estado de Direito”.
“Houve um controlo dos media, do setor económico e empresarial que é assustador! É a subversão da democracia, termos o mais alto cargo da gestão do país a manobrar isto tudo. Ele conseguiu que a justiça fosse controlada. Só assim se consegue perceber o processo Face Oculta e as escutas. O MP passou, naquela altura, a sua fase mais vergonhosa”, diz a jornalista, que também viu arquivada a queixa que apresentou contra Sócrates.
Escutas a Vara. Mais revelações sobre plano para controlar os media
A presença no grupo que detém o DN, o JN e a TSF
Armando Vara foi outro dos escutados no processo Face Oculta. Neste processo constam algumas conversas que manteve com Joaquim Oliveira, presidente da Controlinveste — grupo que detém o Diário de Notícias, o Jornal de Notícias e TSF, entre outros. Na sequência do caso da TVI e da suspensão do Jornal Nacional, as escutas mostram Vara a dar indicações a Oliveira para ter atenção às notícias que estavam a ser publicadas nos jornais do seu grupo e que diziam que a saída de Manuela Moura Guedes fora uma vontade do P S. Diz-lhe que deve passar a mensagem de que Sócrates e o PS é que foram armadilhados.
Joaquim Oliveira recusou colaborar com a comissão de inquérito. Em comunicado enviado ao Parlamento justificou que o seu nome tinha “vindo a ser pública e ilegitimamente associado a atuações” que lhe eram “rigorosamente estranhas”. “Trata-se, tão só, de uma decisão que entendo dever tomar no âmbito do meu direito de reserva relativamente à minha vida privada e empresarial”, referiu, para defender a sua “honra e honorabilidade pessoais, bem como a credibilidade do meu grupo empresarial”. Já Armando Vara justificou aos deputados que, tendo o negócio sido “tornado público”, seria “praticamente impossível que ninguém tivesse conhecimento informal do que se estava a passar”.
Agora, a acusação do processo Marquês voltou a tocar na Controlinveste, grupo que desde a entrada de capitais de António Mosquito e Luís Montez, em 2014, passou a denominar-se Global Media e passou a contar com o então advogado de Sócrates, Daniel Proença de Carvalho, no Conselho de Administração.
Os procuradores do MP deram especial atenção às conversas tidas entre Sócrates e o atual diretor do Jornal de Notícias, Afonso Camões, o homem com quem deteve o jornal Gazeta do Interior, em Castelo Branco, e que regressou ao grupo de Joaquim Oliveira também em 2014, antes da detenção de Sócrates. Afonso Camões já tinha sido administrador do grupo entre 2006 e 2009 até que integrou o conselho de administração da Lusa. Regressaria ao grupo já como Global Media, para a direção editorial do JN. É referido nas escutas do processo Face Oculta, numa conversa travada entre o administrador da PT, Rui Pedro Soares, e o consultor Paulo Penedos em junho de 2009. Rui Pedro confirma que no “mercado” sabem que ele “é um próximo do chefe”. O Observador tentou contactar Afonso Camões, mas não obteve resposta.
No processo Marquês, Sócrates foi escutado a falar com Camões em junho, julho e agosto de 2014, meses antes de o ex-primeiro-ministro ter sido detido. Afonso Camões estava então na agência Lusa.
Uma dessas conversas com Afonso Camões foi registada a 28 de julho, cerca de duas horas depois de o jornalista António José Vilela, da revista Sábado, ter telefonado a Sócrates a dizer que estava a fazer um trabalho sobre o processo Monte Branco. O jornalista disse-lhe que teria informações de que o primeiro-ministro seria um dos visados. Sócrates terminou a conversa rapidamente e desligou. Pediu-lhe que não voltasse a incomodá-lo e de seguida ligou à secretária para o pôr em contacto com o seu então advogado, Proença de Carvalho.
Sócrates combina então um encontro com Afonso Camões na sua casa. Nessa tarde, segundo a acusação, o motorista João Perna terá telefonado a Sócrates a perguntar se o jornalista podia subir. Mas na casa de Sócrates encontrava-se o amigo e empresário Santos Silva, com quem também tinha combinado encontro. Sócrates desceu as escadas para falar com o responsável pela Lusa, diz o MP. “Verifica-se que, estando o arguido Carlos Santos Silva em casa do arguido José Sócrates, este teve que descer para conversar com Afonso Camões, evitando assim um encontro entre Afonso Camões e Carlos Santos Silva, no seu apartamento, uma vez que este último arguido surgia referenciado nas notícias, nomeadamente na questão da compra dos imóveis da mãe de José Sócrates”, diz a acusação. Os investigadores acreditam que Sócrates não queria que Camões fizesse a ligação entre o ex-governante e o empresário.
O telefonema do jornalista da Sábado causou “grande sobressalto”. Daí que se tenham seguido”reuniões e encontros vários, demorados, em casa do arguido José Sócrates com intervenção de pessoas próximas, incluindo advogados”. Por estes dias há até uma escuta do motorista João Perna, com a ex-companheira, em que diz que não sabia “o que ia acontecer”, que Sócrates estava “com o gajo que lhe costuma trazer o dinheiro em casa”, dizem os procuradores.
Já antes, em junho de 2014, Sócrates tinha falado com Camões ao telefone. Este disse-lhe que tinha estado numa visita oficial na China e que em conversa lhe tinham dito que Sócrates iria ser “preso”.
A influência de Sócrates na Controlinveste, agora Global Media, foi alvo de uma notícia assinada pela jornalista Felícia Cabrita, no jornal Sol, em 2016. A jornalista afirmava que, logo após a recomposição acionista, a ideia era colocar Afonso Camões à frente do DN e do JN. Mas Afonso Camões acabou a dirigir o Jornal de Notícias, sendo André Macedo (à altura diretor do Dinheiro Vivo) escolhido para o DN, para ocupar o lugar de João Marcelino. André Macedo acabou por ir para a RTP dois anos depois, tendo sido substituído por Paulo Baldaia — também falado para a direção de informação da TVI nas escutas do Face Oculta, aquando da polémica com Moura Guedes.
Como Sócrates tentou desmentir o Correio da Manhã
A preocupação de Sócrates com o que saía nos jornais é também bem visível no despacho de acusação quando o Correio da Manhã publica uma notícia sobre a venda da casa na Rua Braancamp, em Lisboa, em dezembro de 2013. Dias antes da publicação da notícia, Sócrates recebera uma SMS da jornalista Sónia Trigueirão do CM, a pedir para comentar a notícia de que a mãe dele, Maria Adelaide, teria uma dívida ao fisco por causa dessa venda.
O ex-governante apressou-se a fazer contactos na tentativa de saldar a dívida e de descredibilizar a informação. Terá mesmo dito à ex-mulher, Sofia Fava, que eles iam “ter azar” porque iriam “publicar uma notícia falsa”, já que a mãe iria regularizar a dívida correspondente às mais valias ganhas pela venda do apartamento em Lisboa. Segundo o MP, nos dias seguintes, tentou junto de Cristina Lopes, que ajudara Maria Adelaide a fazer o IRS, e do seu irmão, funcionário das Finanças, obter um comprovativo de que a mãe não tinha dívidas ao Fisco.
Como estes não conseguiram, telefonou a Emanuel Santos, ex-secretário de Estado adjunto e do Orçamento dos seus governos. Perguntou-lhe se conhecia o Diretor Geral dos Impostos e se era um “gajo” que “estava lá” no tempo deles. Depois de alguma irritação por parte de Sócrates, por não ter obtido resposta imediata, o ex-governante conseguiu que informassem o responsável pela repartição de Finanças da zona de residência da mãe de Sócrates. Ali, conseguiria o comprovativo. A notícia saiu no dia 4 de dezembro de 2013 e foi desmentida. Mas, um mês depois, a bomba: uma nova notícia de como Santos Silva, amigo de Sócrates, comprara três casas a Maria Adelaide. Sócrates não conseguiu evitar.