A antiga Docapesca cheira a novo. Os dois mil metros quadrados que antes recebiam o pescado fresco acolhem agora o imponente e novíssimo projeto gastronómico de Cascais. Ou serão três? Atravessando as grandes portas envidraçadas, o primeiro confronto é com o restaurante Mar, dedicado ao peixe e ao marisco. Mas, subindo as escadas em caracol, há mais: no segundo piso, ficamos a conhecer a mezzanine que acolherá o bar Mundo e entrando na sala envidraçada adjacente, o espaço que, no futuro, será o restaurante Terra, dedicado às carnes. Apesar da pluralidade da oferta, o novo fine dining de Cascais não esquece ou esconde as origens. A começar pelo nome. Chama-se Lota da Esquina, numa homenagem ao passado e ao presente, ao sítio que foi e que agora é: era primeira paragem do peixe acabado de sair do mar; é o novo espaço de Vitor Sobral, chef com 36 anos de experiência acumulados, que comanda esquinas gastronómicas (de Portugal continental e insular, ao Brasil), da Taberna da Esquina às Padarias da Esquina.
De portas abertas desde 1 de setembro, arranca com a componente mar a funcionar em pleno. O bar tem inauguração marcada para o fim de semana de 10 e 11 de setembro e as carnes chegam apenas em outubro. A esplanada, com capacidade para duas centenas de pessoas, tem ainda estreia por agendar. As aberturas são faseadas, porque os acontecimentos globais a isso obrigaram. Os preparativos da nova Esquina de Vitor Sobral arrancaram em 2019, quando ganhou o concurso lançado pela Câmara Municipal de Cascais para requalificar a antiga Docapesca, mas no meio meteu-se a pandemia e a invasão da Ucrânia: “Apesar de ter imensa experiência, essa [a da pandemia e da guerra] nunca tinha tido. Atrasou tudo. A nível de materiais houve uma grande especulação e o projeto, como é evidente, ficou mais caro. Posso dizer-lhe que as máquinas de gelo estão pagas desde janeiro e ainda não chegaram”, conta. “Dificilmente conseguiria levar o projeto para a frente, se não tivesse uma parceria financeira muito forte.”
O Mar e a Terra
As paredes cobrem-se agora de painéis, de azul e de verde. À entrada, observam-se dois balcões, um que nos mostra parte de uma cozinha parcialmente descoberta, outro que é dedicado a bebidas. Há uma grande peça do artista Gonçalo Ghira, um peixe gigante. O projeto de arquitetura foi fruto da sinergia entre três arquitetas: Alexandra de Sousa Ramos, da ASR Architecture & Interior Design, Alexandra Marçal, da AM Interior Design e Fernanda Leote. A união resultou no grupo de trabalho FLAMASR — não é uma empresa, apenas um logótipo, que contém as iniciais das três mulheres.
No dia em que o Observador passou pela Lota da Esquina, sentou-se nos sofás onde se fazem as refeições do restaurante Mar. Olhamos para a carta: há ameijoas ou berbigão à bulhão pato, há filetes de polvo fritos, há camarão panado ou salteado, há lulas grelhadas, rissóis de camarão ou choco frito. Vitor Sobral propõe uma requintada, mas inteligível, viagem pelos sabores da costa portuguesa. “O fine dining tem de ter algum cuidado com a oferta, caso contrário, as nossas raízes e aquilo que é a nossa matriz à mesa terá alguma tendência a desaparecer”, diz ao Observador. À nossa volta, escutam-se outros idiomas. É caso para dizer que aqui come-se português, mas se ouve-se francês.
Depois, há ainda massada, moqueca, caril e arroz, feitos sempre com o peixe do dia e da época, aquele que o mar decide dar. Foi desta forma que Vitor Sobral assegurou uma carta intemporal, que faz frente a um produto que se esgota, sem depender exclusivamente dele. A expectativa é que haja dias em que a oferta já não esteja disponível — e isso é bom sinal. “As pessoas não gostam que faltem [opções da carta]. É bom que elas saibam saberem que é positivo quando as coisas acabam no restaurante. Significa que o produto roda. Quando se vai a um restaurante, e há sempre tudo, é estranho”, diz o chef que também já editou mais de duas dezenas de livros. “Hoje temos todos máximas da sustentabilidade, de não poluir os oceanos, de não desperdiçar. Mas depois toda a gente quer come bifes de lombo. Quando nós abatemos um animal, temos de ter a preocupação de comer tudo o que o animal tem.”
Com o peixe, conta, é fácil garantir que o produto é aproveitado ao máximo. “Está resolvido: a barriga vai para uma coisa, a cabeça vai para outra.” Na carne, é diferente, porque as pessoas, considera, só querem “as partes nobres”.
É neste ponto que vamos descobrir o que é que o restaurante Terra, no piso de cima, vai propor aos clientes. “Vai ser possível provar todas as miudezas bovinas, caprinas e suínas e também algumas partes nobres. Vai haver tutano, vai haver fígado de vaca, vai haver língua de vaca, fígado de porco, rins de borrego. Agora, também vai haver perna de borrego, lombo de porco, carne maturada. Vai haver isso tudo.”
Um “projeto de vida” onde cabem 400 pessoas
Ao todo, e contando com a futura esplanada, a mais extensa do Largo Cidade de Vitória, aqui poderão sentar-se 400 pessoas, em simultâneo. No interior, cada um dos pisos, será servido por uma cozinha independente da outra. Na do piso térreo, para já, é possível irmos observando Vitor Sobral a comandar a grande operação, que ao todo, envolverá entre 80 a 90 pessoas. Mas a sua presença não será diária — com uma mão cheia de projetos, é impossível. A garantia de que tudo fluí longe da sua presença vem com uma equipa antiga e de confiança. “A minha fórmula é sempre a mesma: não há ninguém que não esteja comigo há seis ou sete anos, desde a Tasca, à Taberna ou à Oficina da Esquina. Fechei a Peixaria da Esquina [em Cascais] para trazer a equipa para cá. A equipa da Lota ainda tem aquisições que vieram do Brasil, da Tasca da Esquina de São Paulo”, conta.
Esta Lota é, sem dúvida, “um projeto de vida”, tanto pela dimensão, como pelo facto de nascer numa antiga casa de peixe e de pescadores. “O peixe sempre fez parte da minha vida. Melides [de onde é a sua família] é junto ao mar e fica junto a uma das lotas mais importantes do país, que é a de Sines”, conta. Depois, ainda há a ligação a Setúbal: “Tenho um ritual, que quem me passou foi a minha família, sobretudo o meu pai. Quando vamos para Melides, paramos sempre na praça de Setúbal. Pegamos no ferry boat em Troia, atravessamos o rio e o almoço é sempre algum peixe que se comprou no mercado de Setúbal, que é maravilhoso.”
Está contente com a abertura, mas confessa que o sentimento não vem em pleno. “Estou feliz, mas a minha felicidade é ainda de insatisfeito”, diz. “Ainda faltam muitos detalhes. Mas tenho consciência de que, ou abria a faltarem esses detalhes, ou ia passar mais um ano para ficar perfeito. Como pessoa e empresário não aguentava”, confessa.
Nesse momento lembra o que viveu durante a pandemia: “Fiz uma coisa que foi muito difícil, como empresário: não despedi ninguém, porque sabia que ia precisar delas e porque há pessoas que trabalham comigo há vários anos e tive respeito por isso. Utilizando uma expressão muito suave, foi um tempo muito doloroso.”
A Lota da Esquina fica no Passeio D. Luís I, Lg. da Lota, em Cascais. Funciona de segunda a domingo, das 12h30 às 23h — o bar vai funcionar das 19h às 2h. O número para reservas é o 93 406 3093.