A estrela do PP espanhol pode estar com um pé fora do partido. Este foi o culminar de uma longa saga, em que o líder do Partido Popular e a presidente da Comunidade de Madrid entraram em conflito e foram subindo o tom das acusações, ao ponto de esta quinta-feira o partido ter anunciado que abriu um processo interno de averiguação a Isabel Díaz Ayuso, que poderá resultar na sua expulsão.
Esta que já é descrita como uma batalha pelo controlo da direção do partido de direita espanhol, tem como pano de fundo acusações de espionagem e contratos irregulares com empresas de produção de máscaras.
Tudo começou com notícias, na quarta-feira, de que a direção nacional do Partido Popular (PP) de Espanha está a investigar, desde outubro, o governo regional de Madrid, liderado por Isabel Díaz Ayuso. Em causa um contrato público de um milhão e meio de euros, assinado em 2020, através do qual o irmão de Ayuso terá recebido uma comissão. O contrato público está relacionado com compra de máscaras por parte do Ministério da Saúde, durante a primeira vaga de Covid-19, a uma empresa cujo presidente era amigo de Tomás Díaz Ayuso — um negócio pelo qual este último teria recebido uma comissão de 280 mil euros.
Mais há mais: segundo os jornais El Mundo e El Confidencial, a direção do PP pediu a Ángel Carromero, braço direito do presidente da câmara de Madrid, que vigiasse Ayuso, recorrendo a detetives que estariam encarregues de provar que o irmão da líder madrilena tinha recebido uma comissão pela adjudicação de um contrato para compra de máscaras FFP2 e FFP3. Os jornais escrevem que responsáveis do PP próximos da direção nacional “contactaram várias agências de detetives para sondar a possibilidade de as contratarem para localizar os documentos fiscais e bancários do irmão de Ayuso”.
Detetive “Dom Julio” confirma pedido de espionagem
O secretário-geral do PP desmentiu “de forma taxativa e sem reservas” que o partido tenha tentado contratar detetives privados com o intuito de elaborar um dossier contra Ayuso. Mas à ABC, o detetive Julio Gutiez, do Grupo Mira, uma empresa de detetives privados de Madrid, disse ter sido contactado por “pessoas ligadas a uma empresa do Partido Popular ou na qual o PP governa” para lhe encomendarem uma investigação à presidente da Comunidade de Madrid.
E o jornal El Mundo vai mais longe nas provas: esta quinta-feira divulgou um áudio em que se ouve o presidente da Empresa Municipal de la Vivienda (EMV), Álvaro González, a contactar pessoalmente os detetives, para tentar encomendar os serviços espionagem.
“Dom Julio, é Álvaro González, o presidente da EMV”, diz em tom visivelmente nervoso. “Estou a ligar-lhe para ver se nos podemos encontrar para verificar algumas informações que recebi, se possível”, pode ouvir-se na gravação, em que González nunca chega a especificar o assunto, tendo os dois homens combinado falar pessoalmente quando o detetive voltasse de uma viagem a Las Palmas, para a qual estava prestes a partir.
Segundo o El Mundo, o presidente da EMV fez a chamada — tentou várias vezes antes, sem sucesso — depois de saber que funcionários da sua empresa já tinham contactado o Grupo de Investigação Mira para tentar obter dados bancários e fiscais confidenciais de Tomás Díaz Ayuso, especificamente uma declaração da sua conta bancária e a declaração fiscal da empresa à qual a presidente da Comunidade de Madrid adjudicou o contrato de compra de máscaras na China, a Priviet Sportive.
“A primeira coisa que lhes disse foi que era ilegal e que não ia fazer nenhuma investigação ilegal”, disse o detetive. “Não era sequer uma investigação, porque o que eles queriam eram dados muito específicos da administração fiscal e de um banco, de uma caixa de poupança”, continuou ele. “Recusei, e como recusei, esse foi o fim da história”.
Isabel Díaz Ayuso soube desta quase-investigação ilegal através de um ex-ministro de Mariano Rajoy, que, por sua vez, foi informado pelo próprio detetive. O caso fez com que o presidente da câmara de Madrid ordenasse uma investigação interna em que nas últimas semanas, foram recolhidos depoimentos da empresa municipal.
“Nunca imaginei que o meu partido fosse atuar de modo tão cruel”
Estrela em ascensão do PP, depois de ter conquistado com uma maioria quase absoluta a governação da região autónoma de Madrid, Isabel Díaz Ayuso não poupou nas palavras contra o seu antigo aliado, Pablo Casado, líder do PP: “Apesar de a vida política ser cheia de tristezas, nunca imaginei que a direção nacional do meu partido fosse atuar de modo tão cruel e tão injusto contra mim. Não pode haver nada mais grave do que acusar alguém da própria casa, com responsabilidade de governo, de corrupção (…) Que a oposição me ataque, é lógico, mas que o faça a direção do meu partido, porque me quero candidatar ao Congresso, é insensato.”
Ayuso já garantiu publicamente que nem ela nem ninguém do seu executivo “interveio para adjudicar o contrato”, frisando que o seu irmão trabalha como comercial, na área da Saúde, há 26 anos e que o negócio não tem nada de ilegal: “Ninguém encontrará uma única prova de corrupção da minha parte”.
A líder madrilena acredita que a quase-espionagem, e acima de tudo, as suspeitas de corrupção, são apenas uma manobra política para a afastar da liderança do partido, que já deu sinais de querer disputar: esta segunda-feira, após uma vitória do PP em Castela e Leão, a líder madrilena exigiu que a direção do partido marque uma data para o congresso de Madrid.
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Segundo o jornal El País, há motivos para achar que esta investigação tem, pelo menos em parte, uma motivação política: antes de a investigação avançar, a direção do PP terá chamado Ayuso para uma reunião em que a ameaçou que difundiria informações sobre os contratos suspeitos se não se retirasse da corrida à presidência do partido em Madrid.
Risco de expulsão
Estas relevações e trocas de acusações culminam na decisão da direção nacional do PP, anunciada esta tarde em conferência de imprensa, de abrir um processo interno contra a líder madrilena, devido às “acusações gravíssimas, quase criminosas” contra o líder e cúpula do partido e concluir a investigação às alegadas irregularidades em torno da adjudicação do contrato à empresa do amigo do irmão de Ayuso. O secretário-geral do partido, Teodoro García Egea, anunciou a abertura deste dossier em tom grave, na sede do partido, alertando que os serviços jurídicos do PP estão também a avaliar se avançam com um processo judicial contra a líder madrilena, em resposta às acusações de que o partido engendrou um plano para a destruir de forma “cruel”.
Este processo “tem como objetivo recolher informação” e, no cenário mais grave, pode resultar na expulsão de Ayuso do PP. O tom solene do secretário-geral “mostra que não há compromisso possível, que Ayuso tem um pé fora do PP”, escreve o El País. Os termos em que tudo foi apresentado “revelam que a cúpula rompeu com a sua presidente regional mais mediática, a mais popular”, afirma o jornal.
Nesta conferência de imprensa, Egea não apresentou qualquer prova de que Ayuso tenha estado envolvida em ilegalidades, mas enfatizou a sua falta de colaboração na investigação. Depois de lhe terem pedido explicações sobre a adjudicação do contrato das máscaras, disse Egea, Ayuso não só se negou a responder, como “contra-atacou” com o que consideram ser uma campanha de “desprestígio” contra a direção do partido.
Estes “ataques injustos”, “intoleráveis” e que “causaram muitíssimo dano” podem resultar numa antecipação do congresso do PP de Madrid, afirmou Egea, dizendo que essa foi “a verdadeira razão” por que Ayuso criou esta polémica: para pressionar a marcação de uma data, para breve, devido às suas ambições dentro do partido.
“Muitas pessoas interrogam-se agora se esta questão está relacionada com as diferenças entre a liderança nacional e Isabel Díaz Ayuso relativamente à data do congresso do PP de Madrid. A resposta é sim”, afirmou o número dois do PP.” Mas “ter um bom resultado eleitoral”, como o que ela teve, “não isenta de retidão e lealdade”.
“Isto só acaba com um dos dois fora”
Esta implosão política ganhou tal magnitude em Espanha que o governo anunciou estar a estudar a possibilidade de convocar o debate sobre o estado da nação para finais de março ou inícios de abril, devido à posição frágil em que se encontra o líder do PP. Em três anos como presidente do governo, Pedro Sánchez nunca realizou este debate, alegando a repetição das eleições e a pandemia.
Este sismo político já chegou também à rua. Uma centena de pessoas, apoiantes de Ayuso, juntou-se à porta da sede do PP, na rua Génova de Madrid, gritando palavras de ordem, pedindo, inclusive, a demissão de Casado: “Já aguentámos um Rajoy, não vamos aguentar outro”, “Fra-Casado, demissão!”.
Não se sabe ainda como vai acabar esta guerra interna do PP, mas tudo indica que, entre Ayuso e Casado, só um poderá ficar no partido.
Dirigentes, ex-ministros, presidentes de câmaras e deputados, ouvidos pelo jornal El Mundo, mostram-se chocados com a intensidade e dimensão que o caso assumiu. O tão falado congresso nacional do partido é visto como a batalha final e já quase ninguém contempla a possibilidade de uma reconciliação. Duas frases são repetidas pelas fontes do jornal: “Isto só acaba com um dos dois fora”, “Um dos dois morre: Ayuso ou Casado”,
O corte total entre os dois dirigentes, em tempos amigos, choca com a imagem de maio de 2021, quando Ayuso venceu, de forma estrondosa, as eleições de Madrid. Nessa altura, a nova líder subiu ao palanque ao lado de Casado que, de sorriso no rosto, anunciou o início de um “novo capítulo em Espanha”. Os dois tinham os olhos no Palácio da Moncloa, onde estava o seu principal alvo, Pedro Sánchez. Agora, não é certo quem vai sobreviver.