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As pernas tremem e o olhar divide-se entre o telemóvel e a porta. Os rostos preocupados e a postura inquieta nas cadeiras do aeroporto Figo Maduro remetem quase para o ambiente de uma sala de espera de hospital. Mas ali, só são esperadas boas notícias: um abraço de quem viveu o pânico que fez soar os alarmes em Israel.
Assim que as dezenas de malas surgem pela porta, as mesmas pernas que tremiam levantam-se e os olhares ficam fixados num só ponto. As palavras são poucas e o alívio é muito. Uma mulher, luso-israelita, de cara sofrida vem com as mãos dadas a cada uma das filhas e pede, quase impercetivelmente, aos jornalistas para contar a sua história.
“Eles estão a assassinar bebés e idosos nas suas camas. Estão a disparar contra cães e vacas”, diz ao Observador Odélia Ynany, 40 anos, neta de um português, enquanto acaricia a cabeça de uma das filhas.
“Estão a decapitar bebés. Cortam-lhes as cabeças e queimam os seus corpos”, interrompe o marido, Yehonantan. “Mais de 400 vacas foram mortas com um tiro na cabeça. Apenas porque… Não sei. Não consigo perceber porque estão a fazer isto”.
Nem ele, nem muitos dos que chegaram esta quarta-feira de manhã a Lisboa. Por volta das 10h45, o avião com os 152 luso-descendentes — dos 190 que pediram para ser repatriados — e os 14 estrangeiros (da Irlanda, Lituânia, Espanha e Bulgária) vindos de Israel aterrou no aeroporto de Figo Maduro. E não será o único.
A maioria das pessoas vem de mochila às costas e acompanhada pelos filhos. A expressão é de felicidade ao reencontrar os familiares, em segurança. No entanto, há quem não perca o olhar perdido e consumido pela sensação de injustiça.
“Já mataram mais de 2.000 pessoas. Não apenas de Israel, mas de vários países. Isto apenas no primeiro ataque do Hamas. Mas não é só o Hamas. É também o Irão e a Rússia, que o financiaram e treinaram os seus soldados”, critica o mesmo israelita.
Odelia e Yehonantan estavam em casa quando as sirenes que deram conta do primeiro ataque do grupo Hamas soaram. Já não era um som que os incomodasse. “Os alarmes começaram a ser bastante frequentes devido aos mísseis. Por isso, não suspeitámos que houvesse algo de diferente. Mas depois ouvimos os rumores sobre uma festa perto da fronteira com Gaza”, recorda o marido de Odelia.
Bastou ligarem os telemóveis para começarem a ver os vídeos e fotografias que davam conta dos raptos e assassinatos de mais de 260 pessoas que se encontravam num festival de música. Um dos primeiros alvos da “Operação Tempestade Al-Aqsa”.
“Não me matem, por favor”. Os relatos e as imagens do ataque ao festival de música em Israel
“Isto só aconteceu porque nos apanharam desprevenidos. Era sábado e era feriado. As pessoas estavam em festas e queriam dançar e divertir-se”, aponta Odelia, referindo-se ao dia em que se assinalaram 50 anos da Guerra do Yom Kippur.
Não era o caso deles. E se as sirenes não provocaram grande reação, tudo mudou quando que se aperceberam dos “cem ou 200 mísseis” lançados pelo Hamas nas primeiras horas: cada um fez a sua mala e saíram todos de casa em direção a um bunker. E não era a primeira vez que o faziam.
“Sabe o que é stress pós-traumático (PTSD)? Em Israel toda a gente o tem. E não é preciso ter combatido no exército para isso. É uma coisa geral, como se fosse uma enxaqueca. E as minhas filhas também o têm”, confessa Yehonantan.
Ainda assim, o israelita tenta que as más notícias não cheguem às crianças, tendo evitado que usassem as redes sociais desde que a guerra começou.
Agora, a única coisa que querem é uma casa. “Não sabemos para onde ir. Vamos procurar um sítio para ficar. E esperemos que seja temporário. Porque, apesar de estar agradecida a Portugal, sou judia. E, neste momento, não tenho país”, lamenta Odelia. E não é a única a sentir o mesmo.
Os israelitas que perderam a vida a lutar pelo seu país
Apesar de ter o símbolo do Sport Lisboa e Benfica (SLB) ao peito e o nome de Gonçalo Ramos às costas, Nadav sabe poucas palavras em português. Quanto muito, consegue dizer “simmm”, mas não mais do que isso. Mas será uma questão de tempo, até porque o israelita de nove anos mal se conseguiu preparar para a mudança para Portugal.
“Nós já tínhamos planeado vir viver para Lisboa, mas tivemos de o antecipar”, revela ao Observador a mãe, Odelia Zargari, 45 anos. A luso-descendente, os dois filhos e o marido tinham estado em Portugal dois dias antes do ataque. Por isso, quando ouviram as sirenes, as malas ainda nem tinham sido desfeitas.
A família abrigou-se rapidamente no bunker que tem em casa, na esperança de que o conflito passasse rapidamente, como todos os outros que motivam os alarmes na cidade. Mas não foi isso que aconteceu.
“Isto é pior que o Holocausto. É pior que um genocídio. Estão a degolar pessoas, a raptar mulheres e a matar idosas. E, no final, ainda se riem. Riem-se do sangue e dos corpos decapitados”, descreve Odelia, acrescentando que isto “não é só o Hamas, como o ISIS”, sigla usada para designar o Estado Islâmico.
Apesar de a luso-israelita ter mantido a televisão desligada nos dias em que esteve em Israel, para poupar os filhos, não tem deixado de acompanhar os detalhes mais sangrentos do ataque do Hamas. Até porque já houve pessoas próximas de si a sentirem-nos na pele.
Dois familiares do seu marido morreram nas mãos dos terroristas. Ou melhor, foram assassinados, como a mesma faz questão de realçar. “Eles faziam parte do grupo de pessoas com armas em casa que, em caso de emergência, têm de ir logo para a linha da frente do combate. Por isso, eles foram os primeiros a enfrentar o grupo e foram logo mortos”, destacou.
Tal como a família de Odelia e Yehonantan, a de Odelia Zargari também não sabe para onde ir. Com amigos no Algarve, a família está a pensar ir para sul. “Não tivemos tempo para planear nada. Nem para fazer uma reserva num hotel. Só pensámos que queríamos estar em segurança”. E isso bastou para que viessem para Portugal. E imploram para que a sua história seja contada. Mas essa não é a realidade de muitos luso-descendentes que chegaram a Portugal.
Ainda que a família de Odelia esteja “extremamente agradecida pela ajuda do governo português”, há muitos que dizem ter-se sentido sozinhos nestes últimos dias. E há ainda quem fale que teve de tratar do processo de repatriamento com as próprias mãos, por falta de acessibilidade da embaixada portuguesa em Telaviv.
Um repatriamento com ajuda de um grupo de Whatsapp
“Os portugueses residentes tiveram de criar um grupo no Whatsapp, onde reuniram as informações todas. Entretanto, também alguns turistas se juntaram e enviaram os documentos necessários”, destaca ao Observador uma luso-descendente, que preferiu não ser identificada.
Só após todos estes passos é que a embaixada iniciou o processo de repatriamento. “A partir daí, foi muito rápida a marcação do avião e as informações de quando seria o voo”, sublinha, explicando que, apesar de não morar no centro dos confrontos, preferiu vir para um local seguro.
E havia alguns casos em que o tempo era mesmo crucial. Foi o de Ana Rita Cavaco, a portuguesa cuja gravidez chamou logo a atenção de todos os que estavam na sala de espera.
“A decisão não foi imediata, porque temos as nossas vidas e o nosso trabalho em Israel, mas sem dúvida que estarmos no fim da gravidez acabou por se tornar quase imperativo”, disse, em declarações à Rádio Observador.
O parto está previsto para dezembro e, ainda que tal esteja à distância de dois meses, a investigadora e o companheiro acharam que era mais seguro regressar já. “O receio era de que, na altura em que a nossa filha nascesse, a situação não estivesse totalmente resolvida”, aponta.
Mesmo assim, os dois tencionam regressar assim que for possível. “Depois de a nossa filha nascer, em princípio já estará tudo calmo. A nossa ideia é voltar”, refere. E é esse o plano de muitos dos 152 portugueses que chegaram esta quarta-feira a Portugal.
Ainda há 2.000 portugueses em Israel (quatro estão desaparecidos)
Na chegada dos luso-descendentes ao aeroporto, o ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, referiu que ainda há cerca de dois mil portugueses nas listas consulares, mas que não manifestaram intenção de regressar a Portugal.
“Os que quiseram vieram. Vamos continuar a acompanhar a situação e, se for caso disso, também continuaremos a apoiar os outros cidadãos nacionais que continuam em Israel”, referiu aos jornalistas. Além destes, quatro portugueses regressam na madrugada de quinta-feira, num C130.
O ministro avançou ainda que há quatro luso-israelitas desaparecidos, que a embaixada está a tentar localizar, não querendo já especular se se trata de reféns.
Já no que diz respeito à primeira jovem israelita com passaporte português encontrada morta, o ministro disse que não contactou as autoridades israelitas, apenas falou com a família e que preferia respeitar a sua privacidade.
Entretanto, já houve uma segunda vítima mortal luso-israelita, Dorin Atias, de 22 anos, estava no festival de música perto da fronteira com Gaza, que foi atacado pelo Hamas, confirmou ao Observador Gabriel Senderowicz, presidente da Direção da Comunidade Judaica do Porto.